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terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Renascer, devagarinho

Hoje é Quarta-Feira de Cinzas. Deixe a fantasia do amor que não deu certo no lixo, com as latinhas de cerveja, e volte à vida

IVAN MARTINS
14/02/2018

Se você está sofrendo de amor, permita uma sugestão: olhe em volta.

Hoje é Quarta-Feira de Cinzas e a vida recomeça nas cidades brasileiras, depois de uma pausa de música e liberdade. O Carnaval terminou e nós, por assim dizer, voltamos ao normal.

Essa é a sugestão a quem sofre de amor: tente voltar ao normal.

Estar apaixonado, viver um romance ou viajar (no mau sentido) numa história ruim são extravagâncias afetivas que, assim como o Carnaval, nos acontecem de vez em quando. Ainda bem. Mas, quando terminam, deixam um vazio enorme, que a gente tem de ultrapassar para voltar à vida.

Ao contrário do Carnaval, o amor não tem prazo para acabar, por isso a gente tem de perceber que terminou e fazer um esforço – um esforço consciente – para sair andando, em vez de ficar parado lá atrás, no fundo do bloco, com pena de si mesmo, mergulhado em sensações sombrias.

Digo essas coisas com a autoridade de quem passou a vida apegado a histórias que haviam acabado e perdeu tempo e alegria demais com isso.

Vinha carnaval, saía carnaval, e lá estava eu, vestindo a fantasia de um amor passado. Novas pessoas desfilavam na minha frente, cheias de desejo e alegria, e eu fazia um muxoxo de desinteresse – ou mergulhava na festa cegamente, como quem busca um remédio ou uma saída, sem olhar nos olhos de ninguém. Obviamente não dava em nada, e ainda me arrumava inimizades.

Nos últimos anos, porém, foi diferente. Aconteceu de eu ficar feliz com o Carnaval. Havia festa nas ruas e eu permiti que a festa vibrasse em mim. A música, a multidão, as ruas da cidade ocupadas de forma lírica e rebelde – tudo isso foi uma espécie de chuva, lavando e levando a tristeza embora.

Por causa disso, os encontros com as pessoas – sem falsa euforia, sem loucura de álcool – foram reais. É como se eu, finalmente, tivesse me permitido viver situações emocionais de risco, com pessoas com quem valia a pena se arriscar. Esse foi o sinal de que a fantasia do amor passado finalmente se rasgara, e eu pude deixá-la no lixo, com as latinhas de cerveja e de espuma, abrindo espaço para o recomeço.

Alguém dirá que eu não fiz nada por merecer essa melhora. Apenas o tempo passou. A isso eu respondo: mais ou menos. Se não tivesse havido um estalo interior, se eu não me mexesse, se não brigasse comigo mesmo para sair do buraco e buscar o desejo nas ruas e nos olhos dos outros, talvez estivesse até hoje naquela parte do mundo onde não bate sol, onde as coisas boas não acontecessem.

(Se isso parece certinho demais, leitor ou leitora, você tem razão: as coisas na vida real são mais complicadas do que na escrita. As idas e vindas da emoção são anárquicas e os eventos não avançam numa só direção. Eles se contradizem, retrocedem, nos atrapalham. Mas, passado o tempo, depois de um ou dois anos a gente consegue perceber, olhando para trás, no meio do confete e da confusão, que foi ali, naquele Carnaval, naquela rua, quase naquele instante, que as coisas começaram a tomar outra forma e avançar em outra direção. Foi quando o mundo, como um carro de som quebrado, voltou a andar).

O que estou tentando dizer – para quem está curvado de dor e nem consegue respirar, para quem sofre de amor não correspondido, de amor abandonado, de amor desprezado ou gasto e extinto – é que vale a pena recomeçar.

Se o movimento de retomada da vida não aconteceu no Carnaval, lembre-se que hoje é Quarta-Feira de Cinzas, quando tudo, simbolicamente, renasce. Aproveite e se deixe renascer também, devagarinho.

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