IVAN MARTINS
25/10/2017
O peixe morre pela boca, diz o ditado. Os ansiosos também, digo eu. Muitas vezes, no afã de agradar e seduzir, as pessoas falam demais sobre si mesmas e obtêm o contrário do que desejam. Afastam, em vez de atrair.
O problema tem dois aspectos. Não se trata, apenas, de que seres humanos que falam demais demonstram mais interesse por si mesmos que pelos outros, e isso é muito chato. Além desse narcisismo brochante, os faladores têm a tendência de revelar, sobre si mesmos, coisas que deveriam ser escondidas – ou melhor, guardadas até o momento em que a relação comportasse mais informações.
Penso na mulher recém-separada que, ao sair pela primeira vez com o gatinho, não para de falar do filho e “do crápula” do ex-marido. Em duas horas e três chopes, o cara é apresentado, involuntariamente, a todos os aspectos de um casamento que deu errado – e a uma relação amorosa entre mãe e filho que parece não ter espaço para mais ninguém. Penso, também, no sujeito que, no segundo encontro, não para de falar das viagens espetaculares que fez com a ex-namorada, e como ele ficou mal depois que ela foi embora. Precisa disso? Não.
Alguém argumentará que a mulher que se queixa do ex-marido, assim como o cara que não para de falar da ex-namorada, não fazem mais do que exibir seus verdadeiros sentimentos. Pode ser, mas este seria um caso típico em que o valor da verdade é superestimado. Quem precisa saber tanto em tão pouco tempo?
As pessoas sentem que aquilo que acontece na vida amorosa delas é relevante para o resto do Universo. Na realidade, não é. Nosso ex-relacionamento, com suas histórias dilacerantes ou alegres, é apenas do nosso interesse. Quem se aproxima não precisa ser imediatamente tragado para esse alçapão. O mesmo acontece com os nossos filhos, nossos pais, nossos amigos, nossa família, nossa história médica, nosso emprego maravilhoso ou odiado. Até os nossos bichos. Esses são aspectos da existência privada que não precisam ser divididos com o outro na chegada, ou mesmo algum tempo depois.
Nenhum de nós é tão interessante que as pessoas não possam esperar calmamente pelos próximos capítulos, sem morrer de ansiedade.
Na condição de falador compulsivo – que, às custas de muita análise, ioga e insucessos, vai aprendendo a se conter –, eu sei que o que nos leva a falar desesperadamente sobre nós mesmos é a necessidade de aprovação. A gente pre-ci-sa que aquela pessoa encantadora saiba como somos ver-da-dei-ra-men-te e nos aceite com todas as nossas pendências emocionais e familiares, com toda a nossa história, com a carga total do nosso contêiner emocional. Qualquer outra coisa, dizemos a nós mesmos, seria uma farsa.
Só que a vida não é assim, né?
As pessoas não nos aceitam de cara, com as nossas dores, problemas e defeitos. Elas se apegam a nós com o passar do tempo. O inconsciente delas se enlaça com o nosso devagarinho, enquanto olhares, palavras e vivências vão sendo trocados. Há um processo que precisa acontecer e não pode ser atropelado. Não adianta levar ao outro a sua biografia numa bandeja, achando que ele vai recebê-la de braços abertos e lágrimas nos olhos, sem dúvidas ou hesitações, como se você, saindo do nada, fosse a metade da laranja dele. Isso não acontece assim. A aprovação do outro precisa ser conquistada emocionalmente, e não se produz com uma enxurrada de palavras e revelações.
Outro dia, durante uma conversa noturna na qual eu resisti ao impulso desastroso de sair “dizendo tudo”, me ocorreu a palavra italiana chiaroscuro. Ela pode ser traduzida por claro-escuro, ou luz e sombra, e define uma técnica de pintura criada no Renascimento, que usa o contraste entre as áreas iluminadas e as áreas escuras da tela para iludir o observador. Os efeitos dramáticos são de tirar o fôlego.
Naquela noite, olhando a luz quase ausente no teto, me ocorreu que o processo de sedução, o mecanismo de envolvimento do outro ser humano em nossa vida, é um processo em chiaroscuro. A gente joga luz sobre um pedaço da gente e deixa outro pedaço na sombra, esperando. Depois, ilumina um outro trecho de nós mesmos, enquanto outras partes ainda aguardam no escuro. Ele ou ela vai fazendo o mesmo. Assim, aos poucos, vai surgindo uma cena e vai se delineando um quadro. Duas vidas vão sendo reveladas. Aquilo que somos, assim como as nossas circunstâncias, vai sendo apresentado sem pressa, de uma forma favorável, com aquela mistura de acidente e intencionalidade que costuma definir a vida. O oposto disso é acender a luz branca de 100 watts na cara da pessoa e torcer para que ela, piscando, quase chorando, ainda em choque, adore tudo que vir. Eu acho o chiaroscuro mais promissor.
Se alguém achar que estou pregando a necessidade de esconder informações e dizer mentiras, não é o caso.
Estou dizendo, apenas, que deveríamos ser mais econômicos ao falar de nós mesmos, em todos os sentidos. Deixe o silêncio cair sobre a mesa e ficar lá, esperando. Segure a mão dele. Sorria para ela. Pare de tagarelar e se exibir. Sua vida, seus valores e suas ideias serão naturalmente expostos com o tempo. Se a pessoa gostou de você, não faltará ocasião. Se ela não gostou, se não rolou uma atração básica, não adianta falar pelos cotovelos e contar tudo de você mesmo.
Ninguém nos ama pelo que dizemos que somos. As pessoas nos amam pelo que realmente somos, ou pelo que pensam que somos, e tudo isso – acredite – acontece sem que a gente diga sobre nós mesmos mais do que meia dúzia de palavras.
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