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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

A paternidade ativa é um antídoto contra o patriarcado


El País

Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres, costuma nos lembrar que muitas mulheres e meninas no mundo inteiro dedicam um número excessivo de horas aos afazeres domésticos. Normalmente destinam aos trabalhos reprodutivos e de cuidado mais que o dobro do tempo que os homens e meninos. Essa divisão desigual do trabalho não remunerado, mas que é fundamental para que a vida seja possível —está diretamente relacionada com a falta de envolvimento dos homens, mas especialmente com a irresponsabilidade ativa e imprudente militância no desapego que milhões de pais exercem em todo o planeta.

Aproximadamente 80% dos homens serão pais biológicos em algum momento da vida, e quase todos os homens têm alguma interação socializadora com meninas e meninos. Como nos lembra a escritora Silvia Nanclares, optar pelo “extincionismo” é tão legítimo como decidir se reproduzir. Mas, para que a vida continue, os pais importam e impactam, tanto na vida das mulheres com quem convivem, como nas possibilidades de ser e estar no mundo das meninas e dos meninos, de forma decisiva e permanente.
Antes que alguém precise gastar tempo e esforço para tirar a conclusão das entrelinhas (economizando as distâncias e com a licença de Betty Friedan), quando me pergunto quem sou ou o que quero da vida, respondo que, entre os elementos centrais que definem minha identidade, está o ser pai. E, sim, eu sou um místico da paternidade, um essencialista apaixonado, esgotado, transformado, muitas vezes contraditório e sempre comovido por minha experiência como pai.
Felizmente, a transformação irrefreável das mulheres mudou a agenda da paternidade. Se algo ficou claro depois da histórica jornada de mobilização feminista de 8 de março, é que, para alcançar uma igualdade real entre mulheres e homens, as relações de igualdade no âmbito familiar são tão imprescindíveis como irrenunciáveis. Para tornar isso possível, os homens temos de assumir a parte que nos cabe, contribuindo para a consolidação de uma nova forma coletiva de entender e exercer a paternidade, radicalmente associada ao assumir plena e equitativamente, de forma pessoal e intransferível, a responsabilidade que nos toca em todas as fases e trabalhos inerentes ao processo de criação dos filhos. Corresponsabilidade. Para conseguir isso, parece essencial ressignificar a paternidade, como um conjunto de práticas e ações por meio das quais os homens cultivamos, ativamos e mobilizamos todas as nossas capacidades humanas, bem como o nosso potencial biopsicológico para exercer e praticar os cuidados.
Mas, como acontece com o amor romântico, os pais não somos meias laranjas lutando para cuidar de uma porcentagem —quase sempre escassa e vantajosa para nós— das tarefas de cuidado. A esta altura da história, devemos assumir pessoalmente, e nos incorporarmos ao processo de negociação com nossa companheira, a partir da convicção e da contingência política de que representamos uma unidade cuidadora autônoma e plena, capaz de assumir a responsabilidade completa em nosso desempenho parental. Não se trata, portanto, de ser um pai executor de tarefas complementares e auxiliares em relação à figura materna, mas de, com base na capacidade plena, no comprometimento e na consciência dos nossos privilégios, sermos capazes de estabelecer pactos de convivência equitativos, conscientes e negociados com nossas parceiras.
Mas o caminho para esse modelo de paternidade positivo, equitativo, pacífico, terno, corresponsável, independente e integrado não está isento de contradições, e, inevitavelmente, fará cada um de nós transitar por momentos e processos de crise. Paramos de viver em torno do nosso umbigo e nos tornamos seres cuidadosos, em vez de homens que cuidam. Não somos mais o centro da existência. Outro ingrediente da crise é o fato de que a paternidade consciente nos faz enfrentar um mundo emocional imenso para o qual às vezes nos faltam códigos, referências e ferramentas. Mas só temos dimensão do grande desafio quando, provavelmente pela primeira vez em nossa existência, vivemos em primeira pessoa como o exercício responsável dos cuidados afeta direta e irremediavelmente os privilégios culturalmente herdados: roubam-nos o tempo, o protagonismo e a possibilidade de permanecermos livres e onipresentes no trabalho, no partido, na associação ou no sindicato.
É fato: a igualdade tem muitos benefícios, mas também apresenta efeitos colaterais nos homens. Muitos de nós, quando nos tornamos pais, ficamos doentes, pensamos que vamos morrer, mancamos, sentimos tonturas, náuseas, insônia, alterações de humor, cãimbras, descobrimos a próstata, fazemos vários exames para detectar o tumor imaginário que nos ameaça... O medo nos atormenta, mas a única coisa que buscamos é recuperar a centralidade perdida.
Como exemplo dessa transformação assimétrica e contraditória, quando perguntaram ao alpinista catalão Ferran Latorre o que ele pensou e sentiu ao escalar sua 14ª montanha com mais de oito mil metros de altitude, respondeu sem hesitação: “No topo do Everest pensei na minha filha, Clara, minha única razão de existir.” Não é isento de contradições o fato de que, no topo do mundo, um alpinista que poderia ter perdido a vida durante a escalada, estar pensando em sua filha, a pessoa mais importante do mundo, mas de quem ele não está podendo cuidar. Esse é um exemplo claro do que entende por “hibridizações da masculinidade”, onde a épica clássica do ser homem, relacionada à conquista e ao sucesso na superação limites e riscos convive com novos referenciais da paternidade, nos quais o amor pelos filhos (embora nem sempre o compromisso ou presença esteja no mesmo nível) é a coisa mais importante na vida de um pai-homem. Mas, apesar das contradições, temos que continuar insistindo.
Ainda que algumas das mudanças no modelo de paternidade não sejam muito evidentes ou tão profundas como gostaríamos, temos razões fundamentadas para o otimismo, já que a prática da paternidade igualitária e o “banho emocional” que ela implica, poria em causa de forma radical a própria definição que o sistema patriarcal faz da masculinidade. Para o especialista em gênero e masculinidades Victor Seidler, a relação emocional que alguns homens hoje mantêm com seus filhos e filhas marcaria uma verdadeira mudança intergeracional, profunda e permanente, uma vez que “para manter sua autoridade, os pais patriarcais tinham de manter distância dos filhos, já que se pensava que a proximidade ameaçava seu status. Essa distância, que às vezes se transformava em prova de masculinidade, frequentemente os impedia de se relacionarem emocionalmente com seus filhos”. Dessa forma, a autoridade, no modelo da masculinidade hegemônica, seria obtida ao preço de rejeitar o envolvimento emocional. Isso significa que “os pais estavam ‘na’ família, mas não faziam parte dela”. Por tudo isso, a proximidade e o compromisso emocionais seriam duas das características distintivas tanto da paternidade comprometida quanto da mudança geracional em direção a modelos identitários e práticas mais equitativas.


Ritxar Bacete e sua filha.
Ritxar Bacete e sua filha. 


Nessa complexa rede de relações, apesar do crescente envolvimento dos pais na criação dos filhos, há uma distância significativa entre o que devo ser, o que acredito estar fazendo, aquilo que considero justo e apropriado para um bom pai e o que realmente estou fazendo. O fator geracional não está isento de paradoxos e, para compreendê-lo em toda a sua dimensão, é preciso levar em conta a lacuna e as contradições que podem ocorrer entre os ideais e as práticas. Segundo os dados do estudo do Centro de Pesquisas Sociológicas, as novas gerações expressam nas diferentes pesquisas de opinião atitudes claras em favor da igualdade dentro da família. 79% dos entrevistados com idades entre 25 e 34 anos acreditam que a família ideal é aquela “em que os dois parceiros têm um emprego remunerado com dedicação semelhante e ambos dividem as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos e filhas”. Mas a relação de homens e mulheres com o mercado de trabalho continua significativamente desigual.
A parentalidade positiva, que por definição é uma paternidade igualitária, presente, comprometida e equitativa é um dos fatores mais poderosos da transgressão e transformação de papéis sociais culturalmente atribuídos aos homens, que incide diretamente no empoderamento das mulheres e apresenta vantagens que são empiricamente verificáveis para as meninas, os meninos e as companheiras que vivem com esses homens. Mas para que as mudanças sejam realmente profundas, a relação dos homens-pais com o mundo laboral tem, necessariamente, que ser impactada e transformada. Assim, as mudanças positivas que ocorrem em torno da experiência da paternidade igualitária envolvem a expansão das liberdades e capacidades no âmbito familiar, mas também repercutem de forma positiva na transformação do mundo laboral.
Para entender a dimensão e o impacto que o envolvimento positivo e equitativo do pai pode ter na criação dos filhos, é importante levar em conta as principais consequências e vantagens empiricamente comprovadas.
A paternidade positiva é um fator de saúde, pois ajuda as filhas e os filhos a crescerem mais saudáveis. Já se constatou que a participação do pai afeta os filhos e as filhas tanto como a da mãe. Por outro lado, a paternidade positiva implica o desenvolvimento de relações de afeto seguras, que incidem diretamente no melhor desempenho escolar, com impacto no desenvolvimento emocional ótimo de meninas e meninos.
Mas um dos efeitos mais positivos é encontrado no fato de que a paternidade igualitária contribui para o empoderamento das mulheres e das meninas, já que, quando são corresponsáveis pelos cuidados e tarefas domésticas, os homens apoiam a participação das mulheres na força de trabalho e a igualdade das mulheres em geral. Ao mesmo tempo, o compromisso dos pais com uma paternidade presente contribui para diminuir tanto a violência contra as mulheres, quanto a que é exercida por homens contra meninas e meninos.
E como vale a pena continuar empenhados na busca da felicidade, não podemos deixar de valorizar o fato comprovado de que a paternidade ativa torna os homens mais felizes e saudáveis. Os pais que se apegam de forma mais positiva a seus filhos e filhas afirmam que esse relacionamento é uma das razões mais importantes para seu bem-estar e felicidade. Alguns estudos apontam, ainda, que os pais que têm uma relação próxima e sem violência com seus filhos e filhas vivem mais, têm menos problemas de saúde mental ou física, são menos propensos a abusar de drogas ou álcool, são mais produtivos no trabalho, experimentam menos estresse, têm menos acidentes e dizem sentir-se mais felizes do que pais que não têm esse tipo de relação com seus filhos e filhas.
Em todos os aspectos, a paternidade igualitária vale a pena. Feliz dia, bons pais!


TUDO SÃO VANTAGENS


A paternidade positiva é um fator de saúde, pois ajuda as crianças a crescerem mais saudáveis; implica o desenvolvimento de relações afetivas seguras —que incidem diretamente em um melhor desempenho escolar, com impacto no desenvolvimento emocional ótimo de meninas e meninos—, contribui para o empoderamento de mulheres e meninas; reduz a violência contra mulheres e crianças; e torna os homens mais felizes e saudáveis.

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