– ON 29/01/2018
Outras Palavras
O feminino. O trabalho e o desamparo. A viagem como forma de enxergar e transformar a si mesma. Diretora de filme brasileiro premiado em Roterdã conta o que a inspirou a escrever a história
Por Caroline Leone
A primeira vontade de filmar o Pela Janela surgiu em uma viagem que fiz à Argentina, logo após o lançamento do meu curta Joyce. Era 2006, e eu, recém formada decidi fazer uma viagem pelo país. Viajar sempre foi um dos meus maiores prazeres, e sempre gostei muito de viajar solo.
Na volta peguei um ônibus de Buenos Aires até São Paulo. A viagem dura três dias, e ao meu lado sentou-se uma mulher que havia viajado com o marido, de carro, pra Buenos Aires. O marido era motorista, tinha conseguido um trabalho com uma família argentina pra levar o carro da família até uma fazenda nos arredores de Buenos Aires, e ela o acompanhou. Eles tinham por volta de 60, 70 anos. Ela tinha cabelos longos grisalhos, saia cinza, blusa de botão com flores bordadas. Não me lembro do nome deles, e nem de nenhuma informação especial, mas é só fechar o olho que consigo vê-los com a perfeição das memórias importantes. Ela começou me contando de sua vida em São Paulo, depois da viagem de carro e seus percalços, e finalmente dos dias que tinha ficado passeando sozinha em Buenos Aires, já que o marido tinha ficado trabalhando o tempo todo.
Ela nunca tinha saído de seu bairro em São Paulo, era uma mulher muito humilde, nunca tinha sequer imaginado poder fazer algo assim um dia, era uma costureira que tinha dedicado a vida aos filhos, ao marido e ao trabalho. Eu e ela passamos os três dias da viagem de ônibus conversando sobre a vida, sobre bobagens, sobre ser estrangeira e sobre esse enorme privilégio de poder viajar e ver a vida é a si mesma de fora. Me impressionou como com muito pouco nos ligamos tão fortemente, eu com uns 26 anos, e ela com quase 70, gerações de mulheres tão distantes não só pelo tempo, mas por toda a diferença social e cultural entre nós.
Na volta da viagem escrevi sobre esse encontro e só alguns anos depois, em 2009 escrevi o primeiro tratamento do filme baseado nessas primeiras anotações.
Fiz a viagem de carro entre Buenos Aires e São Paulo três vezes, pesquisando locações, histórias, e escrevendo as cenas pros lugares que ia encontrando. Conheci muitos personagens do filme nessas viagens também. Aproveitava muito do que acontecia comigo nas viagens para desenvolver as cenas, e voltava com muito material para trabalhar. O filme foi crescendo e em 2011 fechei a primeira versão do roteiro. De 2011 até 2015 foram longos anos de espera pra captação, e uma época um tanto nebulosa pra mim por conta disso.
O filme renasceu quando conheci uma outra mulher que me inspirou e transformou ainda mais a história: Maria, chefe de produção de uma fábrica de reatores em Pirituba (que é a fábrica em que filmamos). Eu usava meu tempo livre para vivenciar a fábrica e a vida de Maria. Ela é uma mulher forte, independente, de 65 anos, uma vida de sobrevivência em São Paulo. Chegou a chefe de produção sem ter qualquer formação pro cargo, ela dizia ser a fábrica, ela se sentia a fábrica.
Re-escrevi então o roteiro, e ao ganharmos o primeiro edital de produção refiz mais duas vezes a viagem de carro com esses novos olhos. Pesquisei as músicas de fronteira, conheci as guarânias, Cascatinha e Inhana, me lembrava da mulher do ônibus que havia nascido nas plantações de café, e de como a vida dela e de Maria iam se cruzando com a minha, de como éramos muitas mulheres unidas por um certo fio de resistência.
Assim nasceu a história de Pela Janela. As filmagens só aconteceram em Outubro/Novembro de 2015, e a montagem terminou em Abril de 2016. 2016 foi mais um ano de espera para a captação de fundos de finalização, e o filme ficou realmente pronto só em Janeiro de 2017, um pouco antes da estréia em Rotterdam.
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