Elas têm entre 16 e 41 anos, a maioria é mãe, está sem emprego. A Defensoria Pública impetrou ao Tribunal de Justiça paulista habeas corpus em favor das 30
Na primeira hora da madrugada de hoje (28/9), a defensora pública Ana Rita Prata protocolou no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) 30 pedidos de habeas corpus. Ao fechar o computador, ela iniciava uma briga jurídica que pode mudar a vida de 30 mulheres e tirar o autoaborto do pântano criminoso em que o meteram em 1940. Essas rés interromperam uma gravidez indesejada e, em lugar de serem amparadas pelo Estado, estão sendo tratadas como bandidas.
Ao telefone, Ana Rita me contou que descobriu as histórias vasculhando milhares de inquéritos policiais com a ajuda de três profissionais do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher, que ela coordena na defensoria. As quatro correram de delegacia em delegacia até chegar a 111 casos. Atrás deles, concluíram que o Ministério Público havia denunciado 57 mulheres. Separando processos extintos, restaram as 30, que atualmente respondem a processos criminais.
Quem são as rés?
Ana Rita diz que todas elas dependem de defesa gratuita. Têm entre 16 e 41 anos. A maioria é solteira e desempregada. Mais da metade tem filhos. Uma delas é mãe de quatro. Inquéritos policiais não perguntam sobre espiritualidade, mas, como são brasileiras típicas, as rés têm crença ou religião. Enfim, são gente como eu. Como a minha filha e as minhas sobrinhas. E, certamente, você que me lê agora está lembrando que as rés são como sua amiga ou como a menina ou adulta da sua família, já que uma em cada cinco brasileiras abortou pelo menos uma vez, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto.
Por que viraram rés?
A maldição atirada contra elas partiu de quem não se esperava: o médico. A maior parte das denúncias foi feita pelo profissional da saúde que atendeu as pacientes enquanto sangravam na emergência do hospital. Se não o médico, a enfermeira, chefiada por ele, aparece nos processos como a delatora. Depois vêm os familiares.
O que faz um médico quebrar a ética, romper o sigilo, telefonar para a polícia e, mais tarde, comparecer à delegacia para acusar, formalmente, a mulher? Pior, ele leva o prontuário da paciente e provas frágeis, como “um resto de Cytotec encontrado na vagina” – isso consta em vários processos. Mais grave ainda é o promotor do Ministério Público entender aquela baba como prova. E a Justiça acatá-la sem perícia. O que quer dizer um Cytotec melado? Provas sem lastro devem ser desqualificadas, não servem para acusar, muito menos condenar.
“Muitos dos casos podem ter sido até mesmo abortos espontâneos”, diz Ana Rita Prata. “Uma das mulheres contou no pronto-socorro que havia tomado chá de buchinha. Ora, um médico sabe muito bem que buchinha não é abortiva. Como ele leva esse relato ao delegado?”, questiona a defensora pública.
A fofoca policialesca do médico arruína, demole a autoestima da mulher – que pode ser presa. Ninguém aborta rindo. Nunca ouvi uma pessoa confessar que pratica abortos por diletantismo e prazer. Vai-se a uma clínica de aborto por desespero. Em solidão. Com milhares de dúvidas e, depois dívidas, porque é caro. Quem não tem dinheiro vai de Cytotec, ponta de cabide de metal introduzido até furar o útero ou apela para o carniceiro. Experiências traumáticas que elas guardam para sempre.
Punição ao médico que não protegeu a vítima de estupro
Mais uma desumanidade, uma irresponsabilidade civil dos médicos, que tenho de registrar aqui. Entre as 30 malditas, malfaladas e malfadadas rés há vítimas de estupro. Um médico sabe que é seu dever informar a elas, que, em geral, desconhecem a legislação, o direito de abortar com segurança em um serviço público. É lei! Atenção Conselho Regional de Medicina: investigue e puna esses maus profissionais. O nome deles está nos autos.
O TJ não pode ignorar as 30 mulheres
A defensora Ana Rita Prata e sua brava equipe cobram providências do TJ-SP. A base de todos esses habeas corpus está na Constituição – que assegura à mulher o direito à intimidade e à autonomia. A Constituição é muito maior e pesa mais que o Código Penal, que chama o autoaborto de crime. A tese da Defensoria também se apega às convenções internacionais de direitos humanos, das quais o Brasil é signatário. Nelas, o país se compromete a não deixar que mulheres morram em abortos clandestinos e inseguros. Assim, o TJ está encurralado, já que não cabe apenas ao Supremo Tribunal Federal (STF) controlar a constitucionalidade e a convencionalidade. Os desembargadores paulistas têm o dever de olhar e concluir que a lei maior e as convenções foram rasgadas no caso das 30. Eles não podem se esquecer também que 1ª Turma do STF decidiu, por maioria de votos, que a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação é inconstitucional. E vão passar vergonha jurídica se não decidirem pelo trancamento das ações penais contra essas rés. Só o TJ pode desfazer a maldição jogada contra elas. Feito isso, muda-se a conversa nacional. A interrupção da gravidez indesejada sairá do pântano criminoso, que já não servia ao país em 1940, quando a interrupção da gravidez indesejada foi tornada crime. Era ditadura Vargas. E regimes ditatoriais cometem verdadeiras atrocidades.
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