– ON 27/10/2017
Como um encontro de cultura queer sacudiu a “capital do forró”, no Nordeste. Houve ameaças — toscas, como sempre. E em vão: decidiu-se aumentar a dose, em 2019…
Por Berenice Bento, Leandro Colling e Jussara Carneiro Costa
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Campina Grande (Paraíba) transformou-se, por quatro dias, da cidade do forró na cidade queer do Brasil. Entre 10 e 13 de outubro, sediou a terceira edição do Seminário Internacional Desfazendo Gênero. A primeira edição ocorreu em Natal, em 2013. A segunda em Salvador, quando, pela primeira vez, a filósofa Judith Butler veio ao Brasil. E agora, foi a vez de Campina Grande. Pessoas pesquisadoras, artistas, ativistas, povos de santo e indígenas estiveram juntos em mesas-redondas, performances, tendas de vivências, grupos de trabalho. Por dois dias também tivemos a alegria de conhecer parte do rico e plural cinema palestino.
O Desfazendo Gênero foi pensado como espaço de questionamento das identidades fixas. Mais do que nos perguntarmos “o que é uma mulher” e “o que é um homem”, queremos entender os interesses que afirmam que nossos cromossomos e hormônios revelam quem nós somos. Nossos desejos não cabem em classificações biológicas. O Desfazendo Gênero é um espaço de crítica, reflexão e arte. Ali, ninguém silencia ninguém. As tentativas, venham e onde vieram, serão combatidas. Nesta edição, ficou evidente o quanto acumulamos de práticas encarnadas de decolonidades. A multiplicidade de saberes reunidos no mesmo espaço nos proporcionou varias aulas sobre como a decolonidade dos saberes não pode ser uma teoria, mas uma prática.
Talvez seja exatamente o encontro das potências mobilizadas pelo evento que desencadeia os ataques fascistas adensados desde a segunda edição. Nesta terceira, as agressões na página do evento iniciaram desde o primeiro encontro de preparação – março de 2016 – e aumentaram conforme se aproximava outubro de 2017. O ponto alto aconteceu após a performance Trajeto com beterrabas, por meio da qual a artivista Ana Reis denunciou os estupros e o feminicídio. Após a publicação de fragmentos da performance em nossa página no facebook, os ataques intensificaram-se. Após uma enxurrada de denúncias, oriundas, sobretudo, de pessoas localizadas no “Sul” do país, a página recebeu como sanção pela divulgação de conteúdo considerado “ofensivo” (fotografias e vídeos da performance Trajeto com Beterrabas), a retirada do conteúdo vetado e a suspensão temporária de novas postagens, medida em alguns casos estendida a pessoas que administram a página.
O embate discursivo desencadeado pela 3ª edição do Seminário Internacional Desfazendo Gênero não se circunscreve às performances artísticas referendadas pelo edital Estéticas Transviadas. Tampouco cessou. Em menos de 15 dias da sua realização foram articulados sete eventos na microrregião de Campina Grande. A reverberação se faz sentir também na reconfiguração de práticas universitárias que se (re)organizam sob as interpelações que ainda ecoam do evento e, como era de se esperar, os ataques são direcionados a gestores e instituições que as acolhem. As forças que nos atacam desde a segunda edição agora vociferam contra a regulamentação de direitos humanos básicos para pessoas trans, como, por exemplo, ao reconhecimento pelo nome “social” (assegurado pelo Decreto presidencial 8727, publicado no DOU de 29.4.2016) e o simples acesso ao banheiro (das universidades e outros espaços sociais) de acordo com o gênero autoidentificado pela pessoa. É um absurdo que a Universidade Estadual da Paraíba (ou qualquer instituições pública que adote a medida) seja atacada, pela simples razão de, na condição de instituição pública, buscar garantir, através da Resolução UEPB/CONSUNI/0202/2017, direitos alicerçados em princípios constitucionais, a exemplo da dignidade humana e do combate às múltiplas formas de discriminação.
É preciso enfatizar que o desejo de silenciamento de pesquisadores/ativistas que fazem o Desfazendo Gênero não constitui um fato isolado. Ao contrário, está inserido em um contexto histórico de intensa luta política em que setores, em uma versão contemporânea da TFP (Tradição, Família e Propriedade) tentam nos silenciar. Os neoTFPistas são semeadores do medo, do pânico e do ódio.
O Desfazendo Gênero expõe as cumplicidades, tácitas ou escancaradas, entre aquele/as que nos atacam escudado/as sob noções de moral e ética vagas e obtusas, o adensamento da violência e a perpetração da cultura política marcada pela corrupção e injustiça que envergonham esse país. Os ataques ao evento não começaram nesta edição. Em Salvador, em 2015, nossa página também foi derrubada e os/as organizadores/as perseguidos/as. E, outra vez, foi a performance de outro artista, Miro Spinelli, com sua potente Gordura Trans, que deixou os neoTFPistas em fúria. Nossa resposta? Organizamos com alegria vital a terceira edição. E assim seguiremos.
Ao longo destas três edições, o Desfazendo Gênero reuniu milhares de pesquisadores/as, atividades, artistas. Foram centenas de trabalhos apresentados, dezenas de grupos de trabalho, livros publicados, incontáveis abraços de gente que ali também encontra um lugar de afeto. O Desfazendo Gênero não é um evento, é uma transfusão de sangue. Seguiremos na resistência. Resistir e avançar nos torna vivos/as. Diremos não aos fundamentalistas da política e ao fascismo de plantão. Com o nosso não construímos uma universidade com mais beleza, vida e arte.
Que venha a 4ª edição. Em 2019 ficaremos ainda mais bonitas, vivas e alegres com a energia de Pernambuco!
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