Na quadra de futebol society da Escola Americana do Rio de Janeiro, meninas e meninos se preparam para a partida - hoje eles vão jogar juntos. São três delas e três deles em cada time, além de dois goleiros. A cena poderia ser comum, mas num país onde as mulheres são menos de 6% dos praticantes de futebol, elas são sempre a exceção.
Renata Mendonça
Renata Mendonça
Da BBC Brasil em São Paulo
29 outubro 2017
Foi assim sempre na vida de Ana Luiza, que teve que brigar com os meninos para que eles a deixassem jogar na quadra da escola no Complexo da Maré e mentir para a avó, que não a queria fazendo parte desse "esporte de menino".
Maria até contou com o apoio da mãe, que tinha jogado na infância, mas teve que provar sua qualidade para conseguir uma vaga no futebol da rua. Luiza até hoje recebe comentários preconceituosos no blog que tem para falar de meninas que jogam bola e lê coisas do tipo: "menina que joga futebol vai virar lésbica".
Elas começaram com 6, 7 ou 8 anos a jogar e foram poucas as vezes em que se viram rodeadas por outras meninas nos campos ou quadras. São eles que dominam o jogo, que ditam as regras e decidem se elas podem ou não jogar - e, mais do que isso, se vão tocar na bola ou não.
Mas, para tentar mudar essa realidade, a BBC reuniu um time de especialistas que passou a semana se reunindo no Rio de Janeiro até chegar a soluções que pudessem ser aplicadas na prática para combater o sexismo no esporte.
Helena Pacheco, técnica que revelou Marta para o mundo e que comandou por quase uma década um time imbatível no futebol feminino do Vasco, Bia Vaz, jogadora que atuou pela seleção brasileira até 2016, Maíra Liguori, ativista da ONG feminista Think Olga, Adriana Behar, ex-jogadora de vôlei de praia e gerente de planejamento esportivo do COB (Comitê Olímpico Brasileiro), Drika, técnica do projeto social de futebol Street Child, e Fernanda Nunes, remadora olímpica, formaram a equipe que passou os últimos cinco dias debatendo o problema e apresentaram neste sábado, em um jogo misto entre as crianças, uma ideia que, para elas, pode multiplicar a quantidade de meninas que joga futebol - e fazer com que elas sofram menos preconceito por isso.
"A gente acredita que é essencial para as meninas ter referências de mulheres no futebol. Poder ligar a televisão e ver futebol feminino é importante para que elas possam sonhar com isso um dia", disse Pacheco à BBC Brasil.
Se não podem alterar a programação das TVs, que não costumam exibir jogos femininos, as especialistas pensaram no Youtube como uma solução. Elas criaram o canal "Jogue como uma menina" e reuniram ali vídeos de lances bonitos de jogadoras brasileiras para que as garotas possam tê-las como referência.
No canal estão também tutoriais de dribles feitos por Ana, Maria e Luiza no Maracanã e mensagens de outras jogadoras e ex-jogadoras para inspirar as meninas que jogam e incentivá-las a não desistir.
"As meninas que jogam costumam só ter referências de homens. Os ídolos delas são homens, porque elas ligam a TV e só veem futebol masculino. Então é legal que elas possam ter mulheres para se inspirar, para saberem que podem ir longe. A ideia do canal é trazer essa visibilidade que o futebol feminino não tem", explicou Bia Vaz.
Regras especiais
Ao menos por um dia, no Desafio das 100 Mulheres da BBC, Ana, Luiza e Maria (todas de 13 anos) não foram minoria. No sábado, elas fizeram parte do time 100 Women junto com outros três meninos da mesma idade e entraram em campo contra a equipe da escolinha brasileira do time francês Paris Saint-Germain, que também tinha três meninas e três meninos, além do goleiro.
A ideia era fazer um jogo em que todos tivessem a chance de chegar na bola e fazer gols. "Muitas vezes, quando as meninas jogam com os meninos, elas acabam não recebendo a bola, ou ficam mais acuadas, lá atrás, com um pouco de medo de ir para frente. A gente criou cinco regras para garantir um jogo mais coletivo, para dar as mesmas oportunidades para todos", disse Vaz.
As regras estipuladas foram:
- Para um gol ser validado, a jogada tem que ter passado pelos pés de uma menina (seja no início ou na finalização);
- Substituições são permitidas, mas é preciso manter a quantidade de três meninas jogando na linha em cada time;
- Cobranças de lateral, escanteio ou falta teriam de ser feitas por meninas;
- Depois da terceira falta, na quarta haverá um tiro livre;
- Um gol marcado por uma menina valerá por dois.
"O gol delas vale mais para estimular os meninos a tocarem para elas justamente no ataque, na hora de fazer o gol."
Lara Dantas jogou pelo PSG e disse que seu time tinha até "esquecido" as regras na hora do jogo. "A gente já joga assim, e eu estava na lateral, a bola tinha que passar por ali para ligar a defesa ao ataque. Então foi natural."
Mas não foi sempre assim quando Lara jogava futebol. Os meninos da escola não passavam a bola para ela e até hoje, quando joga pelo PSG com os meninos, chegou a ouvir de pais que estavam assistindo que "menina não pode jogar com menino".
"Eles ficavam gritando que eu e a Luiza éramos horríveis, que não podíamos estar ali", contou.
Mas nada disso fez com que ela desistisse. Hoje, Lara treina com a primeira turma de meninas que a escolinha conseguiu abrir aos sábados, além de continuar com os meninos
"A gente se sente muito mais à vontade treinando com as meninas", admitiu.
Presente
O motivo pelo qual muitas meninas passam a infância toda jogando com os meninos é justamente o menor número de mulheres que se aventura no esporte.
"Na minha escola, fizeram uma regra que meninos só poderiam jogar futebol com meninos e meninas só poderiam jogar com meninas. Só que não tem menina que quer jogar, aí eu fui até a coordenação e eles me fizeram trazer uma autorização da minha mãe dizendo que eu posso jogar com os meninos", conta Lara.
A falta de interesse das meninas pelo futebol pode ser explicada principalmente pela falta de incentivo a elas na modalidade, segundo as especialistas. Segundo o Ministério do Esporte, mais de 40% dos garotos começa a praticar algum esporte entre os 6 e os 10 anos, enquanto apenas 29% das meninas inicia a prática esportiva nessa idade.
Para mudar isso, a sugestão das especialistas foi incentivar os pais e os adultos a darem bolas de futebol (ou de outras modalidades) de presente para as meninas desde cedo.
"As meninas sempre ganham as bonecas e os meninos ganham bolas. São coisas que a gente nem percebe e que fazem diferença, porque o contato deles com a bola acontece muito cedo. O delas muitas vezes nem acontece", diz Adriana Behar.
A partida acabou com o placar 7 a 3 para o PSG. Três dos gols foram marcados pelas garotas. Após a premiação, as duas equipes e os adultos que as acompanhavam foram reunidos no centro do campo para uma conversa sobre o tema.
"Depois (do debate), um dos casais veio conversar comigo. Eles disseram que vão a três aniversários de meninas no próximo mês e decidiram que vão dar bolas para elas de presente", comemorou a treinadora Helena Pacheco.
"Se gente conseguir mudar a cabeça de 30% ou 40% das pessoas que estavam aqui, já é um grande passo."
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