Existe um orixá chamado Otin, divindade cheia de mistérios, cujo gênero simplesmente não se define. Uns dizem que é um orixá masculino, outros juram que se trata de uma linda mulher, uma hábil caçadora. Na verdade, Otin guarda um grande segredo e sua história pode nos ajudar a compreender algumas questões sobre a transexualidade.
Otin era um rapaz solitário e triste. Não tinha amigos, não namorava, não era nem um pouco sociável. Escondia-se pelos cantos e esquivava-se das pessoas, evitando qualquer tipo de convivência. Misterioso e cheio de segredos, era tão arredio que um dia decidiu fugir para a floresta. Deixou casa, família, riqueza; deixou tudo para trás. Embrenhou-se na mata onde finalmente poderia viver só e em paz.
Logo vieram as dificuldades: fome, frio, cansaço, medo. Otin, que sempre teve tudo, percebeu que não sabia se virar sozinho. De tão exausto, encostou no tronco de uma árvore e adormeceu. Sonhou com um caçador que lhe recomendou um ebó: Otin deveria oferecer suas roupas e sua faca. E assim o fez. Num arbusto junto ao rio, depositou sua faca e sua roupa. Mirou-se nas águas e viu seu corpo de donzela, seu maior segredo. Mas dessa vez não se envergonhou, não se sentiu infeliz. Ao contrário, estava livre e pleno.
Oxóssi apareceu cheio de caças. Veio buscar a oferenda e assim descobriu o grande mistério de Otin. Tomou a faca e tratou os animais. Com as peles cobriu o corpo de Otin e com a carne o alimentou. Oxóssi ensinou a Otin a arte da caça e guardou para sempre seu segredo.
Aquele que não se aceita como é será eternamente infeliz. O candomblé não concebe o ser humano de forma fragmentada. Somos totalidade e não podemos admitir nenhuma condição para que sejamos respeitados. Cada pessoa tem seu ori, ou seja, sua cabeça, aqui compreendida como princípio de individuação e objeto de culto. Como tal, a cabeça carrega e comanda o corpo. Portanto, não podemos exigir que uma pessoa que nasceu com o sexo não condizente com seu gênero, mas de alguma forma o adequou, se comporte, se vista, enfim, se porte em nossos rituais conforme a “determinação” reducionista da biologia.
Como vimos, mesmo a tradição oral do candomblé pode encontrar nos mitos o entendimento de nossos ancestrais acerca de diversas questões que intrigam a humanidade. Vale lembrar que além de refletir aquilo que se produz em sociedade, os mitos não estão presos ao tempo e circulam tranquilamente entre passado, presente e futuro.
Devidamente interpretada, a mitologia dos orixás pode ser o vetor que nos ajudará não só a aceitar e a acolher as pessoas como elas são, mas, principalmente a respeitar sua identidade.
Conhecendo o segredo que tanto angustiava Otin, Oxóssi o fez libertar-se de suas roupas, de suas armas. Oxóssi fez de Otin um ser livre, que se aceitou exatamente como era, que conseguiu se olhar e se reconhecer. Pessoas trans vivem conflitos muito semelhantes e o processo de aceitação e construção de identidade não é simples. As imposições sociais colocam a discussão sobre gênero como um desafio que vai muito além da biologia. Cultura, política, educação, direito e também religião precisam promover e avançar neste debate. Mas no caso específico do candomblé, como fica?
No Brasil, o candomblé foi fundado por mulheres, mas na África a função sacerdotal era em grande parte masculina. Circunstâncias históricas e sociais determinaram novos papeis, demarcando lugares, impondo limites. Nas casas mais tradicionais, por exemplo, homens só podem dançar quando tomados pelo orixá. Do mesmo modo, mulheres não tocam atabaques. No Candomblé, homem é homem, mulher é mulher. Contudo, as orientações e condições humanas não devem interferir na identidade de gênero.
Acolher as pessoas exatamente como são é respeitar aquilo que o ori de cada um determinou. É isso que o candomblé preconiza. O corpo deve adequar-se à cabeça, pois só assim a pessoa será compreendida em sua totalidade.
O comportamento deve ser dado pela identidade de gênero, ou seja, por aquilo que de fato e de direito a pessoa é. Se a legislação de muitos países se adapta à condição humana, possibilitando a mudança do nome e do sexo nos documentos, se a medicina oferece recursos cirúrgicos e clínicos para ajustar os corpos, a religião não pode ficar alheia e precisa encontrar um jeito de compreender e receber homens e mulheres transexuais.
A transexualidade não é exatamente uma novidade para o candomblé, mas ainda gera polêmica em relação às funções que devem ser exercidas por esses homens e mulheres. Por vezes, esbarra-se no argumento falacioso da procriação, dos órgãos genitais, do útero. Como se engravidar fosse uma condição para a maternidade. Há homens estéreis e mulheres que não ovulam, que não conseguem gerar, mas isso não significa, de modo algum, que não possam ter filhos. Nas famílias extensas africanas, por exemplo, todas as mulheres são mães de todos os filhos, gerados ou não por elas. Nas sociedades matrilineares, cabe ao irmão da mãe assumir o papel de pai. Em outros termos, pai e mãe são funções construídas socialmente. Na complexidade humana, o biológico é apenas um aspecto.
Retornando ao terreiro e a suas prerrogativas de respeito e acolhimento, uma transexual feminina tem todo direito de usar os tradicionais trajes femininos do candomblé: a saia rendada, o torço de seda, a bata engomada, o pano da costa, os balangandãs. E um transexual masculino poderá tocar atabaques, participar dos sacrifícios, vestir seu terno de linho branco. No Candomblé, homem é homem, mulher é mulher, ainda que seja transexual. Isso é respeito, é acolhimento, é afeto.
Com o mito de Otin, vimos que o corpo de um rapaz aprisionava uma moça. Oxóssi fez com que Otin olhasse para si sem se envergonhar do que realmente era. Orixá liberta e aceita. Orixá ama sem condições.
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