Sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017
A Justiça tem buscado reduzir os casos de violência doméstica com abordagens voltadas aos homens enquadrados na Lei Maria da Penha, entre os quais estão homens com problemas de alcoolismo e drogas. Por isso, tribunais brasileiros se unem a entidades de apoio para encaminhar os agressores para tratamentos necessários.
Um exemplo é a ação desenvolvida pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Fortaleza que inclui integrantes dos Alcoólicos Anônimos (AA) nos encontros do grupo que trabalha com homens agressores. Segundo os magistrados que habitualmente trabalham com o tema, a relação entre consumo excessivo de álcool e violência doméstica é direta.
“Sou a única juíza dessa vara e posso afirmar que 90% dos casos de violência doméstica que passaram por aqui envolviam alcoolistas ou dependentes de droga ilícita”, diz Rosa Mendonça, titular do juizado. O termo alcoolista é proposto por alguns pesquisadores como uma alternativa menos estigmatizante que alcoólatra, mas se refere, igualmente, a pessoa dependente de álcool.
A vara cearense tem 20 mil processos em andamento. Lá, a parceria entre o Juizado e o AA começou em 2008 e desde então mais de 5 mil homens tiveram que frequentar, por um ano, as palestras de cunho pedagógico e humano, voltado para a conscientização.
Pinga
Em Belo Horizonte, um dos envolvidos nesse trabalho de conscientização é o Instituto Albam, que recebe homens encaminhados pela Justiça para desenvolver diversos conteúdos, como violência de gênero, paternidade, sexualidade, dependência, família, responsabilidades. A entidade pretende fazer um levantamento em 2017 para saber a proporção exata de agressores dependentes. Na avaliação de um dos psicólogos do time da Organização Não Governamental (ONG), Leonardo de Lima Leite, o resultado deverá confirmar essa relação.
“No processo de sensibilização, muitos revelam-se dependentes químicos. Estabelecemos com eles que nos dias do encontro não é permitido beber. Se estão sob claro efeito de álcool, pedimos que se retirem. A maioria deles conhece o AA e as redes locais de apoio. Não posso dizer que esse trabalho cure os dependentes, mas colocamos uma semente. No fim, a escolha é individual”, diz.
João Marcelo*, nome fictício de um homem cumprindo medidas protetivas, participa do grupo reflexivo do instituto. “Já frequentei o AA e fiquei 10 anos sem beber. Mas voltei. As recaídas fazem parte. Desde que entrei nesse grupo reflexivo para homens, venho me sentindo mais forte para não voltar, mas é difícil largar a pinga. Só sei que, quando eu tomo, fico mais cheio de coragem e também descontrolado. Qualquer discussão boba às vezes acaba em briga. Não quero mais isso”, afirma.
CNJ
Os grupos reflexivos estão em conformidade com as recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o Judiciário e com a Lei Maria da Penha (11.340/2006), que recomenda ações para prevenir a violência doméstica. No entanto, apesar da lei já estar há 10 anos em vigor, apenas 10 estados brasileiros contam com esses serviços. E mesmo nos estados onde eles existem, o número é muito menor do que o necessário para atender os milhares de casos que chegam ao Judiciário.
“Os grupos de reabilitação ajudam na tomada de consciência desses homens, mas o número de grupos é pequeno e, para que a metodologia funcione, os grupos não podem ter muitos componentes. No ano passado, fizemos um trabalho com 10 homens agressores. Mas em um universo de 6 mil processos é muito pouco”, afirma a juíza Tatiane Moreira Lima, da Vara de Violência Doméstica contra a Mulher da Região Oeste de São Paulo. Segundo ela, o trabalho hoje é voluntário, ultrapassando o horário normal de expediente e ocorre com falta de estrutura física e de pessoal.
Para a coordenadora do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do CNJ, conselheira Daldice Santana, é fundamental fortalecer as ações de prevenção de violência para que o Brasil possa sair da 5ª posição na lista de país com a mais alta taxa de feminicídio no mundo, segundo o Mapa da Violência 2015. “As carências na rede de atendimento são muitas, mas os tribunais precisam buscar supri-las. A sociedade violenta é fruto de lares semelhantes. A criança ou o jovem que presenciam cenas de violência vai perpetuar as agressões, seja na escola ou em seus relacionamentos. É por isso que esse trabalho é tão importante e potencialmente transformador”, afirmou.
Experiências
Em Paramirim, município da grande Natal o grupo Reconstruindo Self trabalha há um ano com homens que já foram presos por descumprimento de penas e reincidentes em casos de violência doméstica. A execução do projeto está a cargo do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o juiz idealizador do projeto, Deyvis Marques, aponta o trabalho em rede como um diferencial. “Trabalhar com órgãos que possuem know-how frente a esses atendimentos sociais facilita o encaminhamento desses homens em casos de alcoolismo e drogadição”, explica.
Em Vitória, no espaço Sala-Homem, da única Vara Exclusiva de Violência Doméstica da capital (onde tramitam mais de quatro mil processos com vítimas mulheres), a equipe psicossocial conversa com o agressor e, a depender da situação, pode encaminhá-lo para atendimento social ou de saúde da rede municipal. Segundo a assistente social Ingrid Mischiatte Taufner, que trabalha diretamente com os homens agressores, os alcóolatras raramente pedem ajuda. Por isso, ressalta, é tão importante o grupo reflexivo. “São seis encontros semanais e eles são obrigados a comparecer. A gente orienta, dialoga e vai quebrando as resistências. Não é fácil. Ali podemos conhecê-los um pouco melhor e encaminhá-los. É um caminho, mas não temos como garantir a mudança. Ela é gradativa e pessoal”, diz.
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