As escolas e as famílias precisam ser referência de igualdade no tratamento de meninos e meninas
“Desde o começo do ano eu ficava constrangida com os olhares daquele professor. Até que um dia, quando eu estava no corredor esperando a aula, ele passou por mim e falou: ‘Essa calça deveria ser proibida aqui na escola, não vê como tira a atenção dos alunos e dos professores?’”. O relato dessa estudante para o documento “Por que discutir gênero na escola”, elaborado pela ONG Ação Educativa, ilustra como a desigualdade de gênero que trespassa a sociedade é também ensinada e reforçada dentro dos muros das escolas.
A discriminação e a violência contra as alunas se manifestam das formas mais diversas. Estão presentes nas falácias que abalam a autoestima e nutrem a descrença das garotas em suas capacidades como a que diz que meninos são melhores que meninas em Matemática como também na objetificação de seus corpos e no assédio moral e sexual.
Entre as consequências do machismo institucionalizado, absenteísmo, baixo desempenho escolar e autoestima, evasão, entre outros impactos negativos no desenvolvimento e aprendizagem das meninas. Segundo um estudo americano publicado recentemente na revista Science, a partir dos seis anos, as meninas começam a acreditar que são menos brilhantes e desistir de atividades desafiadoras.
A situação, infelizmente, não difere muito quando o escopo são os lares brasileiros. Desde muito cedo, as meninas são pressionadas pelas famílias para se enquadrarem dentro de um ideário limitante de feminilidade. Além disso, como mostra o estudo “Por ser menina no Brasil: crescendo entre direitos e violências”, feito pela Plan, a disparidade na distribuição de afazeres domésticos entre meninas e meninos permanece gigantesca. Um exemplo: enquanto 81,4% das meninas relataram arrumar a própria cama, apenas 11,6% dos irmãos meninos disseram desempenhar a mesma tarefa.
Dados como estes preocupam, pois mostram que a desigualdade de gênero é incitada por aqueles que mais deveriam combatê-la: pais e educadores. “A escola tem uma responsabilidade social em promover a democracia e a ampliação da cidadania. Por isso, é preocupante que acabe, muitas vezes, reforçando estereótipos e preconceitos de gênero”, diz Isis Pagy, diretora presidente da Fundação Vale.
Na visão de Isis, nos últimos anos, presenciamos uma escalada do conservadorismo que, na educação, se manifestou também na retirada das menções a gênero dos Planos Municipais de Educação. “Isso assusta, pois estamos vendo que a violência contra a mulher não está diminuindo e ainda criam-se mecanismos para impedir essa discussão. É preciso tratar as questões referentes as diferenças e desigualdades de gênero com a importância que merece”.
Amana Mattos, professora de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora na área de Infância, Juventude e Gênero, lembra que a educação se dá tanto nos espaços mais institucionalizados como a escola quanto nos menos como as relações familiares e de amizade. “Tanto em um quanto no outro, o que se vê é que as normas de gênero são transmitidas muito mais pelas práticas do que pelo discurso. Logo, você pode até dizer, com todas as letras, que meninos e meninas têm os mesmos direitos, mas se em casa ou na escola o tratamento é diferente de nada adianta”, diz.
Ao, por exemplo, exigir que apenas as meninas ajudem a lavar a louça ou colocar a mesa, as famílias estão ensinando, mesmo que inconscientemente, papéis e hierarquias de gênero. “Isso evidencia como precisamos estar sempre repensando, desnaturalizando uma série de relações e práticas que nos são muitos automáticas, apesar de desiguais”, acrescenta.
Mas como desconstruir uma desigualdade tão arraigada em nossa sociedade? Para Amana, um dos grandes problemas é que a escola funciona ainda sob uma lógica binária de gênero, isto é, o masculino e o feminino são entendidos como categorias estanques e excludentes: o que é característico de um não pode ser do outro. Além disso, o espaço escolar faz uma hierarquização dos gêneros, valorizando o masculino em detrimento do feminino. “Há estudos que mostram que quando o espaço é exíguo para a Educação Física, por exemplo, os meninos têm seu espaço do futebol preservado e as meninas ficam sem atividade física”, conta.
Desta maneira, instituir políticas que ajudem a construir um espaço mais acolhedor, que respeite as diferenças e veja na diversidade um ambiente mais rico para a aprendizagem torna-se essencial. “É muito importante que todos os educadores da escola, professores, secretário escolar, merendeira e etc., tenham a compreensão sobre as discussões relacionadas as diferenças e desigualdades de gênero”, defende Isis.
Para a especialista, o tema deve perpassar o planejamento escolar, adentrar reuniões pedagógicas e pautar materiais que sirvam de orientação para os professores e demais educadores. “Por que não trazer a história e a visão das mulheres para os conteúdos escolares? Discutir dados como diferença salarial, déficit de participação política, estereótipos de profissões masculinas e femininas e, claro, a violência fruto da desigualdade são alguns caminhos”, aponta Isis.
Carta Educação
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