Justificando
13 de agosto de 2018
13 de agosto de 2018
Por Simony dos Anjos – Coluna Féministas
Discutir sexualidade no âmbito cristão produz muita polêmica, pois no espectro dos pecados cometidos pelo homem, os desejos da carne (ou desejos sexuais) foram eleitos como os pecados mais terríveis. O sexo e a sexualidade humana deveriam ser vistos com naturalidade, compreensão e como dádiva divina. O gozo sexual nada mais é do que criação de Deus – e tudo o que Deus criou é bom (Gn 1,31). Contudo, devido à constante demonização do sexo, urge discutir sexualidade entre os cristãos, mais, ainda, entre as mulheres cristãs. Assim, com o objetivo de promover uma troca de ideias sadia e necessária nessa seara, discorrerei neste breve artigo sobre o que chamo de tripé da opressão feminina nas igrejas: pecado original, a submissão feminina e o dever de procriar. Além disso, proporei uma reflexão sobre como a opressão da sexualidade da mulher pode ser somada a outras opressões sociais.
Para tanto, faz-se necessário recorrer a um evento importante do século IV: a sistematização do pecado original feita por Santo Agostinho, que vinculou o pecado à libido e ao desejo sexual. O que, no meu entender, é uma verdadeira tragédia, pois quem foi culpabilizada por não resistir à tentação do fruto proibido? Eva. Com isso, Agostinho sistematizou a culpa da mulher no que se refere ao pecado e o ligou à libido, o que é uma aberração interpretativa da Bíblia,uma vez que na cronologia bíblica da origem do pecado, o sexo é anterior à queda do homem. O sexo foi criado por Deus antes da expulsão da humanidade do Jardim do Éden, mas Agostinho vinculou o ato sexual ao rebaixamento da condição humana gerado pelo pecado e afirmou que sua necessidade é apenas procriativa. E, neste ponto, passamos a refletir sobre o tripé proposto, iniciando pelo pecado original.
Por outro lado, no entendimento cristão, não há demonização alguma da libido e do desejo sexual masculino, já que em Gênesis 3,16[1] a mulher é castigada a ter seu desejo submetido ao seu marido. E esta passagem de Gênesis 3,16 nos faz refletir sobre o segundo ponto do tripé da opressão da sexualidade da mulher: a submissão. Ao ser submetida ao homem, passa a ser obrigação da mulher servir o marido: cuidar do lar, ser uma boa esposa, boa mãe e boa parceira sexual. A mulher passa a ser entendida no meio cristão como um ser servil: inclusive em sua sexualidade. O sexo da mulher, no entendimento da Igreja, tem o objetivo de satisfazer o seu marido que, por direito, domina sobre o desejo desta. E, combinada ao pecado original, a submissão gera esposas que servem sexualmente seus maridos e não têm direito ao gozo, ao orgasmo, ao prazer. Afinal, a libido, a sedução e o corpo feminino levam ao pecado. Assim, a mulher se submete sexualmente por obrigação e não tem prazer por proibição.
A última parte do nosso tripé é o dever da procriação: procriar é um mandamento divino do livro Gênesis. Logo após criar os animais e o Homem, Deus manda que todos cresçam e se multipliquem (Gn 1,28). Contudo, o mandamento divino que tem por objetivo dar continuidade a sua criação, passar a ser uma obrigação feminina. Em todo o Antigo Testamento, mulheres inférteis eram vistas como inferiores – pois não podiam procriar. O dever de procriar no imaginário cristão atribui ao sexo feminino uma única virtude: ter filhos. A mulher que não deseja ter filhos tem sua sexualidade julgada como pecaminosa. A obrigação feminina de ter filhos atribui ao seu útero uma função social, ela não pode legislar sobre seu corpo:a sua tarefa é cumprir Gn 1,28.
Quando passamos a olhar para a sexualidade feminina na perspectiva desse tripé, entendemos o porquê das mulheres não desfrutarem plenamente de suas sexualidades; de não entenderem sua libido e como seus corpos funcionam. O corpo feminino é dotado de dispositivos de prazer que não têm ligação alguma com a procriação e, por isso, são ignorados. Sim, falo do clitóris e como ele é ignorado, já que se considera como função da vagina receber o sêmen para a fecundação. Uma mulher que carrega a culpa do pecado, o dever de satisfazer os maridos e de dar-lhe filhos, não tem espaço para desfrutar do prazer.
Agar era escrava de Sara, a grande matriarca na cultura judaico-cristã, pois era a esposa de Abraão. Sara era estéril e recebe de Deus a promessa de um filho, promessa esta que demora. Em sua ansiedade de ser mãe, Sara oferece sua escrava Agar ao seu esposo, Abraão, com o objetivo de gerar o filho – uma vez que os filhos das escravas eram considerados filhos das donas de suas mães. Assim, Abraão passa a dormir com Agar até que ela engravidou e deu à luz a Ismael, o verdadeiro primogênito de Abraão. Desse trecho da história, nos interessa o uso que Sara e Abraão fizeram do útero de Agar – contudo, para conhecer a história toda, recomendo o artigo de Elsa Tamez: A mulher que complicou a história da Salvação, no qual a autora faz uma análise brilhante de Gn. 16 e de Gn. 21.
Retomando o trecho bíblico (Gn 16), analisemos a luz do tripé sugerido anteriormente. Fica evidente que Agar não era dona de sua libido, ela foi entregue ao seu dono para gerar um filho que seria considerado filho de Sara. Agar era duplamente submissa: por ser mulher, se submeteu ao desejo sexual de seu dono, e por ser escrava, se submeteu às ordens de sua dona – o texto bíblico não dá voz ao desejo de Agar de se deitar ou não com Abraão e gerar um filho dele. Coube a Agar o dever de gerar o filho tão desejado por Sara e por Abraão e ela foi submetida a esse tratamento, justamente, por ser fértil, saudável e por poder gerar um filho – em outras palavras, passou a ser o seu dever gerar o filho exigido por seus senhores. A partir destes indícios, podemos dizer que Agar foi vítima de um estupro, que terminou com a expropriação do próprio filho. Nessa perspectiva, a intenção deste breve artigo é, justamente, juntar à já constatada opressão sexual que as mulheres sofrem nas comunidades cristãs,outras formas de opressão existentes – para que entendamos contra quais estruturas opressoras temos que nos colocar. Na história de Agar, fica evidente que além de sofrer um abuso sexual, por ser mulher, tiveram outros fatores que facilitaram esse abuso: ser egípcia (de outra nacionalidade) e escrava (que é uma condição social). Assim, podemos pensar em termos de subordinação de opressões, uma vez que existem outras condições que podem ser subordinadas à opressão de gênero e causar assimetrias sociais mesmo entre as mulheres.
É uma vasta seara que necessita ser desbravada em nossas comunidades e esse texto é apenas uma provocação para pensarmos: será que todas as mulheres estão sob as mesmas opressões? Por isso afirmo: urge discutirmos – em nossos movimentos feministas, entre as mulheres, entre as cristãs – todas as opressões das quais as mulheres são vítimas. Pra finalizar essa breve provocação, cito Angela Davis sobre o feminismo interseccional: não é possível pensar feminismo sem pensar gênero, classe e raça. Sim, se a igreja contribuiu muito para a opressão feminina no Ocidente; o capitalismo e o escravagismo contribuíram para subordinar ao gênero, outras formas de opressão. E, daqui em diante, devemos considerar cada eixo opressivo para dar voz a todas as mulheres: de Agar a Sara (principalmente para as Agares que são dia a dia silenciadas).
Simony dos Anjos é graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.
[1]À mulher, ele declarou: “Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará”.
[2] Temos que considerar a diferença entre a escravidão no Gênesis e a escravidão como conhecemos no Brasil. Contudo, na Bíblia há várias passagens que inferiorizam a cor de pele mais escura das cusitas (etíopes) e das mulheres com a pele queimada pelo sol (que trabalhavam, como em Cantares 1).
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