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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Afinal, o que é gênero?

Por Regina Soares Jurkewicz1
O objetivo deste pequeno artigo é conceituar o significado das relações de gênero de forma compreensível para que possa servir como subsídio aos grupos de mulheres, movimentos sociais e pastorais atuantes em nossa sociedade.
Quando falamos das relações de gênero, a primeira pergunta que se coloca é: afinal, o que é o gênero? Tentaremos responder a esta pergunta, evidenciando as diferenças existentes entre gênero e sexo.
Podemos dizer que gênero é o sexo social definido, ou seja, gênero não é sinônimo de sexo. Enquanto o sexo é biológico, o gênero é construído historicamente, culturalmente e socialmente. Com isto quero dizer que nascemos machos ou fêmeas, mas nos fazemos homens ou mulheres. O núcleo da identidade de gênero se constrói em nossa “cabeça”, sobretudo até os 3 anos de idade. A criança logo que nasce ganha um nome e começa a ser tratada como menino ou menina. A linguagem é poderosa no processo de construção do gênero. Incorporamos o gênero masculino ou feminino, através do aprendizado de comportamentos, hábitos, formas de pensar, concordantes com padrões definidos socialmente como masculinos ou femininos.
Alguns ditados populares nos ajudam a perceber como se dá a incorporação do gênero: “homem que é homem, não chora”, “menina brinca com boneca, menino joga bola”, “menino se veste de azul e menina de rosa”, “lugar de mulher é na cozinha”. Introjetamos essas ideias desde nossa primeira infância, de uma forma imperceptível, e essas atribuições sociais nos são apresentadas como atribuições naturais. Ao nos tornarmos adultos e adultas não percebemos que durante toda a vida nos ensinaram que a primeira “vocação” da mulher é a maternidade e por isso, muitas vezes acreditamos que as mulheres só podem realizar-se tornando-se mães. Não levamos em conta o fato de que as mulheres “aprendem” a exercer a maternagem (cuidado das crianças), mas não nascem prontas e aptas para serem mães. O que estou afirmando é que as diferenças biológicas entre homens e mulheres, não determinam e não explicam as diferentes atribuições dos homens e das mulheres na sociedade. Exemplo: “o lugar da mulher é na cozinha”, não porque sua “natureza feminina” a faz mais apta para este serviço, mas sim, porque as mulheres são treinadas desde meninas para “fazer comidinha”. Ou seja, as diferenças sociais entre os homens e as mulheres não são de ordem natural, mas sim de ordem cultural. Não estamos negando as diferenças biológicas entre os dois sexos, mas tratando de entender que as diferenças sociais entre os sexos estão construídas e são elaboradas socialmente a partir das diferenças biológicas.
A divisão sexual do trabalho não se explica naturalmente, ela é expressão de uma relação de dominação dos homens sobre as mulheres. Na divisão sexual do trabalho, tradicionalmente entendemos que as mulheres estão alocadas na esfera da reprodução, devem cuidar dos serviços domésticos e dos filhos em primeiro lugar. Se trabalham fora de casa, podem assumir serviços auxiliares, profissões tidas como femininas: secretárias, enfermeiras, professoras, assistentes sociais… desde que estas atividades não prejudiquem sua primeira missão que é a de cuidar do “lar”. Já os homens, estão “situados” na esfera da produção, e desde pequenos são treinados para assumir tarefas fora do espaço doméstico, assumir cargos de chefia e gerência, “construir o mundo” para além das quatro paredes que significam a casa. Atualmente há um embaralhamento nestas atribuições e muita coisa está mudando, porém a divisão sexual do trabalho permanece.
Se observarmos como se organizam os trabalhos pastorais, vamos encontrar no seio desta organização, a divisão sexual do trabalho. No Brasil as comunidades eclesiais de base, significaram uma ação pastoral importante. Quem manteve e mantêm a vida das comunidades? Quem faz o trabalho cotidiano, pequeno, invisível? Quem vai morar na periferia e buscar uma inserção nos setores populares? São as mulheres, leigas e religiosas. Porém quem assume a direção dos processos pastorais são, sobretudo os homens, os padres.
Pensar em termos de relações de gênero, significa desvendar os mecanismos sociais que constroem essas desigualdades. Por isso, falar em relações de gênero, é falar em relações de poder. Não se trata de ver os homens como “machistas” e as mulheres como “vítimas”. Nos referimos aos homens e às mulheres enquanto categorias sociais, independente de sua boa ou má vontade pessoal, os homens encontram-se em situação social privilegiada e as mulheres são frequentemente discriminadas. “O conceito de gênero, estabelecido como um conjunto objetivo de referências, estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social. Estas referências estabelecem distribuições de poder” (Scott, 1991).

Como nasce o pensamento e o trabalho com a categoria gênero?
Nos anos 70 o movimento de mulheres estava, sobretudo preocupado em dar visibilidade às mulheres na história e nos diferentes espaços sociais. Nas academias são desenvolvidos os “estudos de mulher”. Os sindicatos, movimentos sociais e igrejas criam ou reforçam a existência dos departamentos femininos. As mulheres ganham destaque. Os estudiosos em suas pesquisas dedicam um capítulo especial para tratar da “questão da mulher” ou o “problema da mulher”. Porém, esse interesse aparece frequentemente como um capítulo a parte, que não toca nas questões de fundo, não questiona os espaços de poder e não vê a mulher “em relação”. Procura-se compreender a vida das mulheres, sem a percepção de que é preciso para isso ter como objeto de estudo as relações sociais e os mecanismos que geram subordinação. A mulher é vítima ou heroína. Até então o objeto de estudo é a mulher, frequentemente tratada de forma singular, sem levar em conta as diferenças de raça, classe ou geração que nos obrigam a compreender as mulheres em sua pluralidade e complexidade.

Nos anos 80 o gênero aparece como categoria interdisciplinar. Vai sendo elaborado por antropólogas, historiadoras, psicanalistas, no interior das teorias feministas. A partir daí as teorias de gênero vão sendo formuladas, desnaturalizando as diferenças entre homens e mulheres. A percepção do gênero enquanto categoria explicativa das relações entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens, coloca em relevância os estudos feministas.

Ao falar em categoria, estou fazendo referência a um instrumento que nos permite explicar a realidade. Exemplificando: a pobreza é um conceito. Classe social é uma categoria que permite explicar o empobrecimento. O gênero, na medida em que é explicativo dos diferentes lugares sociais das mulheres e dos homens, têm a mesma relevância que a categoria classe social. O mesmo poderíamos afirmar sobre “raça ou etnia”, que tratará de explicar as opressões raciais. Portanto, qualquer pesquisa ou análise social não pode dispensar o uso dessas três categorias fundamentais: classe, gênero e raça.

O mito da “natureza feminina”:
Na socialização humana aprendemos que homens e mulheres têm comportamentos diferentes, assumem lugares sociais diferentes, assumem tarefas diferentes porque são “naturalmente diferentes”. As análises de gênero têm desmistificado esta crença, evidenciando como se dá o processo de construção social da feminilidade ou da masculinidade a partir das diferenças biológicas. As chamadas “características femininas” – ternura, passividade, acolhimento, fragilidade e outras – não são resultado da “natureza feminina”, e sim frutos de um processo de socialização. Assim como, as “características masculinas” – racionalidade, agressividade, objetividade, força e outras – não são resultado da “natureza masculina”.

O discurso da “natureza feminina” têm estado a serviço da subordinação das mulheres, na medida em que justifica com o argumento da natureza, as discriminações sofridas pelas mulheres.

A cultura embora seja atividade humana é apresentada como se fosse regida por leis da natureza, como algo imutável, fatal. Desmistificar a “natureza feminina” significa pensar numa nova possibilidade de relações entre os gêneros, na qual às mulheres também é dado o direito de pensar, de decidir, de ser de fato cidadã. Todo esse processo têm provocado um embaralhamento nas atribuições sexuais de mulheres e homens, e as mulheres, sem deixar de ser mulheres, cada vez mais participam dos espaços políticos, assumem lideranças, ousando transitar nos espaços tradicionalmente masculinos.

Aos homens, também está colocado o desafio de construir uma nova masculinidade, que lhes permita viver de forma plena as dimensões humanas que lhes são negadas. Possivelmente os homens serão mais felizes, quando não mais tiverem que aparentar força e segurança constante, quando se permitirem chorar, mesmo que isto lhes custe perder o lugar de “manda chuva” do planeta azul.

Referências:
1. Regina Soares Jurkewicz é Coordenadora do projeto Derechos Reproductivos, Religión y Fundamentalismos em América Latina: propuestas para el avance de los derechos de las mujeres. Acciones desde CDD Brasil y CDD Colombia. Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica – PUC SP.

Bibliografia:
CASTRO, Mary Garcia. “A dinâmica entre classe e gênero na América Latina: apontamentos para uma teoria regional sobre gênero”. In: Mulher e Políticas Públicas, Rio de Janeiro, IBAM/UNICEF, 1991, p.39-69
FERRAND, Michèle. Relações sociais de sexo, maternidade e paternidade. Tradução Soraya Tahran. Revisão da Profa. Elisabeth de Souza Lobo, 1987.
GOMÁRIZ, Enrique. Los estudios de género y sus fuentes epistemológicas: periodización y perspectivas. In Isis Internacional. Ediciones de las Mujeres, n. 17, 1992.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. S.O.S. Corpo, Recife, 1991.
SORJ, Bila. “O feminino como metáfora da natureza”. In: Estudos Feministas. Rio de Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, 1992.

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