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sexta-feira, 10 de julho de 2015

Quem vai ficar com Samantha? Casal de brasileiros disputa a guarda da filha

A batalha coloca frente a frente a mãe que fugiu com a menina dos EUA e um pai acusado de violência doméstica
                           
JÚLIA KORTE E THAIS LAZZERI, COM LÍVIA CUNTO SALLES
09/07/2015
Maurício e Flávia em foto durante gestação de Samantha  (Foto: Glen A. Dimock)

Capítulo 1

A CAMPANHA

Uma campanha na internet tenta mobilizar a opinião pública para uma causa particular. Uma mãe brasileira que teve uma filha nos Estados Unidos, onde morava com o marido também brasileiro, quer que a menina permaneça no Brasil.  Ela viajou para o Brasil com Samantha, então com 1 ano e 2 meses, com o compromisso de voltar em 15 dias. Não voltou. O pai quer a filha, com quase 7 anos, de volta. Maurício Sadicoff, analista de sistemas, acusa a mãe de sequestro. A mãe, a publicitária carioca Flávia Harpaz, de 41 anos, afirma que ele é violento, a agrediu várias vezes e que por isso não voltou para os Estados Unidos. Capitaneada por Flávia, a campanha “Fica Samantha” tem uma página com 11 mil seguidores no Facebook. Lá, ela escreveu: “Essa pequena de seis anos merece ter a vida dela de volta. Muito amada, Samantha merece ter seu porto seguro aqui no Brasil, junto com sua mãe, familiares e amigos. Deixem ela ser feliz”. Maurício Sadicoff não fala sobre o caso. Mas, também nas redes sociais, seus amigos o defendem, afirmando não acreditar nas acusações feitas por Flávia. “Acorda, gente, não entrem em campanha baseada em emoção de mãe”, escreveu um deles.
 
O caso tem similaridades com outro episódio, ainda sem solução na Justiça: Sean, hoje com 15 anos, ficou no centro de uma disputa judicial internacional entre seu pai, o americano David Goldman, e a família carioca da mãe, Bruna Bianchi. Infeliz no casamento, Bruna viajou para o Brasil com o filho e, como Flávia, não voltou para casa, nos Estados Unidos. Aqui, Bruna casou-se de novo, com o advogado João Paulo Lins e Silva, e morreu no parto do segundo filho, em agosto de 2008. Pai e padrasto travaram uma gigantesca batalha na Justiça pela guarda do menino. No Natal de 2009, cinco anos depois de Sean voltar ao Brasil, uma decisão do STF determinou que ele retornasse aos Estados Unidos. Desde então, o menino não viu mais seus parentes brasileiros. A família materna ainda luta judicialmente para rever o adolescente. Argumentam que Chiara, a irmã, tem o direito de conviver com ele. 

Aos 7 anos, Samantha, uma menina alegre, de olhos esverdeados e rosto sardento, tem uma vida quase igual a de tantas outras de sua idade e classe social na Zona Sul do Rio de Janeiro. Vai à escola de manhã, frequenta aulas de ginástica rítmica e natação à tarde e, eventualmente, dorme na casa dos avós. Algumas vezes ela e sua mãe passam a noite escondidas, evitando que algum oficial de justiça as encontre para cumprir uma possível ordem judicial que determine a devolução da menina aos Estados Unidos. A disputa pela guarda de Samantha envolve as Justiças do Brasil e dos Estados Unidos. No Brasil, o processo está no Superior Tribunal de Justiça (STJ). No momento, vigora um recurso obtido pela mãe, suspendendo a decisão de devolver a menina aos Estados Unidos.

Samantha sabe que pode ser mandada de volta para a casa do pai. Provavelmente não entende que isso significa separar-se da mãe. Flávia será presa se pisar nos Estados Unidos, uma vez que descumpriu a determinação da Justiça americana de voltar ao país em 15 dias com a filha. Há uma ordem de prisão contra ela, por sequestro. Flávia alega que fugiu após uma série de episódios de violência de Maurício. Um desses episódios, relatado por Flávia à Justiça americana em 2009, fez com que um Tribunal do Estado de Illinois, onde o casal vivia, expedisse uma medida protetiva determinando que ele saísse da casa onde viviam e que se mantivesse distante da mulher. Mas garantia ao pai o direito de ver a filha em horários determinados, nos finais de semana, na presença de dois oficiais de justiça. Com a medida em vigor, Flávia pediu autorização judicial para vir ao Brasil. Conseguiu, com a condição de voltar, o que não aconteceu.

Um ano depois de Flávia voltar ao Brasil, em 2010, Maurício entrou com petição nos Estados Unidos acusando a ex-mulher de sequestro. Usou, para isso, a Convenção de Haia – tratado internacional de 1980, assinado por 76 países, que regula a repatriação de crianças que tenham sido levadas para outro país por um dos pais, sem autorização da outra parte. Foi com base na Convenção de Haia que David Goldman conseguiu levar Sean de volta para os Estados Unidos. O pedido de Maurício foi encaminhado para a Autoridade Central e para a Advocacia-Geral da União, órgãos responsáveis, no Brasil, por esses casos. Um processo foi aberto e Flávia teve uma decisão desfavorável há alguns meses. Samantha teria de voltar para os Estados Unidos. A advogada da mãe recorreu e o STJ suspendeu, mas não revogou, o mandado de busca e apreensão da criança. Se houver nova mudança, Samantha pode ter de voltar para o Estado de Illinois, onde então seria discutida a guarda da menina.

A situação de Flávia se complicou depois que ela recebeu um ofício do Itamaraty, em 2010, informando sobre o pedido do ex-marido. A partir desse tipo de petição, inicia-se a cooperação internacional entre os países para que a criança seja retornada em até seis semanas. “A Convenção de Haia serve para combater o sequestro internacional de crianças. É um sistema de cooperação internacional, não uma lei de proteção aos brasileiros”, diz Gustavo Kloh, doutor em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e professor da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro (FGV-Rio). “O problema é que a lógica do Direito Internacional não tem a ver com o senso comum das pessoas. Não cabe discutir se é certo ou errado. O Brasil é signatário e deve cumprir o tratado. Se ela foi trazida ilegalmente, não há defesa.”

Duelo na justiça americana e brasileira, Flávia acusou Maurício de violência doméstica  (Foto: Reprodução)
Capítulo 2

O SONHO E O PESADELO

A aproximação entre Flávia e Maurício teve como primeiro cenário o colégio judaico Liessin, na Zona Sul do Rio. Não eram próximos enquanto estudavam, mas se paqueravam à distância. Os dois frequentavam o movimento juvenil Dror, uma espécie de grupo de escoteiros em que crianças e adolescentes judeus se encontram, aos sábados, para praticar atividades físicas e interagir. A paixão só surgiu 15 anos depois de se formarem, num encontro entre ex-alunos promovido por meio do finado Orkut. Trocaram mensagens e, entre as vindas frequentes de Maurício para o Brasil (ele estudava ciências da computação na Flórida), começaram a namorar.

Menos de um ano depois, Maurício propôs que ela fosse com ele aos Estados Unidos, para, juntos, buscarem o sonho de enriquecer no estrangeiro. Em abril de 2005, casaram-se diante de um juiz daquele país e foram viver na Flórida. Em novembro do mesmo ano, houve a cerimônia religiosa e a festa brasileiras, celebradas com  pompa e circunstância no hotel Le Méridien, na orla de Copacabana.

Meses depois, Maurício foi demitido e o casal se mudou para Champaign, pacata cidade de 70 mil habitantes no interior de Illinois. Lá, os desafios foram muitos. Segundo Flávia, Maurício não se mantinha muito tempo nos empregos, dado o “temperamento difícil”. Amigos do casal no Rio lembram de Maurício como um jovem tranquilo, meio nerd, de quem todos gostavam. Não indicava ter “temperamento difícil”, afirmam. Lembram também que ele cultivava uma longa cabeleira – hoje, está careca. Flávia reuniu algumas economias e abriu um pequeno hotel para cães em 2006. O empreendimento começava a dar certo quando, dois anos depois, ela engravidou. 

Não demorou muito para as brigas começarem. Flávia diz que Maurício mudou após a ida para Champaign. Ela diz que o rapaz simpático que a reencontrou tornou-se sisudo, do tipo que não saía de casa e vivia sem amigos. Segundo Flávia, ele era agressivo, competitivo e fechado. “O isolamento era muito grande. Maurício era muito ciumento e inspirava insegurança. Era um casamento morde e assopra, mas eu fui levando”, diz Flávia.

Ela afirma que as discussões eram constantes e aumentaram de tom de forma rápida. Maurício, segundo ela, se embriagava com frequência. Amigos cariocas do casal com quem ÉPOCA conversou – e que pediram para não ser identificados – mostraram-se surpresos com a afirmação de que Maurício era um beberrão, o que não acontecia quando ele estava no Rio. Ela diz que era chamada de vagabunda e outros palavrões. Durante a gravidez, Flávia veio ao Brasil para visitar a família no Rio de Janeiro. Sua avó estava doente e ela aproveitou a justificativa. O casamento não estava bem nem a vida nos Estados Unidos. Flávia ficou pouco mais de três meses no Rio. Diz que voltou para o marido disposta a fazer as coisas dar certo – e convencê-lo a recomeçarem a vida no Brasil. Ao chegar em casa, descobriu que viveriam em quartos separados. Flávia não sabia, mas à época Maurício já tinha entrado com um pedido de divórcio no Rio de Janeiro. (Embora casados nos Estados Unidos, eles haviam reconhecido a união na embaixada brasileira.) “O que já estava ruim ficou ainda pior”, diz Flávia. Depois do nascimento de Samantha, em 15 de julho de 2008, ela abandonou seus planos de continuar com o hotel de cães. Num último esforço, tentaram a terapia de casal. Não deu certo. “Ele não é do tipo que sabe ouvir. A terapeuta desistiu de nós”, diz.

Flávia diz que eles eram quase estranhos na mesma casa. Se ela pedia dinheiro para o mercado, ele não dava. Preocupada, pediu ajuda à família no Brasil, que emitiu um cartão de crédito internacional e passou a sustentá-la. “Ou isso, ou não teria o que comer”, afirma. Segundo ela, os xingamentos verbais logo passaram a ser acompanhados de empurrões e tapas, mesmo quando estava com Samantha no colo. Flávia diz que a polícia foi chamada algumas vezes, mas afirma não saber quantas, por não ter trazido as cópias dos boletins de ocorrência quando fugiu para o Brasil. Ela conta que na última desavença grave foi puxada pelos cabelos.

Uma assistente social visitou a casa após o episódio e, ainda na versão de Flávia, teria alertado a brasileira de que, se ela não tomasse uma providência, poderia não haver uma “próxima vez”. “Fiquei apavorada”, diz. Conseguiu então, na Justiça de Illinois, uma ordem judicial para que Maurício saísse de casa. Samantha permaneceu com a mãe, mas a mesma decisão permitia que ele ficasse com filha aos sábados e domingos, das 7 às 17 horas. “Houve uma ordem de restrição contra ele. Isso quer dizer que existem elementos indicativos, que ele pode ser investigado ou processado por violência doméstica, mas não quer dizer que a cometeu”, diz Cláudio Langroiva, professor de processo penal na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “Essas medidas geralmente são feitas em caráter preventivo.”

Flávia e sua filha Samantha  (Foto: Arquivo pessoal)
 
Capítulo 3

O SEQUESTRO

Flávia conseguiu autorização para viajar para o Brasil em setembro de 2009. “Estava sozinha nos Estados Unidos, em pânico por mim e pela minha filha. Não consegui mais voltar”, diz.  Afirma que procurou Maurício diversas vezes em busca de um acordo, mas não obteve retorno. Segundo ela, o ex-marido nunca foi impedido de visitar a criança. Desde que veio para o Brasil, Samantha não vê o pai. Maurício casou novamente nos Estados Unidos e tem enteados. Aos amigos, costuma se queixar de não ter com a filha o mesmo convívio que tem com os filhos de sua mulher. A família dele, que mora no Rio, tinha contato com a menina. “Ela dormia na casa deles toda semana”, diz. Maurício e sua família foram insistentemente procurados por ÉPOCA, mas a única a se manifestar foi a avó paterna de Samantha, Eliane Sadicoff. Em uma rápida conversa telefônica, disse apenas: “Nós não temos interesse em nos manifestar. O processo está correndo em segredo de Justiça e é preciso esperar até que o caso seja encerrado”.

Por ter descumprido a determinação de voltar em 15 dias, Flávia teve sua prisão decretada nos Estados Unidos. Em outubro de 2011, o STF decidiu em favor de Maurício. Três dos cinco ministros que julgaram o caso consideraram que Flávia errou ao não retornar aos Estados Unidos e que a criança deveria voltar a Illinois, para que lá fosse decidido quem ficaria com sua guarda.

Na véspera do Natal de 2011, foi emitido um mandado de busca e apreensão de Samantha. Mãe e filha não estavam em casa. Desde então, houve uma série de marchas e contramarchas no processo, com recursos de ambas as partes. Ora determinando a apreensão de Samantha, ora suspendendo o mandado. Em 2012, com o mandado em vigor, o procurador do Estado do Rio Ricardo Sadicoff, irmão de Maurício e um de seus advogados no caso, foi à casa de Flávia buscar a sobrinha, acompanhado por dois oficiais de justiça. Mais uma vez, as duas não estavam em casa. Desde 2014 juntou-se a Ricardo, na defesa de Maurício, o advogado Ricardo Zamariola Junior – o mesmo que conseguiu a liminar que, em 2009, permitiu que David Goldman levasse Sean de volta aos Estados Unidos.

A advogada de Flávia, Cláudia Grabois, diz que Samantha nunca saiu do Brasil desde que aqui pisou, nem fala inglês. Nesse período não conviveu com o pai. “Como vamos garantir que a criança não vai ter um dano irreparável no regresso? Agora, o maior prejuízo é da Samantha”, diz.

Segundo uma pesquisa dos professores universitários Jeffrey Edleson e Taryn Lindhorst, divulgada pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, a Convenção de Haia vem sendo  usada contra mulheres que buscam proteção para si mesmas – e seus filhos – contra maridos violentos. Sentindo-se ameaçadas, fogem do país em que se encontra o agressor, mas acabam enquadradas nos artigos do tratado internacional. “Nós sempre pensamos que o sequestro de criança é uma coisa ruim”, diz Taryn. “Mas, em alguns casos, são apenas mães tentando evitar futuras agressões.” À época em que foi escrita, segundo os pesquisadores, a convenção tinha como objetivo impedir que pais fugissem com as crianças. Três décadas depois, pesquisas mostram que 68% dos casos de sequestro são cometidos pelas mães.

Dois artigos da Convenção de Haia preveem exceções à determinação de que a criança volte ao país de onde foi tirada. O Artigo 12 estabelece que a criança poderá ficar onde está caso se prove que ela já se encontra integrada a seu novo meio. Já o Artigo 13 determina que o menor não retornará se houver risco grave de que fique sujeito a perigos de ordem física ou psíquica, ou a uma situação intolerável. “Nesse caso específico, o Poder Judiciário não crê que a volta de Samantha seria um perigo físico à criança”, diz a advogada Nereida de Lima Del Águila, da Advocacia-Geral da União, que atua pelo Estado brasileiro no caso.

Capítulo 4

EPÍLOGO

Seis anos depois de ser trazida para o Brasil, Samantha continua no centro de um imbróglio cuja solução, qualquer que seja, deixará uma vítima: ela própria. Caso a Justiça decida que ela volte aos Estados Unidos e fique sob os cuidados do pai, a menina terá de enfrentar um longo processo de readaptação à vida em outro país, longe da mãe e dos parentes brasileiros. Precisará, ainda, se reaproximar do pai, a quem não vê desde que tinha 1 ano e 2 meses. Se a decisão for favorável à mãe e Samantha permanecer no Brasil, perderá o convívio com a figura paterna.

Em caso semelhante, a brasileira Julia Albuquerque viu a Justiça determinar que seus dois filhos, atualmente com 15 e 13 anos, fossem devolvidos ao pai, o norueguês Tommy Bless – que também usou a Convenção de Haia para reaver os meninos. Em julho de 2014, Bless veio ao Brasil para levar os filhos de volta, pondo fim a uma disputa que já levava oito anos. Aqui, conversou com os dois e com Julia. Decidiu ouvir seus pedidos: Matheus e Billy queriam ficar no Brasil, mas sem perder o convívio com o pai. Os meninos ficaram. Tommy combinou vir ao Rio visitá-los. De vez em quando, eles irão à Noruega vê-lo. Os principais interessados – Matheus e Billy – venceram a batalha.


Entenda a história de Samantha  (Foto: época )


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