29 de outubro de 2017
****Aviso de conteúdo sensível – caso de Goiás****
Se eu tivesse uma arma à minha disposição, talvez tivesse matado alguém. Talvez tivesse me matado. Talvez ambos.
Não estou dizendo que isso seria justo, certo, bom. Estou apenas constatando um fato que se torna mais e mais evidente quando converso dentro de mim com aquela menina deprimida e desesperada e, como é típico da idade, impulsiva.
E quando lembro das pessoas que eram minhas colegas e da forma como elas agiram, e consigo enxergar o quanto, no fundo, elas eram muito como eu, agradeço pelo fato de que eu nunca tive uma arma de fogo à minha disposição.
O bullying não acontece porque crianças e adolescentes são cruéis e é isso que fazem, ou porque é essa a natureza humana. Esse comportamento é aprendido e se trata de uma emulação, uma transferência.
Filhotes de animais brincam simulando atividades dos animais adultos. Corças brincam de saltar, correr, esquivar-se. Leõezinhos brincam de caçar. Crianças humanas brincam de casinha, de trabalhar, de falar ao telefone… e fazem bullying.
Isso não se refere só à educação dentro de casa, ou vinda da mãe (ao contrário do que afirma o machismo desbragado de alguns comentários a respeito) mas fora de casa também. Somos parte de uma sociedade que muitas vezes parece baseada na ideia de marginalizar e agredir pessoas que fujam de uma determinada norma ou padrão. O assédio moral – bullying de gente grande – é recorrente em ambientes de trabalho e redes sociais.
Muito se diz de ensinar respeito às crianças, mas pouco se fala do quanto desse aprendizado é absorvido através da própria pele, ou mesmo do impacto que o nosso exemplo tem sobre esse aprendizado – o exemplo dado por nós, pessoas adultas da sociedade.
E quase nada se fala sobre a necessidade de transformar os ambientes de convivência e as interações de forma que seja possível que as pessoas de todas as idades encontrem acolhimento e legitimação para suas aflições. Para que tenhamos empatia, suporte e apoio para lidar com elas, para que encontremos outras formas de dar-lhes vazão que não incluam obliterar a existência alheia para que nos sintamos em segurança… ou mesmo violentar sistematicamente outra pessoa ou grupo de pessoas nesse mesmo intuito.
Um menino abriu fogo contra colegas de classe na escola. Atirou em seis, matou dois. As vítimas aparentemente praticavam bullying com ele.
O acontecimento é triste, e é ainda mais triste o nosso impulso de, diante de uma tragédia assim, tentar identificar agressores e vítimas. Como se algo tão complexo pudesse ser reduzido assim, de forma maniqueísta, simplista.
Na perspectiva branca e preta da lei, feita para dividir o mundo entre o que está dentro e fora dela, isso fica mais fácil. Mas eu não estou falando da lei.
Ouvi pessoas usando o caso para advertir contra forçar quem sofre bullying a se virar por si só, e ouvi pessoas usando o caso para advertir contra a educação que poupa a criança de lidar com frustrações. Ouvi pessoas falando que o menino que atirou estava fazendo sua justiça torta contra quem o atormentava diariamente, e ouvi pessoas falando que o menino que atirou, filho de policiais, é quem atormentava es demais, usando seus pais em suas ameaças constantes.
Mas eu não vejo bullies e atiradores. Procurei e não encontrei. Vejo meninos e meninas em uma situação que escalou de forma trágica e inesperada. Vejo três vidas perdidas, de um jeito ou de outro, vidas de pessoas feitas de muito mais do que só o que aparece na estreiteza dos rótulos nas notícias dos jornais.
O que fica para mim não é uma linha divisória que coloca um de um lado e outres de outro, mas o quanto as linhas que nos dividem – a todas as pessoas, não só àquelas envolvidas neste caso – são ilusórias.
E a tristeza da percepção de que são elas, essas linhas ilusórias, que são o problema. E não os meninos e meninas que agem e reagem sob a orientação delas.
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