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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

A noite em que Ursula K. Le Guin pregou uma peça no patriarcado

Em 2003, ela se tornou a segunda mulher a receber o título Grande Mestre de ficção-científica. Sua aceitação do Prêmio Nebula, foi a síntese de uma carreira brilhante.

By Katherine Brooks
02/02/2018

Na noite de 19 de abril de 2003, num salão de festas do Radisson-Warwick Plaza Hotel, em Filadélfia, uma dúzia de convidados aguardava o sinal com máscaras na mão.
Cada um deles havia se infiltrado numa das mesas da cerimônia de entrega do Prêmio Nebula daquele ano, repleta de membros desavisados da Science Fiction and Fantasy Writers of America (SFWA), a organização que reúne os escritores de ficção científica dos Estados Unidos. Naquela noite, a grande Ursula K. Le Guin, embora ausente, seria homenageada como a segunda mulher a receber o título de Grande Mestre, concedido anualmente (com poucas exceções) pela SFWA desde 1975.
Os intrusos tinham um plano, mas deviam esperar secretamente pelo anúncio do título de Grande Mestre antes de levantarem as máscaras – que reproduziam o rosto da autora – para produzir algo especial: Ursula K. Le Guin estaria em todas as partes do recinto.
Eileen Gunn, amiga de Le Guin e também escritora de ficção, receberia o prêmio em nome dela. O sinal para que os divertidos intrusos entrassem em ação seria uma frase do discurso de Gunn ("Você pode pedir qualquer coisa a Ursula"). Logo em seguida, eles deveriam puxar conversa com os convidados, fazendo o papel da escritora. Era como se mais de dez Le Guins fossem homenageadas, em vez de apenas uma. Mais de dez mulheres. Como se a própria ficção científica estivesse dialogando com todas elas. Aquela noite, com sua generosidade e provocação, foi a síntese de uma carreira que misturou esses dois aspectos de forma brilhante.
O prêmio "foi muito importante", disse Gunn ao HuffPost, em 22 de janeiro. A homenagem pela carreira chegou 19 anos após a SFWA ter reconhecido a escritora americana Alice Mary Norton, mais conhecida como Andre Norton e autora do romance de ficção científica Witch World, como Grande Mestre. Apenas quatro mulheres receberam essa distinção desde Le Guin. Todos os outros premiados foram homens – os célebres Arthurs, Isaacs e Rays.
A ausência de Le Guin não foi uma forma de protesto, embora tenhamos motivos para pensar o contrário. Le Guin, que morreu em 22 de janeiro em sua casa em Portland, no Oregon, não tinha meias-palavras para mostrar o que pensava, especialmente quando o assunto era seu trabalho. A autora de Earthsea era conhecida por esbravejar quando sentia que a queriam encapsular em determinado gênero. "Não quero ser reduzida a 'escritora de ficção científica'", disse ao The New York Times, em 2016. "As pessoas sempre tentam me tirar da cena literária, e estou de saco cheio disso." Ela também era plenamente consciente da desigualdade de gênero num campo como a ficção científica. Em 1987, Le Guin se recusou a apoiar uma antologia toda de homens, escrevendo: "Não posso me imaginar ajudando a promover um livro... que, além de não conter nenhum texto de mulheres, possui um tom tão autocomplacente e exclusivamente masculino quanto o de um clube ou vestiário."
Não, Le Guin não podia receber seu prêmio porque estava num cruzeiro.


BETTMANN VIA GETTY IMAGES
Ursula K. Le Guin in San Francisco in 1985.

"Ursula e seu marido, Charles, já haviam agendado uma viagem com amigos que não podiam cancelar. A data de entrega do prêmio também não pôde ser adiada", disse Gunn ao HuffPost. "Então ela me pediu que recebesse o prêmio por ela."
Gunn chegou ao Radisson-Warwick com uma carta numa mão e uma dúzia de máscaras na outra. Com a permissão e a orientação de Le Guin, sua amiga subiu ao palco naquela noite e explicou aos membros da SFWA na plateia que sua mais recente Mestre coroada estava "na companhia das [aves] patolas-de-pés-azuis no Canal do Panamá" e, portanto, seria representada no jantar do Prêmio Nebula por um grupo de enviados que estavam "prontos para conversar e passar bons momentos".
Finalmente, veio o sinal. "Você pode pedir qualquer coisa a Ursula", proclamou Gunn. Ansiosos, os participantes da brincadeira levantaram suas máscaras e se sentaram, prontos para entrar em cena. Haviam sido incentivados a "inventar qualquer resposta que quisessem", e estavam ansiosos para cumprir a missão.
Gunn pôs-se então a encenar o roteiro preparado – um discurso de aceitação carregado, como ela disse, de "uma série de piadas de bastidores sagazes (e ligeiramente ofensivas) sobre a política da SFWA em 2003." Daí, passou para a melhor parte. Falando como Le Guin, sua amiga leu:
Reconhecendo o fato de que existe uma certa anomalia de gênero ao fazer de uma mulher "Grande" ou qualquer tipo de "Mestre" (embora eu possa garantir a vocês que "Grande Mestra" soe ainda mais anômalo), e reconhecendo também o fato de que poucos Grandes Mestres sejam mulheres – duas, para ser exata, a partir desta noite –, a fim de ajustar esse desequilíbrio, é decretado por mim, Grande Mestre Ursie, que, doravante, os Grandes Mestres aparecerão em funções públicas em roupas adequadamente anômalas do ponto de vista de gênero, a saber: para os cavalheiros, um vestido de noite decotado, com uma tiara modesta; para as damas, um terno escuro, camisa branca e gravata da SFWA.
"Estive no primeiro jantar do Nebula, um ou dois séculos atrás, e gostaria de poder estar neste", concluiu Le Guin em sua carta. "Por favor, todos vocês, divirtam-se muito!"
Le Guin tinha um talento especial para cutucar as convenções de seu tempo, às vezes brincando, outras não. Ela fez isso em discursos, cartas e entrevistas até sua morte. E também em sua ficção. Seu romance A Mão Esquerda da Escuridão (1969), vencedor do Nebula, conta a história de um terráqueo enviado em missão diplomática a Gethen, um planeta habitado por criaturas "ambissexuais" – sem um gênero fixo. Foi um intrincado experimento intelectual de desconstrução de identidades, ao qual ela deu continuidade, de forma ainda mais acentuada, por meio de um conto chamado Coming of Age in Karhide(1995). Le Guin disse que ressuscitou os gethenianos porque queria dizer nos anos 90, em face da terceira onda do feminismo, o que não podia dizer nos anos 60.
"Fui uma espécie de feminista de desenvolvimento lento", disse Le Guin ao HuffPost, em 2015. "Havia muita gente na minha frente escrevendo sobre ficção feminista. Mas eu as alcancei lenta e completamente. Não é uma questão de feministas exibindo algum tipo de bandeira, mas simplesmente de restaurar na ficção um equilíbrio que faltava. A ficção era praticamente toda masculina e centrada nos homens. É como sair pulando num pé só. Prefiro caminhar com os dois pés."
Le Guin se preocupou com o papel das autoras de ficção ao longo de toda a carreira – a forma como o trabalho delas era recebido e como seu legado se perpetuaria. "Os prêmios vão majoritariamente para os homens, mesmo quando os jurados são mulheres", disse ela na mesma entrevista. "Portanto, essa é a minha preocupação em relação a todas as escritoras, incluindo eu mesma. Seguimos alegremente em nossa vida, e então... 'poof'! De repente, temos que ser desenterradas por feministas 50 anos depois."
Le Guin deixa mais de 20 romances, 100 contos, uma série de livros infantis e inúmeras coleções de poesia e ensaios. Embora muitos de seus amigos e admiradores achassem que ela merecia uma chance no Prêmio Nobel de Literatura – um caminho seguro para um autor cimentar seu lugar na História –, Le Guin nunca realmente conseguiu chegar lá. Mas obteve o título de Grande Mestre. E a cerimônia do Prêmio Nebula certamente ficará na memória das pessoas ainda por muito tempo.
"Sua obra, imensa e variada, revela mais sobre ela do que é possível conseguir conversando com qualquer pessoa", diz Gunn. "Qualquer leitor determinado pode ter uma relação complexa com Ursula, pode discutir com ela, perceber sua incrível inteligência e seus variados humores e paixões. Ela ainda está aqui, não desapareceu. Vá ao encontro dela." Você pode pedir qualquer coisa a Ursula.

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