Ursula Silva Franke
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Advogada
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Advogada
Resumo: O presente artigo tem como escopo analisar a hermenêutica da Lei Maria da Penha na justiça com a finalidade de se estender a sua aplicabilidade a homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e transgêneros. O artigo foi desenvolvido através de uma pesquisa de campo com entrevistas feitas à Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, ao Centro de Valorização da Mulher, à Secretaria de Saúde do Estado de Goiás, à 63ª Promotoria de Justiça dos Direitos da Mulher, ao 2º Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Também foi realizada pesquisa de cunho bibliográfico, onde se buscou a opinião de doutrinadores, bem como a análise da legislação vigente no País e ainda entrevistas realizadas pela mídia nacional para obtenção do resultado final do artigo.[1]
Introdução
Hodiernamente estamos vivendo o neoconstitucionalismo, onde o Direito positivado pelo Estado deve interagir com a realidade social, ou seja, deve-se haver uma adaptação da letra da lei ao mundo fático, analisando as circunstâncias do caso concreto.
Acontece que, embora haja casos de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto envolvendo o homem como vítima, o mesmo não possui o devido amparo.
A psicóloga Simone Alvim, autora do artigo cujo tema é: “Violência conjugal em uma perspectiva relacional: homens e mulheres agredidos/agressores”, em entrevista com o jornalista Wanderley Araújo do programa Opinião expôs:
“A primeira delegacia que eu procurei, obviamente foi a delegacia da mulher, que é aonde a gente sabe que efetivamente só tem casos de violência conjugal, a delegada na época, que eu nem me lembro o nome, me disse que aquilo que eu estava fazendo era um desserviço para a sociedade, que eu devia ter vergonha desse meu trabalho e desistir dessa pesquisa, porque toda a luta e as conquistas feministas que a gente tinha alcançado até aqui, eu estava indo contra esse movimento.
E por mais que eu explicasse para ela que é uma tentativa de desmitificar o homem culpado, a mulher culpada, que era uma coisa de entender o casal ela não quis ficar nem com o meu projeto e disse inclusive que eu não voltasse ali nem como uma cidadã, que eu tinha perdido os meus direitos de mulher, porque eu não podia nem mais denunciar se ela estivesse ali.
Ok! Dali eu fui então buscar a delegacia comum, porque se ela não quis nem me receber como pesquisadora, você imagina qual é a reação de um homem que vai ali denunciar. Então eu entendi que provavelmente os homens não buscam esse serviço. [...] Conversei com alguns delegados que riam do meu trabalho. Claro! Essa é uma reação normal, já estou acostumada com isso, várias vezes quando eu falo, e as vezes eu falo só para chocar mesmo, para ver qual é a reação, as pessoas riem.
Eles falavam que não tinha, que não sabiam, que nunca tinha registrado, que eu não ia conseguir, que era para eu desistir e eu pedia para eles para eu deixar um cartaz na recepção das delegacias informando que eu estava fazendo uma pesquisa, casos eles quisessem conversar, que eu era psicóloga, deixava o meu telefone, que eles poderiam entrar em contato. Quando eu voltava lá, uma semana depois, o cartaz tinha sido arrancado, então nem isso eu conseguia, apoio do serviço para fazer (Sic.)”.
A realidade vivida pela psicóloga supramencionada infelizmente é algo enraizado na nossa sociedade. Se uma mulher apanha de um homem: “Lei Maria da Penha nele!”. Se um homem apanha de uma mulher, é motivo de chacota. Sobrevindo consequentemente o desiquilíbrio na balança da justiça.
Clama-se aqui pelo Princípio Constitucional da Isonomia, ao qual o Estado não pode desrespeitar, devendo sim assegurar a realização das garantias, direitos e liberdades que consagra, sob pena de comprometer sua própria soberania bem como trazer uma insegurança jurídico-social.
1. Noções preliminares da lei 11.340/06
1.1.Razão da Lei Maria da Penha
A Lei nº 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, insurge como resposta do Estado à prática de violência degradante em desfavor da mulher, tratando com especificidade um mal que há muito templo aflige muitas famílias em nosso País.
Maria da Penha Maia Fernandes foi a primeira mulher vítima de violência doméstica que teve sua denúncia acatada pela OEA (Organização dos Estados Americanos). Em consequência disso, o Brasil foi condenado internacionalmente em 2001 a indenizá-la no valor de 20 mil dólares por negligência e omissão frente à violência doméstica.
Em 2008 foi paga a Maria da Penha uma indenização no valor de 60 mil reais pelo governo do Estado do Ceará, em uma solenidade pública, com pedido de desculpas.
Vale frisar também, que conforme o Relatório n.54 da OEA, além de impor o pagamento de indenização em favor de Maria da Penha, recomendou o Brasil a adotar várias medidas, entre elas “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que se possa reduzir o tempo processual”.
Foi quando o então Presidente Lula sancionou a Lei 11.340/2006, chamou-a de Lei Maria da Penha e disse: “Esta mulher renasceu das cinzas para se transformar em um símbolo da luta contra a violência doméstica no nosso país”.
1.2.Razão da aplicabilidade extensiva da Lei Maria da Penha
Atualmente as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha são bem mais amplas e completas que algumas medidas cautelares presentes no Código de Processo Penal.
Em consequência disso, o homem vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, por não poder se resguardar no diploma supra, é injustiçado, havendo assim um desequilíbrio jurídico-social.
Nesse sentido, não estender a aplicabilidade da Lei 11.340/06 a homens que também sofrem esse tipo de violência é negar os Direitos Humanos e rasgar a Constituição Federal, pois a Lei Maior garante em seu artigo 5º que todos somos iguais em direitos e obrigações.
A delegada goiana Laura de Castro Teixeira, plantonista da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher – DEAM, nasceu homem e fez cirurgia de mudança de sexo, alterando consequentemente sua documentação.
Laura é a primeira delegada de polícia transexual do Brasil e a prova concreta que a única estabilidade na vida é a mudança.
Em entrevista realizada no dia 28/10/2014, a delegada Laura Teixeira com suas sábias palavras disse:
“A partir do momento que você cria uma lei para proteger uma pessoa em situação de vulnerabilidade, você não deve fazer essa proteção de maneira restritiva, porque Direitos Humanos é toda uma interpretação que tem que ser feita de maneira extensiva, se por exemplo você está protegendo alguém que esteja em situação de vulnerabilidade, você não tem que está protegendo a mulher, mas você tem que proteger todo e qualquer ser humano em situação de vulnerabilidade.
[...]O direito de uma maneira geral ele tem que proteger os vulneráveis, a proteção está justamente para isso, para haver um equilíbrio social. Então, a partir do momento que você está vivendo em sociedade, tem certas condições que você tem que manter para que as pessoas possam conviver em harmonia e uma delas é proteger os mais fracos para que eles possam ter condições de ser equiparar a quem tem mais condições físicas, financeiras, etc.
Os vulneráveis tem que ser protegidos, à medida que você tem uma lei protegendo uma parcela você vai está criando um anseio para outras parcelas de vulneráveis que não estão amparados pela lei. Então eu acho que esta Lei deveria ter uma aplicação extensiva, com a maioria das leis no Brasil, essa Lei foi criada para atender anseios de uma situação que aconteceu, foi até a situação da própria Maria da Penha, ela foi uma Lei necessária.
Como toda situação emergencial o legislador querendo fazer uma proteção a um grupo e esquece que não é só esse grupo de vulnerável que existe, poderia ele naquele momento ter feito uma proteção mais ampla, abrangendo tudo quanto é tipo de situação de vulnerabilidade (Sic.)”. (grifos nossos)
Na mesma data foi realizada entrevista com Maria das Dores Dolly Soares, diretora do Centro de Valorização da Mulher – CEVAM. Quando questionada sobre a possibilidade do homem ser vítima de violência doméstica e familiar a mesma respondeu:
“Pode! Só que o homem tem vergonha de denunciar devido esta educação que nós tivemos, devido esse machismo todo. Ele esconde! Chegou homem aqui no CEVAM todo machucado, ele fica enrolando, com medo até de falar, conversar com a gente, ‘rodeando o toco’ como a gente diz. Tem cara que chega aqui tira a camisa e está todo arrebentado, machucado. Tem vergonha, porque se ele for para a delegacia ele vai ser considerado ‘ah... você não é homem!’, ridicularizado (Sic.)”.
Aceitar que o homem também pode estar em uma situação de vulnerabilidade e por isso também merece amparo na Lei Maria da Penha é a mudança que se faz necessária dos paradigmas ultrapassados que apenas vitimizam a mulher como único ser possível a estar no pólo passivo em uma situação de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto.
2. Sujeito passivo
2.1. O sujeito protegido atualmente pela Lei Maria da Penha
Primeiramente é importante conceituar. Nas palavras do jurista JulioFabrinniMirabete (2005, pg.43) sujeito passivo é:
“O titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. Nada impede que, em um delito, dois ou mais sujeitos passivos existam: desde que tenham sido lesados ou ameaçados em seus bens jurídicos referidos no tipo, são vítimas do crime.
Exemplificando, são sujeitos passivos de crime: aquele que morre (no homicídio), aquele que é ferido (na lesão corporal), o possuidor da coisa móvel (no furto), o detentor da coisa que sofre a violência e o proprietário da coisa (no roubo), o Estado (na prevaricação) etc.”.
Dessa forma, pode-se afirmar que sujeito passivo é o ofendido, a vítima, ou seja, o titular do bem jurídico tutelado pela norma penal, que vem a ser ofendido pelo crime.
A Lei 11.340/2006, em seu artigo 5º traz a seguinte definição:
“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. (negrito nosso)
Depreende-se do texto acima que a Lei Maria da Penha busca tutelar de forma específica somente a mulher como vítima de violência no âmbito da unidade doméstica, familiar e de relacionamento íntimo de afeto.
Em decorrência dessa proteção exclusiva, institui ao sexo feminino tratamento jurídico diverso daquele contido no Código Penal, pois delimita, quanto à sua aplicação, o sujeito passivo das modalidades de agressão, que nestes casos só pode ser a mulher.
Todavia, segundo os autores Cezar Roberto Bitencourt e Luiz Regis Prado (2010, pg. 142):
“Não se pode deduzir que a mulher seja a única e exclusiva vítima potencial ou real de violência doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo. Também o homem pode sê-lo, tanto empírica quanto normativamente, conforme, aliás, se depreende da redação do § 9º do art. 129 do Código Penal, que não faz restrição a respeito das qualidades de gênero do sujeito passivo, o qual pode abranger ambos os sexo”.
Neste sentido, para os ensinadores supra, o homem pode figurar como sujeito do pólo passivo em uma situação de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto. O que a Lei nº 11.340/06 delimita são as medidas de assistência e proteção, as quais, em princípio, são aplicáveis somente à vítima mulher.
Os doutrinadores Ana Cecília Parodi e Ricardo Rodrigues Gama (2010, pg. 55) quanto ao sujeito passivo entendem: “deveras, a analogia autoriza encampar o homem como vítima da violência doméstica, desde que ele conviva com outro homem formando um casal homossexual”.
A Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Maria Berenice Dias (2012, pgs. 61 e 62), entende que “transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica”.
Em entrevista realizada com a Delegada Laura de Castro Teixeira, ao se interrogar sobre a possibilidade do homem ser vítima de violência doméstica e familiar a mesma relatou:
“De acordo com a Lei não tem essa proteção para o homem porque ela é muito taxativa, a pessoa que vai ser protegida é só a mulher. Homem não tem proteção da Lei Maria da Penha porque ele não é um sujeito previsto pela Lei para essa proteção porque a Lei Maria da Penha quando ela veio instituída, sido criada, ela veio com a destinação de proteger uma parcela específica da população, as mulheres. Mas não qualquer mulher, além de vir para proteger certas mulheres, ela veio para proteger mulheres em situação de risco, em uma situação de vulnerabilidade.
[...]O artigo 5º da Lei é bem específico, tem três incisos que especificam e ainda fala em situação de vulnerabilidade, ou seja, isso já restringe bastante a aplicação dessa Lei não só com mulheres, mas mulheres em que se encontrem em situação de relação doméstica e em situação de vulnerabilidade.
Por isso que, quando você fala da aplicação da Lei Maria da Penha a homens, juridicamente, a gente pode falar com tranquilidade que é impossível fazer isso, a Lei não abre margem para essa aplicação extensiva da Lei (Sic.)”. (grifos nossos)
Na mesma entrevista foi questionado também sobre as medidas que poderiam ser adotadas para a proteção do homem que passa por situação de violência doméstica e familiar e como a Delegacia da Mulher atua na orientação desses casos, a mesma respondeu:
“[...]O Código de Processo Penal trata de medidas cautelares diferentes da prisão preventiva, são medidas que algumas se assemelham bastante as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, só que a diferença é que para essas medidas [...] é necessário pelo menos que exista uma investigação criminal em andamento para que o juiz adote ela, ou seja, existem medidas que podem ser tomadas sim, só que essas medidas dependem de ter processo criminal.
Agora em relação a questão da Lei Maria da Penha, ela é muito mais ampla, então não existe para o homem, para outra pessoa que não seja a mulher em situação de violência doméstica, em situação de vulnerabilidade, medidas tão eficazes quanto. Porque para que ela tenha acesso a essas medidas, tem que existir um processo criminal, pelo menos instaurado, já em fase investigativa, para poder pedir essas medidas cautelares para se preservar.
[...]Para outras pessoas que não sejam as mulheres nessa condição específica podem ser tomadas medidas equivalentes mais depende de processo criminal, ou seja, a proteção requer uma burocracia maior.A vantagem da Lei Maria da Penha é que se a mulher não quiser o processo criminal contra o agressor ela pode simplesmente pedir as medidas, só o procedimento das medidas, agora em relação ao homem por exemplo [...] tem que entrar com um processo criminal para poder ter essas medidas a sua disposição.
[...]A princípio encaminharia para o DP para fazer um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência), caberia medida protetiva, pedida ao juiz também, só que não teria o prazo por exemplo de 48 horas que o juiz tem para decidir, a autoridade policial tem 48 horas para encaminhar expediente, a gente tem prazos corridos para encaminhar na Lei Maria da Penha, as outras medidas protetivas não tem isso, não fica equiparado, não é igual na Lei Maria da Penha (Sic.)”. (grifos nossos)
A Lei em seu stricto sensu realmente tem o condão de abarcar apenas a mulher como única e exclusiva vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto. Em consequência disso, a mulher ao ser amparada pela Lei Maria da Penha é beneficiada pela celeridade processual, como por exemplo no caso de lesão corporal, pela incondicionalidade da Ação Penal, além de uma série de medidas protetivas ao qual o homem não faz jus se estiver na mesma situação.
Levando-se em conta as impressões da Delegada Laura Teixeira e o texto literal da Lei 11.340/06, nota-se que o homem encontra-se em desvantagem, pois para que o mesmo possa acionar medidas protetivas similares às da Lei Maria da Penha, porém muito menos rigorosas, ele precisa realizar todo um processo criminal, enquanto a mulher pode fazer jus às medidas protetivas imediatamente, conforme prevê o §1º, do artigo 19 do mesmo diploma legal: “As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado”.
A partir da publicação da Lei n. 12.403, em 05 de maio de 2011, alguns entendem que seu rol de medidas cautelares, que alterou o artigo 319 do Código de Processo Penal, supre essa carência quando o crime de violência doméstica for praticado contra qualquer pessoa que não apenas o gênero feminino:
“Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
IX – monitoração eletrônica”.
Em entrevista realizada com a Promotora de Justiça da 63ª Promotoria de Justiça dos Direitos da Mulher, Dra. Rúbian Corrêa Coutinho ao questionar quais medidas poderiam ser adotadas para a proteção do homem que passa por situação de violência doméstica e familiar a mesma explicitou:
“Está no Código de Processo Penal no artigo 319 as medidas cautelares que são diversas da prisão e que dão a esse homem essa proteção igual como está na Lei Maria da Penha, claro que na Lei Maria da Penha existe um detalhamento maior porque o crime praticado contra mulher em situação de violência, ele tem algumas peculiaridades[...] (Sic.)”.(grifos nossos)
Acontece que, existem outras medidas protetivas diversas das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, medidas essas que apenas a Lei Maria da Penha prevê, quais sejam:
“Seção II - Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor.
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios. [...]
Seção III - Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida.
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.[...]”.(grifos e negritos nossos)
Portanto, a teor da letra da Lei 11.340/2006, amparar apenas a mulher como vítima de violência doméstica e familiar, segurando somente a ela medidas protetivas de urgência tais como as supramencionadas é algo leviano, pois a mesma nem sempre é o único e possível sujeito passivo de tal situação.
Insta salientar o teor dos §§ 9º e 11 do artigo 129 do Código Penal:
“Violência Doméstica (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004)
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)[...]
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006)”.
A realidade do parágrafo anterior sugere uma abrangência do texto descrito no Código Penal que, todavia, permanece silenciada pela Lei 11.340/2006, tendo em vista que para esta apenas a mulher figura como sujeito do pólo passivo.
Vale frisar que, em Goiânia, foi feito um mapeamento pela Secretaria de Saúde de Goiás no qual aponta os bairros que tiveram os maiores números de casos de violência doméstica em Goiânia neste ano de 2014. Segundo este, foi identificado que vítimas do sexo masculino representam 44% dos casos de violência doméstica nos mesmos bairros.
No dia 27 de outubro do presente ano foi realizada entrevista com a Promotora de Justiça Rúbian Corrêa Coutinho da 63ª Promotoria de Justiça dos Direitos da Mulher. Ao se questionar a possibilidade do homem ser vítima de violência doméstica e familiar, a mesma explicou:
“O homem que por ventura esteja em situação de violência doméstica e familiar, muitas das vezes ele não externaliza isso por medo de se sentir discriminado, ridicularizado.
[...]Do mesmo jeito como a mulher bate na porta de uma delegacia e pede amparo e ela é mal atendida, mal compreendida, inclusive é desestimulada a tomar providência, essa mulher sofre de uma violência de gênero.
O homem também sofre por outro lado quando ele vai também a delegacia ou a um outro local de serviço de atendimento e lá também ele é visto com um ar assim de jocosidade, brincadeira em relação a situação em que ele está enfrentando.
Então ele se sente ridicularizado e muitos não colocam por medo exatamente desse julgamento que a sociedade impõe, exatamente por essa cultura desenvolvida pelo patriarcalismo, dessa relação de poder que sempre a sociedade no estabelecimento dos papéis de homem e mulher estabeleceram (Sic.)”.
O nobre doutrinador Rogério Sanches Cunha (2009, pg. 30) ensina:
“A Lei 11.340/2006 extraiu do caldo da violência comum uma nova espécie, qual seja, aquela praticada contra a mulher (vítima própria), no seu ambiente doméstico, familiar ou de intimidade (art. 5º).
Nesses casos, a ofendida passa a contar com o precioso estatuto, não somente de caráter repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial, criando mecanismos aptos a coibir essa modalidade de agressão.
Não queremos deduzir, com isso, que apenas a mulher é potencial vítima de violência doméstica. Também o homem pode sê-lo, conforme se depreende da redação do §9º do art. 129 do CP, que não restringiu o sujeito passivo, abrangendo ambos os sexos. O que a lei comento limita são as medidas de assistência e proteção, estas sim aplicáveis somente à ofendida (vítima mulher)”.(grifos nossos)
Conforme as citações supramencionadas, pode-se afirmar que o homem também é vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto. Porém, desamparado pela Lei 11.340/2006.
Negar ao homem o direito de proteção em paridade com a mulher é abdicar ao Fundamento Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, é abandonar os Direitos Humanos e dilacerar a Carta Magna, fechando os olhos ao disposto no artigo 5º quando diz que: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
2.2. O sujeito a ser protegido pela Lei Maria da Penha à Luz do neoconstitucionalismo
Tipos penais que discriminavam o homem foram alvo de recentes mudanças legislativas, corrigindo a odiosa discriminação, como aconteceu com o estupro e com a violência sexual mediante fraude. Vejamos:
a) Anteriormente:“Estupro - Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:”(negritos nossos)
b) Atualmente: “Estupro - Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)”(negritos nossos)
c) Antes: “Posse sexual mediante fraude - Art. 215 - Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude: (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)”(negritos nossos)
d) Hoje: “Violação sexual mediante fraude (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)”(negritos nossos)
Tendo em vista que a legislação evoluiu ao reconhecer que não só as mulheres, mais os homens também poderiam ser vítimas de estupro, assim como, de violação sexual mediante fraude, ao Código Penal foi dada uma nova redação estendendo a todos a possibilidade de denúncia.
Pois, o que antes não era crime, não podia ser denunciado e consequentemente gerava impunidade aos violentadores de homens e a revolta para quem sofria esse tipo de violência.
Aceitar que a Lei Maria da Penha só pode ser aplicada as mulheres é cometer o mesmo erro jurídico do caso suso. Desta forma, a proposta que se faz é dar uma nova roupagem a redação da Lei, onde uma palavra pode mudar a vida de muitos. Vejamos:
a) Como é no tempo presente:“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.(tachados e negritos nossos - texto original)
b) Como deveria ser futuramente: “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra alguém qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. (negrito nosso - texto fictício)
Para juíza de direito Ana Cláudia Veloso Magalhães:
“Como pilar de todo ordenamento jurídico constitucional e o maior de todos os direitos e garantias fundamentais das pessoas se desnuda o primado da dignidade da pessoa humana, sendo este um valor construído a partir da análise de um caso concreto. Assim, o direito à dignidade é fundamental, cláusula pétrea! É a tutela de todas as pessoas, sejam elas mulheres, negros, pobres, homossexuais, índios, presos, portadores de deficiência, idosos, crianças e adolescentes[...]”.
Nesta linha, fica claro que o princípio mencionado tem como núcleo a pessoa humana, não importando suas características individuais. Portanto, excluir ou não reconhecer direitos a uma pessoa apegando-se à sua orientação sexual, seria conceder tratamento indigno ao ser humano, ignorando a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana.
Através das inspiradoras palavras da magistrada, pode-se afirmar sem sombra de dúvida que não amparar o homem que se encontra no papel de ofendido em uma situação de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto é violar o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, ou seja, é transgredir um valor moral e espiritual inerente ao ser humano.
Em entrevista com o jornalista Wanderley Araújo do programa Opinião, a psicóloga Simone Alvim, autora do livro “Homens, mulheres e violência” relatou:
“A primeira vez que eu tive um contato com uma situação dessa que me despertou para esse assunto, eu estava ainda no primeiro período da faculdade, eu trabalhava em uma clínica de teste psicológico (psicotécnico para trânsito) e era um sujeito que veio para reteste, que era um teste mais individualizado [...] e ele estava muito nervoso.
É um teste que a gente faz uma anamnese, conversa um pouco até a pessoa está mais relaxa, até pelo próprio contexto do teste e esse homem não relaxava de jeito nenhum e em um dado momento eu toquei na questão, perguntei se ele estava com algum problema em casa, se estava acontecendo alguma coisa porque ele estava muito nervoso e isso interferiria no teste.
Ele começou a chorar, ficou desesperado e soluçava e não conseguia falar o que que era, depois de um tempo, tentando acalmar, ele acabou relatando que vinha sofrendo violência física da esposa quase que cotidianamente e começou a me mostrar as marcas, assim, levantou a perna, a calça para me mostrar as marcas, ele tinha marcas nas costas, que apanha com um cabo de vassoura. Foi a primeira vez que eu ouvi falar sobre isso.
Passou mais um tempo eu, em uma disciplina de pesquisa fiz um questionário fechado, disciplina simples de resposta sim ou não, marcar ‘x’, e me chamou atenção as estatísticas que apareceram nessa pesquisa que eram quase que iguais as taxas de homens que se declaravam vítimas de violência conjugal, ao namoro, ao casamento, em relação as mulheres, então isso foi uma coisa que me chamou atenção.
[...]Desses homens que eu entrevistei, somente um realmente conseguiu dar cabo ao processo, chegar ao final, ter uma sentença e ser beneficiado por ela, mas isso só aconteceu depois que ele conseguiu um boletim médico porque ele já tinha tentado várias vezes fazer uma denúncia (ele foi em delegacias diferentes), ou o delegado não acreditava na história que ele estava relatando, ou dizia uma coisa que é muito comum se ouvir por parte dos serviços de segurança do modo geral, que “briga de marido mulher, não se mete a colher”, que isso é um assunto privado para ser tratado em casa, ou faz chacota, faz o cara se sentir humilhado e ele desiste de voltar ali ou de registrar a ocorrência, então realmente o homem está bastante desamparado.
A minha sugestão é que a gente tenha um serviço, não necessariamente do homem ou da mulher, não adianta segmentar tanto o serviço, mas especializar uma parte do sistema judiciário, delegacias e da assistência de um modo geral para a violência doméstica, que tenha psicólogos, assistente social, que esteja mais preparado para lhe dar com essas questões que não são pura e simplesmente violência, não é por exemplo, um assalto que você resolve impessoalmente.
[...]As mesmas questões que as mulheres sofrem em relação a vergonha, a humilhação, a desonra, por sofrer violência do marido, os homens sentem com uma dosezinha a mais por ser homem, não se espera que o homem vá apanhar de mulher, então tem um preconceito em relação à masculinidade dele, isso é colocado em xeque.
Eu tenho um casal a mostra que na época da entrevista já estava um ano e meio sem ter relação sexual, por exemplo.Ele questionava a própria sexualidade, ele achava que ele tinha ficado impotente e ele me conta nesse momento (ela na sala de espera para ser entrevistada), ele me conta que ele tinha traído com uma colega de trabalho para ele ter certeza que ele funcionava. [...] Mas essa mulher bateu nele (eles tinham uns dez anos de relacionamento) ele já tinha apanhado sete vezes na rua (dentro de ônibus, na igreja) [...]”.
O que acima se lê, retrata uma realidade que embora não seja conhecida por todos, não deve ser silenciada pela justiça. Não podemos vendar os olhos e fingir que esses fatos são fictícios. O homem vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto merece o mesmo amparo que a mulher pelo Estado.
3. Princípio da isonomia
3.1. A essência do Princípio da Igualdade
De acordo com o dicionário jurídico (2007, pg.371), hermenêutica jurídica se define como: “conjunto de princípios gerais que devem ser respeitados e seguidos na interpretação da lei aplicada a caso concreto”.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos o artigo 1º assegura que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
A Magna Carta garante no caput do artigo 5º que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)” e reafirma no inciso I que: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”.
Portanto, o Princípio da Isonomia é previsão internacional e constitucional do ordenamento jurídico brasileiro. Por isso, basilar no que diz respeito a interpretação da lei.
Cada dia que passa o mundo evolui, os pensamentos mudam, os valores se transformam. O Brasil lutou e hoje vive em uma democracia. Acontece que as sociedades democráticas estão fundamentadas nos valores da liberdade e da igualdade.
Norberto Bobbio (2001, pg.5) salienta que:
“Os dois valores da liberdade e da igualdade remetem um ao outro no pensamento político e na história. Ambos se enraízam na consideração do homem como pessoa. Ambos pertencem à determinação do conceito de pessoa humana, como ser que se distingue ou pretende se distinguir de todos os outros seres vivos. Liberdade indica um estado; igualdade, uma relação.
O homem como pessoa – ou para ser considerado como pessoa – deve ser, enquanto indivíduo em sua singularidade, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade. [...] liberdade e igualdade são os valores que servem de fundamento à democracia.
Entre as muitas definições de democracia, uma delas – a que leva em conta não só as regras do jogo, mas também os princípios inspiradores – é a definição segundo a qual democracia é não tanto uma sociedade de livres e iguais (porque, como disse, tal sociedade é apenas um ideal-limite), mas uma sociedade regulada de tal modo que os indivíduos que a compõem são mais livres e iguais do que em qualquer forma de convivência.
A maior ou menor democraticidade de um regime se mede precisamente pela maior ou menor liberdade de que desfrutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdade que existe entre eles”.(grifos e negritos nossos)
No que tange a liberdade, a Magistrada Ana Cláudia Veloso Magalhães ensina:
“Merece referência o princípio da liberdade, que se desdobra em liberdade sexual, também previsto em nossa Carta Magna, devendo ser entendido como aquele em que o indivíduo pode agir da maneira que deseja, desde que não contrarie as regras esculpidas no ordenamento jurídico.”
Direito à liberdade sexual, à autonomia sexual, à privacidade sexual, ao prazer sexual e à informação sexual livre de discriminações são alguns dos desdobramentos mais importantes dos primados da Igualdade e da Liberdade, que regulamentam a tutela da sexualidade.
É por pertencer a um Estado Democrático de Direito, que não se deve admitir imposição da opção sexual, sendo dever todos respeitar e serem respeitados em suas respectivas proteções e orientações sexuais.
O princípio da liberdade sexual garante ao indivíduo, sujeito de direitos e obrigações, a livre escolha por sua orientação. Desse modo, todas as pessoas são livres, para escolher com quem se relacionam e com quem pretendem constituir família.
A partir do momento que o Estado impõe restrições a esse direito, ele está agindo de forma discriminatória, violando, especialmente, o primado da liberdade.
No que diz respeito a igualdade, o constitucionalista José Gomes Canotilho (1999, pg.399) com suas circunspectas palavras afirma: “ser igual perante a lei não significa apenas aplicação de leis igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos”.
Neste sentido, entende-se que a lei deve ser aplicada sem analisar qualidades pessoais dos cidadãos.
Não tolerar que o homem também pode ser vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto e por isso não merece amparo às medidas protetivas previstas na Lei 11.340/2006 é um retrocesso do que hoje chamamos de País democrático.
Importa e faz-se necessário que a Lei proteja à todos indistintamente, assim como os Direitos Fundamentais que se estendem à toda a sociedade. No entanto, verifica-se uma contradição entre a Lei 11.340/06 e a Lei das Leis.
Se a Lei Maior traz o princípio que defende a igualdade sem qualquer tipo de distinção entre os indivíduos, porque há esta diferenciação na Lei Maria da Penha, protegendo apenas a mulher como vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto?
Neste sentido, se faz necessário o desapego à formalidades de forma a se estender ao homem todas as proteções esculpidas no nosso ordenamento jurídico, com as tintas fortes da liberdade e da igualdade, no quadro hodierno da Lei Maria da Penha.
3.2. Decisões acerca da aplicabilidade da Lei 11.340/06 em relação a homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e transgêneros figurando no pólo passivo
Antes de adentrar ao mérito, é de grande valia mencionar dois artigos importantes presentes na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, quais sejam:
a) “Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
b) “Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
No que diz respeito ao artigo 4º da LINDB, ao magistrado foi dada a possibilidade de usar da analogia quando a lei não prever solução ao caso concreto.
Neste sentido, há várias decisões espalhadas no judiciário brasileiro, a exemplo da proferida pelo juiz Mário R. Kono de Oliveira (Cuiabá-MT), que sublinhou: “o homem que, em lugar de usar violência, busca a tutela judicial para sua situação de ameaça ou de violência praticada por mulher, merece atenção do Poder Judiciário”.
Pertinente ainda ao artigo supra, é de conhecimento dos operadores do Direito que, diante da falta de norma regulamentadora, para aplicação em um caso concreto, pode o magistrado decidir com base, por exemplo, nos princípios gerais do Direito.
Assim, partindo da premissa de que o que não é proibido é permitido e do conhecimento de que, no ordenamento jurídico, o que prevalece são os princípios constitucionais, entende-se que seria inconstitucional não proteger os homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e os transgêneros contra agressões praticadas pelos seus companheiros ou companheiras valendo-se do Princípio da Paridade das Armas.
No que tange ao artigo 5º da LINDB, aperfeiçoando o previsto no artigo 4º do mesmo diploma, tendo em vista que o Brasil vive hoje o neoconstitucionalismo, pois o nosso ordenamento jurídico tende a acompanhar a evolução cultural da sociedade, ou seja, o direito caminha conforme as necessidades sociais.
Abre-se a possibilidade de aplicação da Lei 11.340/06 a homens vítimas de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, tendo em vista a exigência de se fazer valer o Princípio da Isonomia.
Tendo em vista que o sexo masculino também é vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, vale citar decisões amparando ao homem, seja heterossexual, homossexual, transexual, travesti ou transgênero:
a) Do nosso Ilustre Tribunal: “Goiás- Anápolis - Aplicabilidade da Lei Maria da Penha na transexualidade. (TJGO, Autos 201103873908, 1ª Vara Criminal, Juíza de Direito Ana Cláudia Veloso Magalhães, j. 23/09/2011)”.
b) Do Exímio Tribunal do Rio de Janeiro: “Rio de Janeiro - Concessão de medida protetiva ao homem em face de agressões de que foi vítima por parte de seu companheiro. (TJRJ, Processo nº 0093306-35.2011.8.19.0001, 11ª Vara Criminal, Juiz Alcides da Fonseca Neto,j. 18/04/2011 )”.
c) Do Conspícuo Tribunal do Rio Grande do Sul: “Rio Grande do Sul – Rio Pardo – Concessão de medida protetiva ao homem em face de agressões de que foi vítima por parte de seu companheiro. (TJRS, Processo nº indisponível, Juiz Osmar de Aguiar Pacheco, j. 23/02/2011)”.
d) Do Preclaro Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul:
“A inovadora Lei 11.340 veio por uma necessidade premente e incontestável que consiste em trazer uma segurança à mulher vítima de violência doméstica e familiar, já que por séculos era subjugada pelo homem.
É certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal, firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: ‘Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal’.
Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: ‘Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz’ (DAMÁSIO DE JESUS – Direito Penal - Parte Geral – 10 ed. p. 48).
Ora, se podemos aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um crime. Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Poder Judiciário para fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia. È sim, ato de sensatez (...).
E compete à Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de solução de conflitos e paz social. Defiro o pedido e determino à autora do fato o seguinte:
1) que se abstenha de se aproximar da vítima, a uma distância inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local de trabalho;
2) que se abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja por telefonema, e-mail, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se o competente mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até em prisão”. (J.E.C.U – MT – Proc º 1074/2008)”.
e) Do Notável Tribunal do Mato Grosso – “Primavera Leste - Aplicação de medidas protetivas a homem ameaçado por ex-companheiro. Lei Maria da Penha. (MT, Proc. nº 6670-72.2014.811, Juíza de Direito Aline Luciane Ribeiro Viana Quinto, j. 29/07/2014)”.
f) Do Insigne Tribunal de Santa Catarina:
“Conflito negativo de competência. Violência doméstica e familiar. Homologação de auto de prisão em flagrante. Agressões praticadas pelo companheiro contra pessoa civilmente identificada como sendo do sexo masculino.
Vítima submetida à cirurgia de adequação de sexo por ser hermafrodita. Adoção do sexo feminino. Presença de órgãos reprodutores femininos que lhe conferem a condição de mulher.
Retificação do registro civil já requerida judicialmente. Possibilidade de aplicação, no caso concreto, da lei n. 11.340/06. Competência do juízo suscitante. Conflito improcedente. (TJSC, Conf. Jurisd. 2009.006461-6, 3ª Vara Criminal, Rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 29/06/2009)”.
g)Do Nobre Tribunal de Justiça do Espírito Santo:
“Conflito negativo de competência. Relação materno-filial. Mãe e filho. Possibilidade de aplicação das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha quando a vítima for do sexo masculino.
A aplicação da analogia não implica alteração da competência. A vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher pressupõe que a vítima seja do sexo feminino.
Conflito julgado procedente. A Lei n° 11.340/06 deve ser tratada como uma lei de gênero, que se destina a proteger a mulher, em face de sua fragilidade dentro de um contexto histórico, social e cultural.
Neste caso, entendeu-se que as mulheres são seres que merecem atenção especial, dado o contexto de violência e submissão que frequentemente se encontram inseridas.
Verifica-se perfeitamente possível estender as medidas protetivas, de caráter não penal, previstas na Lei n° 11.340/06 em favor de qualquer pessoa (sujeito passivo), desde que a violência tenha ocorrido dentro de um contexto doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo.
Nesse caso, a pessoa a ser protegida pode ser tanto o homem quanto a mulher”. (TJES, Conflito de Competência 100120021330, 2 Câmara Criminal, Relator Sérgio Luiz Teixeira Gama, Julgado em 05/09/2012)”.
h) Do Notável Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
“Se a norma constitucional garante não apenas a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5.º, I), cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, § 8.º) e confere competência legislativa à União para legislar sobre direito penal e processual penal (no art. 22, I), não há dúvida de que a Lei Federal 11.340/2006 deve ser interpretada afastando-se a discriminação criada e não negando vigência à norma por inconstitucionalidade que é facilmente superada pelo só afastamento da condição pessoal de mulher nela existente.
Basta ao intérprete afastar a condição pessoal de mulher em situação de risco doméstico, suscitada na sua criação, para que não haja qualquer inconstitucionalidade possível, estendendo-se os efeitos da norma em questão a quaisquer indivíduos que estejam em idêntica situação de violência familiar, ou doméstica, sejam eles homens, mulheres ou crianças.
A leitura da Lei Federal 11.340/2006, sem a discriminação criada, não apresenta qualquer mácula de inconstitucionalidade, bastando afastar as disposições qualificadoras de violência doméstica à mulher, para violência doméstica a qualquer indivíduo da relação familiar, para que seja plenamente lícita suas disposições.
Neste contexto, inexiste a condição de inconstitucionalidade decorrente da discriminação produzia, mas tão somente uma imposição inconstitucional que deve ser suplantada pelo intérprete equiparando as condições de homem e mulher, de modo a permitir a análise da pretensão que é da competência do Juízo que afastou a incidência da norma” (TJMG, ApCrim 1.0672.07.249317-0, j. 06.11.2007, rel. JudimarBiber, data da publicação 21.11.2008)”.
Solidificado estes entendimentos, extrai-se que a falta de previsão legal não é óbice à atuação do Judiciário. Contudo, vale trazer também a reportagem do Jornal A TRIBUNA, de Santos por Eduardo VelozoFuccia:
“À dona de casa Maria será imposta pena de R$ 100,00 cada vez que se aproximar a menos de 100 metros do ex-marido, o funcionário público João, ou inserir dados a seu respeito na internet ou qualquer outro meio de comunicação. Os nomes são fictícios, mas a história não.
Ela acontece em Praia Grande e é alvo de decisão judicial inédita na Baixada Santista e raríssima no País, porque deriva de interpretação extensiva da Lei nº 11.340, de 7 agosto de 2006. Conhecida por Lei Maria da Penha, essa legislação foi concebida para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher.
No entanto, a juíza auxiliar do Juizado Especial Criminal (Jecrim) de Praia Grande, Luciana Viveiros Corrêa dos Santos Seabra, a aplicou em benefício de um homem. Para não incorrer em ilegalidade, uma vez que expressamente a Lei Maria da Penha prevê como sujeito passivo (vítima) apenas a mulher, a juíza confrontou a legislação com outros dispositivos do ordenamento jurídico.
‘A decisão foi tomada com base no poder geral de cautela do juiz. Se ao juiz coubesse uma aplicação fria da lei, sem uma análise do caso concreto, bastaria ele lançar o problema para um computador resolvê-lo matematicamente’, justificou a magistrada”.
Inspiração.
A juíza Luciana, porém, admitiu ter decidido sob a "inspiração" da Lei Maria da Penha, porque a obrigação imposta à acusada está prevista na legislação especial de proteção às mulheres. Para a magistrada, a solução encontrada objetivou apenas proporcionar justiça.
O Capítulo II da Lei Maria das Penha especifica as medidas de proteção de urgência que obrigam o agressor a fazer ou a deixar de fazer algo. Entre elas está a proibição de aproximação da ofendida, conforme a redação original, fixando o limite mínimo de distância entre esta e o agressor.
Tal medida, de acordo com o Artigo 22 da Maria da Penha, é cabível quando for constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda conforme o texto legal. Mas no caso específico de Praia Grande, João é quem se beneficia da proteção. Maria é a vilã. [...]
Tratamento isonômico.
Sobre a aplicação de medida prevista na Lei Maria da Penha para garantir a proteção do cliente, que é homem, Gisele e Samira a consideraram válida. De acordo com elas, a decisão da magistrada vai ao encontro da isonomia consagrada na Constituição Federal.
O caput (cabeça ou parte inicial) do Artigo 5º da Carta Magna diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O inciso I do mesmo artigo reforça essa isonomia, especificando que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
O pedido das advogadas recebeu o aval do promotor de justiça Fernando Pereira da Silva e foi deferido pela juíza, inclusive em relação à expedição de ofício à empresa Google, responsável pelo Orkut. No documento encaminhado ao Google pelo Jecrim é requisitada a exclusão do perfil de Maria do site de relacionamentos, em razão dela utilizá-lo para ofender e ameaçar o ex-marido.
A divulgação indevida de dados pessoais de João pela internet também fundamentou a decisão. A Tribuna procurou a acusada, mas ela nada quis declarar (Sic.)”.
Por fim, é de grande valia mencionar o precioso voto do Ministro Sálvio de Figueiredo, do Superior Tribunal de Justiça, no qual nos ensina que:
“A vida, enfatizam os filósofos e sociólogos, e com razão, é mais rica que nossas teorias. A jurisprudência, com o aval da doutrina, tem refletido as mudanças do comportamento humano no campo do direito de família.
Como diria o notável De Page, o juiz não pode quedar-se surdo às exigências do real e da vida. O direito é uma norma essencialmente viva. Está ele destinado a reger homens, isto é, seres que se movem, pensam, agem, mudam, se modificam.
O fim da lei não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e sim manter contato íntimo com esta, segui-la em sua evolução e adaptar-se a ela (...). Em outras palavras, a interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil” (RSTJ 129/364) (Sic)”.
Será que pedir apenas que se faça valer o princípio mais conhecido entre juristas e também previsto explicitamente na Constituição Federal, qual seja o Princípio da Isonomia, é pedir demais?
Conclusão
Decisões de magistrados estendendo a aplicação da Lei nº. 11.340/2006, originalmente destinada a proteger apenas a mulher, apesar de aparentemente serem incoerentes no plano formal, representam a concretização de uma coerência moral, pois sela um compromisso da justiça para solucionar o caso concreto, zelando um princípio maior constitucional – o da Isonomia.
O formalismo excessivo corrompe a essência do direito e não resolve as atuais situações aludidas pela sociedade. De tal modo, as normas não devem ser entendidas como tendo um caráter imutável, fixo, inquestionável, canônico, estático. Ao contrário, é papel do aplicador do direito atualizar no processo hermenêutico tais normas segundo a mutabilidade das circunstâncias históricas e a moral política social.
É, pois, função do aplicador, dentro de parâmetros razoáveis, estender a norma, em nome da equidade e da isonomia, para alcançar a justiça. O direito justo não se esgota no direito positivo. Summus jus, summa injuria – Excesso de justiça, excesso de injustiça. Em outras palavras, a aplicação rigorosa da lei pode ensejar injustiças.
Ademais, foi o resgate da interação entre a concretude social e a abstração legal que levou o Supremo Tribunal Federal a, recentemente, estender a casais homoafetivos o direito a união estável, adoção, benefícios previdenciários, etc. Isso nada mais é do que o resultado da luta de movimentos sociais em prol do seu reconhecimento como sujeitos de direitos.
Portanto, homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e transgêneros são cidadãos como os demais indivíduos da sociedade e sujeitos de direitos. Dentro desse contexto, busca-se não seguir à risca as formalidades, o texto literal da Lei 11.340/06, mas sim sua contextualização no âmbito atual, o que está implícito. Logo, privá-los de uma proteção, configuraria uma forma terrível de preconceito e discriminação, algo que a Lei Maria da Penha busca exatamente combater.
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