Wânia Pasinato, doutora em Sociologia e assessora técnica do USP Mulheres. Eva Blay, professora emérita da USP e diretora do USP Mulheres
24/01/2018
Vivemos 2017 com a sensação da crescente violência contra as mulheres. Não só as mortes violentas, mas também a violência doméstica, os estupros, os assédios, a pornografia de vingança. Formas de violência que fazem parte do cotidiano de muitas mulheres, que ganharam novos nomes e com isso, também, mais espaço no debate público. Mas até o momento nos faltam condições para explicar com segurança quais fatores contribuem para esse movimento. Iniciamos mais um ano com uma tarefa pendente: investir mais na produção de informações nacionais sobre a violência contra as mulheres.
O tema não é novo, mas não custa relembrar. No Brasil convivemos com uma lacuna histórica na produção de dados nacionais capazes de mostrar as dimensões da violência contra as mulheres, suas características e produzir indicadores que nos permitam avaliar se as leis estão sendo aplicadas, como a ausência de serviços e investimentos afeta as respostas de prevenção à violência e proteção às mulheres, quais são os custos sociais e econômicos da violência contra as mulheres.
Sem esses dados os mecanismos de monitoramento das políticas e das leis especializadas tornam-se frágeis. Um exemplo é o que temos visto com relação à Lei Maria da Penha que tem sido permanentemente ameaçada por projetos legislativos que pretendem modificá-la sob o argumento de que seria ineficaz frente ao crescimento de casos de violência doméstica e familiar quando sabemos que falta muito para que a legislação seja aplicada da forma integral como proposta.
Existem também questionamentos com relação à Lei do Feminicídio, mas não temos informações para saber se os homicídios de mulheres estão sendo corretamente enquadrados de acordo com o tipo penal e precisamos refletir se queremos uma legislação que apenas mude o nome dos crimes ou se esperamos que o peso político dessa categoria contribua para refletir as mortes violentas praticadas em razão de gênero. São decisões políticas que deverão ser tomadas com base em estatísticas confiáveis e de abrangência nacional.
Vivemos 2017 com a sensação da crescente violência contra as mulheres. Não só as mortes violentas, mas também a violência doméstica, os estupros, os assédios, a pornografia de vingança.
O tema da produção de dados sobre violência contra mulheres está previsto nas convenções internacionais de direitos humanos e desde 2003 com a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres a discussão foi colocada na agenda política do governo federal. A proposta de criação de um sistema nacional de dados sobre violência contra as mulheres reunindo informações de todos os setores da política de enfrentamento à violência – segurança, justiça, saúde, desenvolvimento social – nunca saiu da pauta de discussões da secretaria. Ações e metas relativas à produção de dados e sistemas de informações foram também incorporadas às três edições dos Planos Nacionais de Políticas para Mulheres (2004-2007, 2008-2011, 2012-2015).
Na Lei Maria da Penha a produção de dados pode ser descrita como um quarto eixo de medidas a serem adotadas juntamente com as medidas de prevenção, proteção e responsabilização em casos de violência doméstica e familiar. Além do incentivo às pesquisas e estudos, a lei traz a recomendação para criação do Cadastro Nacional de Violência Doméstica e Familiar que deverá disponibilizar dados sobre ocorrências registradas em todo o País.
Dizer que a tarefa de desenvolvimento de um sistema nacional de dados está pendente, não significa dizer que nada tenha sido feito nos últimos anos. As discussões sobre um sistema único de dados nunca foram abandonadas pela SPM embora não se tenha chegado a uma conclusão sobre as formas de harmonizar registros de diferentes procedências e finalidades. Outra iniciativa foi o Observatório da Lei Maria da Penha (Observe) – uma experiência inédita para monitoramento da implementação de uma lei. Coordenado por um consórcio de organizações não governamentais feministas e núcleos de pesquisa sobre gênero, entre 2008 e 2011 o Observe desenvolveu metodologias e indicadores para monitorar a criação e funcionamento de serviços especializados na aplicação da Lei Maria da Penha nas áreas da segurança pública e justiça. A descontinuidade de investimento levou ao encerramento precoce de suas atividades.
O Cadastro Nacional de Violência Doméstica e Familiar começou a ser desenvolvido em 2009 com a participação de promotora(e)s de justiça engajados com a aplicação da Lei Maria da Penha. Em 2016 sua implementação teve avanço a partir de uma recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público emitida para todos os Ministérios Públicos estaduais.
O tema da produção de dados sobre violência contra mulheres está previsto nas convenções internacionais de direitos humanos e desde 2003 com a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres a discussão foi colocada na agenda política do governo federal.
No decorrer de 2017 o processo de implementação nacional teve andamento e embora não tenha se realizado sem dificuldades, foi possível avançar na adesão de praticamente todos os Estados – em setembro de 2017 seis unidades federativas ainda não haviam encaminhado informações. Problemas como a falta de pessoal para atuar na alimentação dos dados, as dificuldades de adaptação dos sistemas informatizados e o volume de procedimentos para serem cadastrados estão entre as justificativas para a implementação do sistema em todo o País. Problemas que poderão ser superados a curto prazo, dependendo do investimento dos Ministérios Públicos estaduais e da vontade política de seus dirigentes.
Uma vez implementado, o Cadastro Nacional constituirá uma ferramenta importante para gestão das informações relativas à Lei Maria da Penha, mas está longe de ser suficiente para que o Brasil dê por cumprido seu dever de produzir informações sobre a violência contra as mulheres ou para a produção de indicadores para a avaliação das leis e políticas. Podemos apontar três fatores que fundamentam essa afirmação. O primeiro se refere ao fato de que o Cadastro abrange apenas os casos enquadrados na Lei Maria da Penha. Embora a resolução do Conselho Nacional do Ministério Público incorpore os casos de feminicídios que tenham ocorrido em contexto de violência doméstica e familiar, permanecem sem serem contabilizados os feminicídios que ocorrem em outros contextos. Ficam também à margem de qualquer controle sistemático os registros de estupros que não envolvem parceiros afetivos ou não ocorrem no contexto doméstico e das relações familiares. Estão igualmente excluídas dessa sistematização outras formas de violência, como os assédios, por exemplo. Portanto, o retrato oferecido pelo Cadastro será ainda parcial para a produção de indicadores que permita avaliar a resposta institucional para a violência contra as mulheres.
O segundo fator está relacionado com a fonte de dados. O Cadastro é alimentado a partir de inquéritos policiais o que significa que registrará apenas a violência denunciada à polícia (e, se formos mais rigorosas, apenas àqueles casos que a polícia reconhece como violência doméstica e familiar). Já é bastante reconhecida a subnotificação da violência contra as mulheres, e não se trata apenas da violência doméstica familiar. O medo, o desconhecimento sobre os procedimentos policiais e o despreparo das instituições para acolher as denúncias são alguns dos fatores apontados quando se trata de dizer que as mulheres ainda sofrem sem buscar ajuda institucional.
Por fim, o terceiro fator decorre das instituições envolvidas com o preenchimento do Cadastro. Os Ministérios Públicos informam os procedimentos adotados sob sua responsabilidade o que significa que a partir dos registros cadastrados será possível conhecer quantos casos foram investigados pela polícia, remetidos ao Ministério Público e destes quantos foram denunciados ou arquivados. Outras informações essenciais para avaliar a aplicação da Lei Maria da Penha como as decisões judiciais nos processos criminais, a quantidade e a natureza das medidas protetivas de urgência que são solicitadas e deferidas, por exemplo, permanecerão desconhecidas até que o Poder Judiciário também desenvolva seus sistemas de informações que deverão ser integrados ao Cadastro Nacional de Violência Doméstica e Familiar.
Essas limitações não minimizam a importância do Cadastro Nacional, mas servem para reforçar a importância de investimento em outras formas de obter dados nacionais sobre a violência contra as mulheres. Parte do problema pode ser suprida por pesquisas que utilizem fontes de informações como a saúde, por exemplo, mas sempre estaremos com o olhar limitado pelos casos que chegam ao conhecimento do Estado – sejam como denúncias ou atendimentos médicos. Experiências de outros países tem ensinado que um avanço nesse campo ocorrerá quando houver investimento em pesquisas mais abrangentes, como os inquéritos de base populacional que propiciam uma aproximação maior com a violência que está presente no cotidiano das mulheres, mas que não necessariamente chega ao conhecimento das instituições. São exemplos as pesquisas de vitimização e as pesquisas sobre incidência e prevalência da violência.
O Cadastro Nacional de Violência Doméstica e Familiar começou a ser desenvolvido em 2009 com a participação de promotora(e)s de justiça engajados com a aplicação da Lei Maria da Penha.
No Brasil, a Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Universidade Federal do Ceará-UFCE/Instituto Maria da Penha) é um exemplo a ser analisado. A pesquisa aplicada nas nove capitais do Nordeste consiste em entrevistas domiciliares realizadas com 10 mil mulheres com idades entre 15 e 59 anos que foram ouvidas em duas rodadas, em 2016 e 2017. O questionário abrange as experiências de violência, conhecimento sobre normas sociais, leis e serviços, impactos sobre a saúde e sobre emprego e renda. Tem como foco a violência doméstica e familiar, mas também explora experiências de violência sexual e feminicídios. Trata-se da pesquisa mais abrangente já realizada no País sobre esse tema.
Os primeiros resultados mostram que uma a cada três mulheres nas capitais nordestinas sofreram algum tipo de violência física, sexual ou psicológica no decorrer da vida. Existem diferenças significativas entre as capitais, indicando para a importância de avaliações sobre a distribuição de políticas públicas na região. O impacto econômico foi medido e revelou que as mulheres vítimas de violência apresentam piores condições de ingresso e permanência no mercado de trabalho, o que se reflete em salários pelo menos 10% menores em comparação àqueles recebidos por mulheres que não relataram situações de violência. Essas informações são importantes se consideramos que o empoderamento econômico é uma das estratégias que defendemos como saída da situação de violência e retomada da vida com maior segurança e tranquilidade.
Grande parte das informações obtidas por essa pesquisa não consta de registros policiais ou da saúde, mas de forma complementar essas pesquisas podem ajudar a compreender os desafios que estão colocados às mulheres no acesso aos seus direitos e orientar a formulação e a implementação de políticas públicas que atendam às suas necessidades. Incentivar que pesquisas como essa realizada pela UFCE/Instituto Maria da Penha possam ser reproduzidas em todos os Estados, ampliar a implementação do Cadastro Nacional de Violência Doméstica e Familiar e obter do Poder Judiciário o compromisso de desenvolver um sistema integrado de dados são tarefas para nossas agendas de pesquisa e militância em 2018.
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