Quando Gisellle Groeninga me convidou para fazer parte do seleto grupo de colunistas da então nova coluna Processo Familiar, não imaginava o sucesso e a repercussão que a coluna teria.
Não que o nome de grandes mestres como Rodrigo das Cunha Pereira, Luiz Edson Fachin (e atualmente Paulo Lôbo) e da própria Giselle Groeninga não fossem nomes bastantes para serem lidos à exaustão, mas por causa dos inúmeros textos que se publicam diariamente pelos mais diversos canais, gerando ao leitor impossibilidade de conhecer todos eles e inexistindo tempo para sua leitura.
O sucesso da coluna se reflete nos inúmeros compartilhamentos e na repercussão nas redes sociais.
Nesta coluna, a última de minha autoria, quero fazer um apanhado do ano de 2015 por meio de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça que cuidaram do Direito de Família e das Sucessões.
Sobre afeto como valor jurídico, em 2015 o STJ reiterou algumas velhas premissas, a saber:
- o homem que é enganado por sua mulher ou companheira, mesmo criando-se o vínculo afetivo, tem direito a negar a paternidade da criança, pois esta nasceu de erro, como vício do consentimento (REsp 1330404/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2015, DJe 19/02/2015).
- O filho tem o direito a promover ação investigatória de paternidade para excluir o pai socioafetivo de seu registro de nascimento, incluindo o biológico, pois a filiação biológica é direito da personalidade, logo imprescritível (REsp 1458696/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 20/02/2015).
- A mãe socioafetiva tem possibilidade jurídica de pedir o reconhecimento da maternidade, mesmo que não haja vínculo de sangue (REsp 1291357/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 26/10/2015)
Sobre a multiparentalidade, entendeu o STJ que não é possível que, por vontade do pai socioafetivo, fosse realizado o duplo registro na Certidão de Nascimento do menor. Se a questão é deixar bens, pode-se fazer doação ou disposição testamentária em favor do menor (REsp 1333086/RO, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/10/2015, DJe 15/10/2015)
Em matéria de alimentos, temos o seguinte. Os alimentos entre ex-cônjuges têm caráter excepcional e transitório, ou seja, só são devidos por tempo determinado. Em regra, são concedidos pelo prazo de um ano. A exceção ocorre quando o cônjuge tem idade avançada ou não tem mais condições de reinserção no mercado de trabalho (AgRg no AREsp 725.002/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJe 01/10/2015)
Em matéria de sucessão do cônjuge, o tribunal, por meio da 2ª Seção, unificou o entendimento referente à concorrência do cônjuge com os descendentes:
- casamento por separação convencional de bens, os bens do falecido serão partilhados entre cônjuge e descendentes (REsp 1294404/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 29/10/2015).
- casamento por comunhão parcial de bens — o cônjuge concorre com os descendentes quanto aos bens particulares do falecido, não concorre quanto aos bens comuns sobre os quais já tem meação (REsp 1.368.123-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, Rel. para acórdão Min. Raul Araújo, julgado em 22/4/2015, DJe 8/6/2015 – informativo 0563)
Nessas poucas notas, percebe-se que:
- O afeto ainda é tema controverso. Quando se trata de erro na vontade do pai (que desconhecia que o filho biologicamente não era seu), prevalece a vontade deste em desfazer a partenidade. O filho socioafetivo pode optar pela paternidade biológica, desfazendo a socioafetiva, pois a verdade biológica é direito da personalidade.
Em minha opinião, as decisões indicam confusão entre ascendência genética e paternidade. Ser pai é exercer uma função, e ascendente genético é ter o mesmo DNA.
Não pode o pai deixar de sê-lo por não ser ascendente genético do menor. Não pode o filho deixar de sê-lo por não ter o DNA de seu pai[1]. Não se trata de opção ou vontade, mas dado de realidade em razão de construção social.
Apenas com essa leitura, o afeto é levado às últimas consequências e reconhecido definitivamente como valor jurídico. Assim como, na adoção, não há dois pais (o biológico e o adotivo), mas um só: o adotivo. O outro passa ser apenas ascendente genético.
A multiparentalidade efetivamente ainda não entrou na pauta do STJ. Aquele tribunal fez bem em dizer que a situação é de exceção, e não regra, como parece querer boa parte da festiva doutrina familiarista (que sempre festeja, mas poucas vezes indica a base jurídica). A multiparentalidade não é regra, e nem poderia sê-lo. Na esmagadora maioria das configurações familiares, uma única pessoa exerce a função materna, e outra a paterna. Quantas vezes não vemos casais separados ou divorciados em que o pai e mãe prosseguem exercendo suas funções. O fim do casal conjugal não implica fim do casal parental necessariamente. Quantas vezes não assistimos a abandonos paternos e o avô ou padastro da criança passa a exercer a função paterna.
O erro está em acreditar que a criança, tendo criada por seu pai socioafetivo, sem nunca ter visto ou sabido da existência de seu ascendente biológico, tem “dois pais”. Não! Isso é desprestigiar o afeto. A criança tem um pai e um ascendente biológico, que não é seu pai. Se o tempo de convívio permite que surja uma segunda paternidade aliada à primeira, isso não é regra e nem se dará por sentença que representa verdadeira violência ao menor.
A doutrina do afeto, de maneira incoerente, defende a multiparentalidade como possibilidade sempre existente. Equívoco grande. Multiparentalidade é exceção e pensada no interesse da criança e do adolescente. A conclusão de que “é melhor três pais que dois” é irresponsável e sem base técnica.
A noção de alimentos acompanha a evolução social. Homens e mulheres são iguais e não há mais a ideia de que ao se casar a mulher abandona sua vida e carreira para cuidar do marido e filhos.
Os índices do IBGE indicam que as mulheres trabalham e muito, normalmente em triplo turno: o trabalho doméstico e aquele fora do lar. Assim, alimentos provisórios, para a recolocação no mercado de trabalho, são adequados, em regra. Não há mais a profissão “ex-marido” ou “ex-mulher”. É por isso que, em caso de idade avançada ou doença do cônjuge, os alimentos são devidos de maneira permanente. Há um acerto em se adequar a leitura do casamento ao atual momento histórico. Vejo com bons olhos essa nova leitura da família em matéria de alimentos.
O maior ganho para a sociedade, contudo, não é quanto ao Direito de Família, mas quanto às sucessões. Finalmente, o STJ, por meio da 2ª Seção, pacificou entendimento quanto à sucessão do cônjuge e a concorrência com os descendentes.
Abandonada a tese sem nenhuma consistência e contra legem criada pela ministra Nancy Andrighi (Resp. 992.749/MS), o entendimento correto do texto e do espírito da lei foi adotado: a concorrência prevista no artigo 1829, I do CC tem natureza assistencial, pois sua origem é o usufruto vidual que nasce com o Estatuto da Mulher casada de 1962. Assim, o cônjuge só concorre com os descendentes quanto aos bens particulares, pois quanto aos demais já é meeiro.
A lógica, tendo ela simpatia popular ou não, é evitar o desamparo do supérstite. É isso que decidiu o STJ.
Agora, como nota final, o Supremo Tribunal Federal, mais uma vez não exercendo sua função de corte criminal, e só, novamente deixou de julgar dois temas de grande interesse ao Direito Civil: afeto (repercussão geral no Recurso Extraordinário com Agravo 692.186 PARAÍBA) e sucessão do companheiro e a inconstitucionalidade do artigo 1790 do CC (repercussão geral no Recurso Extraordinário 646.721)
Ao primeiro foi negado seguimento, pois o ministro Fux entendeu que há outro RE em que a matéria é abordada e permite melhor análise do afeto. O segundo ainda não teve o julgamento iniciado.
Que 2016 venha com as decisões do STF de que tanto necessita o Direito de Família e as famílias brasileiras.
[1] Não tratamos aqui dos casos de sequestro de menor em que a tipificação penal e a repulsa social são suficientes para não permitir a sobrevivência desta maternidade ou paternidade.
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
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