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terça-feira, 31 de outubro de 2017

“Por que os evangélicos só pensam em sexo?”

por Magali do Nascimento Cunha — publicado 19/10/2017
A onda reacionária que visa ao controle do corpo e da sexualidade alheia tem um objetivo político e não é estimulada apenas por correntes religiosas
Pixabay
Por que os evangélicos só pensam em sexo?
A obsessão com a sexualidade faz parte da disputa política
Eis uma pergunta que ouço com muita frequência. Ela certamente deriva dos episódios ultimamente retratados pelas mídias a envolver evangélicos: ações parlamentares por retrocessos na legislação sobre a sexualidade, manifestações públicas contra expressões sobre sexualidade humana em teatros e museus, apelos por boicotes à TV Globo e à revista Veja, classificadas como “comunistas” e “gayzistas” (?!), vociferações contra ativistas culturais, feministas ou LGBTIs por sua oposição às formas de censura e à negação dos direitos humanos sexuais.
Preocupa que boa parte do conteúdo crítico divulgado por esses grupos não é verdadeira (informações vagas ou falsas e sem referência) e é, de forma iníqua, usada para instrumentalizar a boa-fé de evangélicos que se tornam suas multiplicadoras.

Claro que a crítica “só pensa em sexo” também resulta do fato de que outros fatos que representam verdadeiros riscos à vida e à dignidade humana não são consideradas por esses religiosos. O número recorde de assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil não provoca reações no mesmo nível das listadas acima, muito menos as estatísticas a respeito dos altos índices de violência doméstica, estupro e feminicídio. Indignação ainda menor é identificada com os assassinatos e espancamentos de LGBTIs, por conta de intolerância. Para listar apenas algumas.
Vale aqui enfatizar que outros cristãos também assumem as mesmas posturas (falo dos católicos romanos, que também têm suas lideranças midiáticas e seus parlamentares), bem como os não religiosos. Por isso, é sempre bom lembrar que qualquer tema ligado à sexualidade humana desperta paixões, particularmente quando se tem um modo de vida construído sob os princípios patriarcais (domínio do masculino) de forma tão intensa. As bases culturais cristãs ocidentais estabeleceram o corpo e o ato sexual como elementos cuja finalidade exclusiva seria a procriação. E os filhos seriam a garantia de existência da família e sua herança.
A dimensão da corporeidade e da sexualidade relacionada à realização plena do prazer é descartada e classificada como perversão e desvio do objetivo maior. O resultado é a submissão da mulher ao poder do homem (pai, marido, irmãos, tios, filhos), a repressão do corpo e o rechaço da homoafetividade.
Esse processo milenar experimenta, porém, históricas pressões por mudança. Já no século XVIII tem início, com as noções humanistas de cidadania, igualdade, liberdade, um movimento de transformação na compreensão de família e no direito de família, com a inserção da dimensão da afetividade.
Os movimentos feministas dos séculos XIX e XX consolidam esse processo, auxiliados, entre vários elementos, pela psicanálise (com Sigmund Freud), pela desnaturalização do controle/poder masculino e jurídico sobre o corpo (com Michel Foucault) e pelo desenvolvimento da biociência (separação da sexualidade da reprodução humana, com a pílula anticoncepcional).
Daí foi um passo para a consolidação da noção de gênero, para além da biologia, e da concepção de homoafetividade, e a busca por direitos sexuais, que têm marcado o século XXI em todos os continentes.
No Brasil, essas transformações manifestaram-se muito recentemente. Basta recordar que o direito ao voto foi conquistado pelas mulheres apenas em 1932 (há menos de um século) e que o divórcio direto foi aprovado somente em 1977 (diante de forte oposição da Igreja Católica). E apenas na passagem dos anos 1990 para os 2000 é que emergiram políticas governamentais, leis e decisões jurídicas mais contundentes para a garantia de direitos sexuais e para o enfrentamento da violência de gênero.
O que experimentamos no tempo presente é uma reação a esses avanços da parte de grupos conservadores, defensores da cultura patriarcal de controle dos corpos e da negação da ampliação de direitos civis sexuais. Mas não só: reação também aos direitos de crianças e adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e às políticas de inclusão social e cidadania. Tudo dentro de um contexto de fortalecimento de posturas conservadoras na esfera pública brasileira, observado nos recentes movimentos pró-impeachment de Dilma Rousseff, de grupos que demandam intervenção militar, o livre uso de armas mortíferas e explicitam apoio a políticos portadores de discursos fascistas.
Nessa articulação há o alinhamento de grupos religiosos. Eles tornam-se personagens de um processo sem precedentes na vida do País, com plataformas baseadas na retórica do terror (“querem acabar com a família”), pelo impedimento da garantia de direitos sexuais e reprodutivos e das ações de superação da violência de gênero.
O que se desenha, como vemos, pouco ou nada tem a ver com a defesa das famílias. Acaba por ser uma armadilha (instrumentalização) de grupos políticos para quem professa uma fé. Os segmentos da sociedade civil, incluídos os inúmeros evangélicos não identificados com este projeto, e que defendem um Estado laico e socialmente justo, têm grandes tarefas pela frente.

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