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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Sobre a Cultura do Estupro: senta aqui, vamos conversar...

UNICAMP
19 de Janeiro de 2018 Ana de Medeiros Arnt

Volta e meia temos o assunto “Cultura do Estupro” vindo à tona aqui em nosso país… Em 2016, quando uma menina de 16 anos sofreu um estupro coletivo (33 homens, até onde sabemos). E, também, com a divulgação de imagens do ato em diferentes redes sociais. A partir deste acontecimento (e de diversas outras ocorrências), emergiu fortemente a discussão sobre este tema em nossa sociedade.
É importante, dentro deste debate, que compreendamos algumas noções básicas. Isto antes de sairmos julgando e proliferando comentários sobre o que é noticiado e publicado tão comumente. Primeiro, entender que este debate faz parte de várias áreas de estudo que buscam compreender a sociedade, seus padrões, manutenção de costumes, etc.

Uma das críticas que muitas pessoas fazem é ao significado de CULTURA. No campo das Ciências Humanas, cultura não é o ápice do melhor já feito e produzido pelo ser humano. Como obras de Leonardo da Vinci, Pablo Picasso, Cora Coralina (por exemplo). É muito mais do que isso… Cultura refere-se àquelas práticas que são cotidianas. Práticas que são aprendidas desde que nascemos. E também que nos formam como seres sociais que somos – com todas suas regras e normas comuns e corriqueiras. Desde o tipo de alimentação, às brincadeiras da infância, almoços aos domingos em família, piadas e ditos populares, música e arte em geral, o que aprendemos na escola, etc.
Costumamos dizer que nossa cultura tem vários comportamentos e modos de entender nossa vida que são naturalizados. O que isso quer dizer? São aquelas práticas (atos, falas, conversas, ações) tão corriqueiras, tão comuns e cotidianas que passam desapercebidas como parte de nossa cultura. São práticas que não são muito questionadas como aprendizado, exatamente por serem sutis, quase imperceptíveis!
Dito isto, vamos ao tema específico do post: cultura do estupro. Novamente este tema veio à baila, em função de uma música (Surubinha de Leve). O refrão desta música sugere que mulheres sejam embriagadas, para posteriormente transarem e serem “jogadas na rua”. E isto se relaciona à cultura do estupro de que forma?
Ao falar em “cultura do estupro“, estamos nos referindo àquelas práticas cotidianas que não apenas formalizam a violência do estupro em si (o ato da violência física). Mas tratamos das ações que possibilitam que esta seja executada cotidianamente e a reforçam como natural de um ser sobre outro. Que ações?
Ah, sabe… Coisas (infelizmente) comuns: homens que ejaculam em mulheres dentro de transportes coletivos. Homens que são liberados disto como crime, pois não é considerado constrangimento à mulher que sofreu com este ato (horrendo). Assédios físicos e/ou verbais em espaços públicos. E assédio como um ato com dizeres que diminuem sujeitos a uma coisa, que pode ser usado sem sua permissão. Músicas, poesias, literatura, produções artísticas diversas que mesmo sem usar a palavra “estupro” descrevem os atos como se não fossem uma violência física e psicológica. Piadas e conversas que legitimam que existem sujeitos que merecem a violência sexual, em função do seu comportamento social. Piadas e conversas que tornam banal  a ideia de que qualquer violência sexual é culpa da vítima. Pior que isso: é culpa da vítima e ela merece (independente dos motivos).
A cultura do estupro é, assim, legitimada por cada assédio e abuso moral, físico, psicológico, sexual entre um ser humano [comumente homens] e outro [comumente mulheres]. E a cada aceitação disso – por mulheres e homens. Ou mais que aceitação: banalização, silenciamento, produção de piadas, por exemplo. Bem como, compreensão de que este “costume” nos modos de falar e agir do homem como agressor se dá por sua “natureza”. E da mulher? Esta, ao invés de vítima, acaba descrita como aquela que “procura” pela agressão (e até mesmo tem afeição pelo ato). E falo de “homem” como agressor e de “mulher” como vítima por serem os lugares ocupados mais comumente na sociedade.
Cultura do estupro é o que faz, cotidianamente, mulheres terem receio de passar por homens na rua – sejam eles quais forem. Não é só o medo de ser violada cotidianamente – é o medo de ouvir, de novo e repetidamente, as mais insanas verborragias sobre nosso corpo e como ele poderia ser usado [repito: cotidianamente] por puro deleite do homem. E isso sem que nosso corpo seja considerado nosso, nossas vontades, nossas ideias de como usarmos NOSSO corpo e prazer.
Cultura do estupro é dizer que vivemos cotidianamente SIM sob égide de um padrão cultural. Em que mesmo frente à evidência tácita de violência, questiona-se o ato e se banaliza corpo e alma usurpada. Cultura do estupro é ouvir de alguém, como piada, que é gênio deixar uma mulher bêbada para transar com ela.
Cultura do estupro é achar que uma menina com filho é “puta” e isso justifica dopá-la e “transformá-la num túnel” (palavras usadas no caso da carioca adolescente em 2016). É achar que por uma mulher gostar de sexo grupal, 30 homens podem usar seu corpo  sem seu consentimento.
Cultura do estupro é a piada e o escárnio cotidiano sobre o fato de a mulher gostar de prazer. (Já te ocorreu que dentro desta cultura: a ideia é que mulheres não deveriam gostar?). Cultura do estupro é o homem se sentir vítima por nós, mulheres, termos medo de sermos vítimas.
Cultura do estupro é o que vivemos SIM! Dentro de um contexto em que uma música incita que se diminua as resistências de uma mulher com álcool. Posteriormente use isso para transar mais fácil (com ou sem seu consentimento). E depois descartar esta mulher na rua, é de cultura de estupro que estamos falando. Isto é: de uma cultura que autoriza, legitima, acha engraçado e COMUM que homens droguem mulheres para transar, sem qualquer respeito ou intenção de bem-estar ou mesmo consentimento consciente destas mulheres.
Nem todo assédio é (ou tem potencial de virar um) estupro. Nem toda transa com uso de álcool antes é estupro (mas usar isso para “facilitar” pode ser SIM!). De qualquer modo, todos estes atos – e outros já citados anteriormente – fazem parte de uma cultura que autoriza homens a desvalorizar o corpo das mulheres. Mais do que isso: pensá-lo como existente para satisfação do seu próprio corpo, como coisa e posse, sem direito de manifestação contrária…
Assim, não minorize a luta cotidiana para minimizar estes efeitos sociais, tão duros, a partir da descaracterização do que é cultura. Cultura é prática, cultura é cotidiano, cultura é o que produz e como produz um país, grupos sociais, coletivos humanos!
Produzimos SIM homens e mulheres que não se solidarizam com a dor de uma violação corporal. Produzimos SIM o medo de mulheres frente a homens. Produzimos SIM a banalização do corpo da mulher. Produzimos SIM a legitimidade do homem usar e abusar, violentando nosso corpo, nossos ouvidos, nossa rotina diária. Não minorize isso.
E homens, por favor, ao invés de assombrar-se com o fato de que você ~não é todo homem que~, assombre-se com o fato de que nós, mulheres ~todas nós~ já sofremos com isso. Assombre-se por fazer parte de um grupo que causa medo e lute contra isso entre teus amigos, familiares, filhos, pai, tios, primos. Pare de se vitimizar e compreenda o que é uma CULTURA que permite que você seja visto assim: todos os dias.
Não são monstros que estupram, assediam e escrevem sobre o estupro, estimulando-o: são homens, SIM. E homens criados dentro da nossa cultura.
Para saber mais:
COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hessel; SOMMER, Luis Henrique. (2003). Estudos culturais, educação e pedagogia. Revista Brasileira de Educação, Maio/Jun/Jul/Ago, Nº 23. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a03.pdf. Acesso em: 19/01/2018.
FONSECA, Pedro Augusto Almeida da; ALVES, Vítor de Lima;  LIMA, Lício Martins de. (2017). Cultura do Estupro: uma análise de conteúdo sobre a percepção dos usuários via Twitter. Revista Idealogando, v. 1, n. 1, p. 75-84, fev. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/idealogando/article/view/9584/FONSECA. Acesso em: 19/01/2018.
SOUZA, Renata Floriano de. (2017). Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas25(1), 9-29. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p9. Acesso em: 19/01/2018.

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