por Helô D’Angelo
Nada de calma: a bossa dela é treta. Yzalú leva nas longas tranças a força das mulheres que abriram caminho para ela: Dina Di, Lauryn Hill, Gal Costa e tantas outras. Nascida Luiza Yara, a rapper começou na música aos 15 anos e, aos 33, lança o álbum “Minha Bossa É Treta” – uma compilação de cantos sobre diferentes lutas: o feminismo, a questão social, a militância antirracismo e também o ativismo pelos direitos das pessoas com deficiência.
Toda essa força já fica evidente na capa do disco: Yzalú aparece nua, com as tranças entrelaçadas ao violão, e mostrando, pela primeira vez, a prótese que usa na perna direita. “Quero mostrar às pessoas que eu existo. E que, se eu existo, elas existem, também”, conta. Em entrevista, ela fala sobre o papel da mulher no rap, a apropriação do gênero pela classe média e a questão da revista vexatória, parte da inspiração do disco. Confira:
Eu, tu, elas: Como você começou a cantar?
Yzalú: Eu não queria fazer música, a música que me encontrou. Aos 15 anos, eu comecei a tocar violão e fui morar em Salvador, porque meu pai é de lá. É uma cidade muito musical, e lá eu aprendi muito. Três anos depois, voltei para São Bernardo do Campo e entrei em contato com o rap através do Essência Black, um grupo feminino. Comecei só tocando violão, porque eu era muito tímida, e o violão era meu escudo. Depois, eu conheci outros grupos de rap de São Bernardo e fui me envolvendo, mas o momento determinante para eu ficar foi um papo que eu tive com a Dina Di, em um evento que do Dexter [rapper]. Eu achei incrível, porque eu não era conhecida, mas mesmo assim ela me tratou como igual. Eu falei que tocava violão, ela disse que também tocava e me deu a maior força. Foi ali que eu entendi o que era ser uma mulher dentro do rap, foi lindo. Era a deixa que eu precisava.
Por que você escolheu o rap?
O rap é contestação. E a minha condição de mulher, negra e periférica, com uma limitação física, já é contestadora. Eu entendi que o rap seria o meu espaço de fala, para falar sobre a minha realidade, que é a realidade de muitos outros, também. Às vezes a gente se entende por minoria e, na verdade, é uma maioria. No começo eu fazia releituras de raps no violão e até tocava outros ritmos, como a MPB, mas fui percebendo que o rap tinha muito mais a ver com o que eu via ali na minha quebrada.
O rap é um espaço de protesto da periferia. Hoje, porém, o ritmo tem sido muito apropriado pela classe média – a gente vê isso com o Criolo, por exemplo. O que você acha disso?
A classe média também quer consumir nossa música, e eu não vejo com maus olhos. Acho que é uma forma de eles saberem mais sobre a nossa realidade na periferia. A música do Criolo nasceu no Grajaú, mas é legal que ela transcenda para outros ouvidos, porque o público é um só. Claro, existe uma diferença de realidade que a gente não pode ignorar, mas eu não posso impedir que uma mina branca, por exemplo, se enxergue na música “Mulheres Negras”. É a mesma coisa no feminismo: existem feministas brancas que se sensibilizam com a causa das minas negras, e as feministas precisam estar abertas sempre ao diálogo. Então, se existe uma classe média que consome o rap, eu espero que seja da melhor maneira: entendendo que a realidade vai além daquele quarteirão. O rap não quer limitar os ouvintes; ele quer ouvido.
Uma das suas músicas mais famosas é a “Mulheres Negras”. Você pode falar um pouco sobre ela?
“Mulheres Negras” é uma letra composta pelo Eduardo, ex-Facção Central. Eu comecei a cantar sem saber o quanto a música iria repercutir. Em 2008, fiz um vídeo caseiro, cantando “Mulheres Negras” e dali foi surgindo a Yzalú. A partir do sucesso desse vídeo, as coisas foram se desenrolando: participei do DVD do Detentos do Rap, e o do Realidade Cruel, e apresentei o “Mulheres Negras” no projeto Divas do Hip Hop de forma declamada. É um poema muito importante para a nossa sociedade, uma letra verdadeira sobre a realidade das negras. E aí, muitas minas do feminismo negro acabaram usando essa música em frentes feministas, nas universidades, nas escolas.
Seu álbum, “Minha Bossa É Treta”, une diversar lutas e militâncias. Como foi o processo de criação?
A criação do “Minha Bossa É Treta” foi um processo muito longo, e o disco é complexo. Foram 3 anos de investimentos meus e dos meus amigos, com a ajuda de vários rappers bacanas. Mas acho importante dizer que o álbum não teria saído antes de eu passar tudo o que eu passei. É a primeira vez que eu falo da minha condição física, por exemplo. E eu sou mulher, negra, periférica e estou há 13 anos na caminhada. Não é fácil. Já é dificil ser homem no rap, imagina ser mina? Então, temtodo um universo que precisa ser contado, que é o universo da mulher. Acho que o resumo desse álbum é a visão da mulher dentro desse cenário. Estou muito orgulhosa dele.
E como é ser uma mulher no universo do rap?
É um olhar diferente, porque o nosso universo é diferente: a mulher negra sofre a opressão tanto machista quanto racista, e isso acaba sendo traduzido na arte também. É um desafio ser mulher no rap, mas acho que não tem mais para onde correr: as mulheres estão aí. O mercado é dominado por homens, sim, mas eu os admiro e aprendi muito com eles. Eu tive parceiros sensacionais como o Maurício DTS, do Detentos do Rap, o Daniel Sansi, O Douglas, do Realidade Cruel, o Mano Brown, o Eduardo, ex-Facção Central… Essas são pessoas que eu cresci ouvindo, e que sempre me ajudaram. Então eu, pessoalmente, não sofri machismo no rap. E tem mais: a gente não pode colocar a conta toda no rap porque a sociedade já é machista. Mas as mulheres vêm, sim, mostrando que o rap é uma linguagem universal, e não só dos homens.
E como é a relação entre as mulheres neste cenário?
É incrível. A gente vai se ajudando umas às outras: a Karol Conká, por exemplo, sempre me dá a maior força. Hoje, no rap, a gente tem mulheres como eu, a Flora Mattos, a Tássia Reis, a Lurdez da Luz, a Mc Soffia, a Karol Conká, todas se ajudando, se puxando para cima. E eu sei que, se não fossem as primeiras minas do rap, como a Dina Di, nós não estaríamos aqui hoje. A gente tem que ser grata a essas mulheres, que abriram caminho. A própria Dina Di falou isso em uma rima: “Se as minas resolverem se juntar, muito mano vai se desesperar”. Não que eles precisem se desesperar, claro. Mas eles precisam perceber que nós também temos coisas pra falar. Quem sabe um dia a gente possa estar todo mundo junto?
Na música que dá o título do álbum, você canta sobre a revista vexatória. De onde veio a inspiração para tratar de um tema tão delicado?
Em 2011, eu participei de algumas oficinas do projeto Como Vai Seu Mundo, do rapper Dexter, onde tive contato com o pessoal que está do lado de lá [os presos]. Acabei ouvindo muitas histórias de revistas vexatórias, histórias que mexeram muito comigo. No ano passado, eu compus essa música, depois de ouvir denúncias de mulheres que passaram por isso – a maioria delas, negras da periferia sem a mínima condição, sem o mínimo empoderamento. Nas denúncias, essas mulheres se identificavam apenas pelas iniciais para proteger os entes queridos que estão presos, porque elas sabiam que qualquer reclamação poderia gerar problemas para o preso.
A revista vexatória, então, é um ponto de partida para falar de algo muito mais amplo, certo?
Sim, exato. Este assunto é muito delicado, porque a mulher precisa se submeter a uma situação terrível, mas a gente esquece que, no momento em que a mulher sai da casa dela, ela já começa a sofrer opressões. Depois de tudo isso, eu aprendi que, nessas revistas, só é encontrado alguma coisa comprometedora em menos de 0,5% dos casos. Então, por que continuar com isso? Só para que a mulher se sinta ainda mais humilhada? Se uma mulher é humilhada a esse ponto, qual é a possibilidade de ela erguer a cabeça e lutar? Essa música é altamente empoderadora. Compondo “Minha Bossa É Treta”, eu percebi que essas mulheres também não têm voz na sociedade, e me enxerguei nelas. Acho que o meu papel é este, também: fazer o mundo perceber que as questões que parecem pequenas, na verdade, são muito profundas. A revista vexatória tem a ver com os direitos da mulher.
Antes de “Minha Bossa É Treta”, você nunca havia falado sobre a sua prótese. Mas agora, você decidiu estampar o disco com uma foto que coloca isso em evidência. Por que agora?
Eu pensei em falar disso agora porque nós não temos voz. 25% da população tem alguma deficiência, mas não se vê representado em lugar nenhum. Muitos deficientes se isolam porque sentem que têm uma limitação. Eu não chamo de limitação. Acho que é algo que eu tenho, é meu, e cada um carrega consigo os seus destinos. Eu não falei disso antes, no início da carreira, porque eu não queria que isso fosse um motivo para as pessoas gostarem de mim, um motivo de pena. No álbum, minha ideia é humanizar as pessoas e dizer que elas existem, e que elas podem existir, assim como eu existo e posso existir. Claro, isso não significa que minha arte seja voltada só para isso. A questão da capa é só um detalhe. Na minha vida, eu sempre fui muito tranquila em relação à minha deficiência, tive uma mãe sensacional que me educou muito bem, me mostrando que eu não sou diferente do outro porque eu tenho uma prótese. E hoje é isso, é só um detalhe.então eu queria que as pessoas enxergassem essa questão da mesma forma que eu. E a música é tão magica que a gente consegue passar essa energia para as pessoas.
Ouça a música “Minha Bossa É Treta”:
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