22.02.2017
Catarina Marcelino, secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, quer que a paridade de género, que tem progredido no meio laboral, entre nas casas de família, onde as tarefas domésticas continuam a ser coisa de mulher. A solução, diz, está na escola, onde a educação para a cidadania vai começar a derrubar estereótipos desde o pré-escolar. “Temos uma base cultural que precisa de uma intervenção grande”, assegura. Em casa dela está tudo em pratos limpos
Século XXI, ano de 2017. Nos lares portugueses, 72% dos homens consideram que a mulher é a pessoa mais competente para lavar e cuidar da roupa e só 2% chama a si o melhor desempenho na tarefa. Em 57% das casas acreditam que deve ser ela a cozinhar (ele 5%); em 41% a ajudar os filhos nos trabalhos de casa (ele 8%); em 44% a levar as crianças ao médico (ele 5%); em 42% a ficar com a custódia dos menores em caso de divórcio (ele 4%). Nas divisões domésticas salvam-se os pequenos arranjos e a bricolage: isso é coisa de homem, de 80% dos homens (delas 6%).
Os números saem do inquérito realizado pela GFK e pelo Social Data Lab, que entrevistou 1004 pessoas, homens e mulheres entre os 18 e os 64 anos, para traçar o perfil ao “Portugal que temos e o que imaginamos”, e que ontem, segunda-feira, foi tema da Reportagem Especial da SIC. Em matéria de igualdade de género o país é desigual.
“Estes números não são propriamente uma surpresa, mas não deixam de chocar-me, e muito. É assustador pensar que no geral as opiniões do estudo não são muito diferentes das que teríamos na primeira metade do século XX. E são estas mentalidades que são perpetuadas e que moldam a sociedade. Temos uma base cultural que precisa de uma intervenção grande, uma sociedade machista que é preciso mudar”, defende a secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino.
Em casa dela, não há margem para estereótipos. Gere-se pela lógica da partilha. “Eu trato mais da roupa, o meu companheiro mais da loiça e de despejar o lixo, mas a maioria das tarefas são divididas. Cozinhamos os dois, tratamos os dois do nosso filho”, garante. “Mas isso é quando tenho uma agenda mais compatível com a vida familiar. Neste momento em que estou secretária de Estado — eu não sou, estou — quase não há partilha, ele faz praticamente tudo. Agora sou eu que preciso de estar mais disponível para o trabalho, noutro momento pode ser ele, e nós conjugamo-nos nesta harmonia. Não é fácil, claro, mas felizmente tenho um companheiro com quem vivo há muitos anos que aceita que é assim e que enquadra bem a questão”, conta a secretária de Estado.
No estudo da GFK e do Social Data Lab, o lar de Catarina Marcelino seria a exceção à regra. “Nós reproduzimos modelos sociais desde criança e a minha família não era muito tradicional. Costumo dizer que sou feminista desde a barriga da minha mãe”. A mãe, licenciada em pintura e professora, envolveu-se nas lutas estudantis de 1969. A política, de esquerda, sentava-se à mesa lá de casa. A defesa dos direitos humanos e a justiça social eram o menu.
O exemplo familiar inspirou-lhe a solução. Como não pode entrar na casa de cada português para mudar mentalidades e derrubar estereótipos de género, a secretária de Estado arranjou uma chave alternativa: a introdução da Educação para a cidadania nos currículos do ensino público desde o pré-escolar. “Lembram-se da defesa da reciclagem e do ambiente? Começou na educação dos mais pequenos, que depois levaram esses valores para casa. E resultou. Quero que a igualdade de género faça o mesmo caminho. A escola pública forma pessoas, e formar pessoas não é só ensinar matemática”.
ELES PRINCESAS, ELAS BOB, O CONSTRUTOR
O plano, realizado em coordenação com o Ministério da Educação, arranca no próximo ano letivo, com a reintrodução nos currículos dos temas da cidadania. A área de Formação Cívica foi introduzida em 2001, mas desapareceu na última revisão, em 2012, era então ministro Nuno Crato. “Há vinte anos que se fala da educação para a cidadania, mas o facto é que nunca foi estruturante. Porque se tivesse sido estruturante não se tinha destruído tão rapidamente. Não era perfeito mas existia. Agora não existe nada”, critica a secretária de Estado. “Costumo dizer que as meninas não precisam todas de ser princesas nem os meninos o Bob, o Construtor. Tem de se explicar às crianças que os rapazes podem brincar com bonecas e as raparigas com carrinhos, que os homens podem lavar a loiça e as mulheres fazer arranjos em casa, e que isso não tem nada a ver com identidades de género de outra natureza da sexualidade.”
Catarina Marcelino vê esta alteração curricular como o motor de ignição de uma catadupa de mudanças estruturais na sociedade portuguesa a longo prazo. “A igualdade de género, os papéis do homem e da mulher na família tem muito a ver com a conciliação futura da vida privada com a vida profissional, e também vai influenciar o combate à violência doméstica porque deixam de existir desigualdades nas relações de poder. Daqui a dez anos já haverá efeitos sociais positivos”, acredita a secretária de Estado.
Vida privada. Vida profissional. No seu cargo atual — e antes, quando presidiu a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), ou quando foi conselheira municipal para a igualdade na câmara do Montijo, ou mesmo enquanto presidente das Mulheres Socialistas — Catarina Marcelino acumula histórias de mulheres de sucesso em que a criatividade de gestão entre os dois polos é o elo comum. “Aquela ideia das super-mulheres é uma coisa de que não gosto. Acho que não temos de ser super-mulheres, temos de ser pessoas normais que devem poder ser aquilo que querem ser. Claro que não é fácil gerir o dia-a-dia, mas as mulheres também se autocondicionam um bocadinho. Tenho encontrado mulheres nos conselhos de administração que fizeram as vidas delas com filhos e estão ali, chegaram ali, porque nunca se autolimitaram, nunca admitiram escolher um ou outro lado, a carreira ou os filhos”, aponta a secretária de Estado.
ATÉ ÀS 9H, CATARINA É SÓ DO JOÃO
Catarina Marcelino, 46 anos, inclui-se nesse rol de mulheres. Sem limites autoimpostos. Quando o ministro adjunto Eduardo Cabrita a convidou para o cargo aceitou imediatamente, mas com um pedido. Não ter marcações antes das dez da manhã. “Fazer a rotina da manhã com o João, que tem cinco anos, é importante para mim. E é perfeitamente conciliável. Sou eu que o acordo, que lhe dou o pequeno-almoço, que o visto, que o levo à escola no meu carro. As crianças precisam de rotinas e nós precisamos de organizar as nossas vidas em função de tudo o que temos de gerir”, explica.
Ao fim do dia — “impus-me essa regra” — esforça-se para chegar a casa antes das 21h, com João ainda acordado. Nem sempre consegue. Na passada sexta-feira, dia 17, conseguiu. Foi às 14h ao Porto encerrar o V Congresso de Saúde Pública. Quando no regresso esperava pelo avião para Lisboa, às 19h30, ligou para a churrasqueira ao pé de casa a encomendar o jantar. Aterrou às 20h30 e às 21h estava em casa e com frango para o jantar.
“Não podemos criar dificuldades mentais ao que é a normalidade num dado momento”, explica sentada num banco de jardim junto a casa, pouco depois das nove da manhã do passado domingo, no Montijo. Catarina Marcelino é de lá. O dia e a hora da entrevista foram negociados com a família. A data estava reservada para uma viagem até à Serra da Estrela. Deram-lhe uma hora, e ela cumpriu. Quando se despediu já a esperavam dentro do carro.
Expresso
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