Relatos do Nepal, o país onde as mulheres menstruadas ficam fora de casa e são obrigadas a dormir em abrigos de vacas
TEXTO: Rita Salcedas
Jornal de Notícias | 2018-02-11
Radha tinha 14 anos quando fugiu ao destino de nascer mulher num Nepal pobre e tradicional. Desde os sete que sabia de cor como eram tratadas as mulheres da família durante o ciclo menstrual. Viu todas as irmãs serem depositadas em abrigos de vaca para não contagiarem a casa com o “sangue sujo, impuro, contaminado” com que a Natureza as brindou e que a “ignorância e a tradição” castigaram. Quando lhe veio o período pela primeira vez, fugiu.
Passaram 34 anos, mas o passado anda de mãos dadas com o presente e, por isso, a memória não esquece.
“Testemunhei a minha mãe e as minhas irmãs a submeterem-se a todo o tipo de restrições. Fiquei horrorizada. Traumatizada. Quebrei as regras da minha família e fugi de casa sem permissão dos meus pais”, contou Radha Paudel ao JN, numa conversa franca e sem tabus, em que falou da vida de luta e rebelião que leva desde que tem idade para pensar. Contra a família. Contra a sociedade. Contra a religião.
"Fugi de casa com nove anos para me suicidar mas não soube como fazê-lo
É, em parte, do Hinduísmo – dominante no Nepal - que nasce a crença de que uma mulher menstruada é impura e transforma em impureza quase tudo aquilo em que toca. Radha Paudel nasceu em Chitwan, no oeste do país, onde a prática de “chhaupadi” – assim se chama - bate à porta de todas as jovens que crescem. E volta a bater, mês após mês, até à menopausa. Ou até a morte vir antes do tempo.
Durante cinco dias do ciclo menstrual, as mulheres que querem estar bem com o mundo e com os deuses não bebem leite, não comem carne, não comem vegetais nem frutas.
Não tocam em homens – sejam pais ou irmãos -, nem em plantas de flor, nem em torneiras de água (não vão as flores deixar de crescer e a nascente da água secar). Templos são lugares sagrados e, por isso, proibidos. E a cozinha, como templo doméstico que é, é lugar proibido também. À noite, as mulheres pobres que não têm uma divisão isolada da casa onde ficar, dormem em abrigos para vacas.
As poucas que se desviam da norma divina são amaldiçoadas com “rituais de morte”. Radha continua viva e orgulhosa de ser mulher, embora nem sempre tenha sido assim. “Em pequena, quis morrer porque não via valor na vida de uma menina. Cheguei a fugir de casa com nove anos para me suicidar mas não soube como fazê-lo e voltei ao fim do dia”, desabafa a ativista, enfermeira de profissão. Em 2017, fundou a Radha Paudel Foundation, para emancipar e educar mulheres e homens para a justiça de género, a paz e os direitos humanos.
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Pelo menos três mulheres morreram em 2017
Num país onde a presidente, a porta-voz do Governo e a ministra da Justiça são mulheres, ainda se morre por sangrar. “Morrem por violação, sufocam com fumo de lareiras, morrem com o frio ou calor extremos, mordidas de animais, infeções.”
Só em 2017, a imprensa internacional noticiou três mortes, mas Radha acredita que o número real seja consideravelmente maior. “Não há dados oficiais porque há um grande silêncio à volta disso. Só são conhecidos os casos relatados pela polícia e pela comunicação social. As pessoas ocultam e conformam-se com o destino”, diz Radha, lamentando que ainda nenhuma investigação séria tenha sido levada a cabo.
Em janeiro deste ano, uma jovem de 23 anos foi encontrada morta numa cabana próxima da residência familiar, no distrito de Achham, onde, de acordo com um relatório da ONU (2011), a larga maioria das mulheres se submete a restrições, com a maioria a pernoitar em abrigos. Segundo noticiou a agência de notícias Efe na altura, a morte de Gauri Bayak Budha terá sido causada por inalação de fumos, uma vez que a jovem acendeu uma fogueira no interior do local, para se aquecer. A vítima terá ido dormir para a cabana depois de jantar, tendo sido encontrada pelos pais já sem vida na manhã seguinte.
"O meu sonho de vida é salvar uma menina
Foi movida pelo desejo de emancipação e pela vontade de servir os outros que, com 15 anos, Radha foi estudar enfermagem e, anos mais tarde, trabalhar para a cidade de Jumla, uma das mais pobres e remotas do país, palco de guerra civil entre governo e maoistas do Partido Comunista entre 1996 e 2006. Sobre essa fase da vida, lançou o livro “Khalanga Ma Hamala”, que venceu o Madan Purashkar, o prémio literário com mais notoriedade do país, e sobre o qual tem falado em conferências por todo o mundo. Em março, vai lançar um livro de poemas, incluindo dois sobre menstruação.
“O meu sonho de vida é salvar uma menina. Apenas uma menina, de todo o sofrimento pelo qual eu passei desde criança. Eu sei o quão difícil é ir para cama sem jantar, andar sem sapatos, trabalhar para grandes senhores. Passei por várias formas de violência na escola, na rua, no trabalho por não ter poder, por não ter dinheiro. “
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Cerca de 95% das mulheres cumpre restrições
Não há estatísticas oficiais sobre o número de mulheres que cumpre as restrições, uma vez que “há um grande estigma à volta do tema” e a “segregação das jovens mantém os médicos afastados”. Mas Radha, que é também fundadora e presidente da ONG “Action Works Nepal”, estima que a prática ocorra em 95% do território, sobretudo no extremo-oeste do país, onde se adensam a pobreza e a iliteracia.
“Chhaupadi” é praticado há séculos no Nepal, mas também em partes da Índia e do Bangladesh. Segundo Radha, existe um pouco pelo mundo inteiro, onde vivem nepalesas, independentemente da educação, das posses financeiras e da religião. “Já vi mulheres muçulmanas, cristãs e budistas a seguirem a prática”, assegura, acrescentando que testemunhou restrições em grandes cidades do Nepal e até nos Estados Unidos e no Reino Unido. O nome que se lhes dá varia de lugar para lugar: Chhaupadi pode ser Phadko Marne, Bahir Sarne, Panchhine, Pakha Lagne, e outros 40 termos, mediante a geografia.
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Nishma Khasel, 19 anos
"Tinha 13 anos quando tive o período pela primeira vez. Nessa noite, dormi num quarto separado, na casa da minha tia. Fiquei lá confinada por cinco dias mas estava autorizada a andar pela casa. A minha irmã e a minha tia ficaram comigo e informaram-me acerca do ciclo menstrual. A comida e outras necessidades eram me trazidas ao quarto. Não senti dor ou desconforto, nem tive medo, porque a minha tia tinha-me explicado tudo.”
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Nova lei vai criminalizar prática
O Supremo Tribunal do Nepal proibiu as restrições menstruais em 2005 e instou o governo a formular uma lei que erradicasse a prática a nível nacional. Em 2008, o Ministério das Mulheres, da Criança e da Previdência Social promulgou diretrizes nesse sentido, exigindo, entre outras medidas, a criação de comités em cada distrito do país para educar a população acerca da menstruação, mas, segundo um relatório da ONU datado de 2011, a adesão foi incompleta.
Dez anos depois, “ainda não houve nenhuma ação judicial no sentido da punição”, sendo que, para haver, os casos têm de estar associados a violação, morte ou homicídio. Em agosto deste ano, vai ser posta em vigor uma lei, aprovada no verão do ano passado, que visa criminalizar a prática.
Menos de metade das casas tem rede sanitária
Além do “estigma” e da “discriminação”, a “pobreza e a escassez” não ajudam à mudança e ao desenvolvimento. “As mulheres são economicamente dependentes dos homens, os produtos sanitários são raros e caros, e não são prioridade para as famílias”.
Em 2015, segundo a “National Planning Comission”, só 37% das casas nepalesas tinha rede sanitária. E, mesmo assim, a quase totalidade de ONG que trabalha no terreno não tem o acesso à água e a condições sanitárias no topo da lista das prioridades. “Há muita gente a trabalhar à volta da paz, dos direitos humanos, da saúde, da educação, do ambiente mas quase ninguém fala sobre condições sanitárias. E quem fala, não se foca no acesso a pensos higiénicos. Não se discutem os direitos da mulher menstruada”, diz Radha, lamentando que o Governo e as associações “não vejam que está tudo relacionado”.
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