Carta Forense
05/09/2018 por José Fernando Simão
05/09/2018 por José Fernando Simão
É de se perguntar se após a decisão da repercussão geral 809 pelo STF o companheiro passou a ser herdeiro necessário. Na decisão do Recurso Extraordinário 878.694 o STF decidiu, por maioria, “reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 e declarar o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002”. Não há expressa menção à questão de ser ou não companheiro herdeiro necessário.
Em minha opinião, por força da decisão em questão, a resposta é afirmativa. Contudo cabe uma nota pessoal. Eu entendo que não deveria haver igualdade de efeitos, ou seja, identidade de efeitos, em respeito à liberdade que a pessoa tem de se formar a família por formas diversas. O Estado deveria proteger a união estável, mas não igualá-la ao casamento.
Entretanto, é a partir da leitura da decisão do STF, dos fundamentos nela contidos, que concluo que os companheiros são herdeiros necessários.
I - Uma breve nota histórica: desequiparou-se o que estava equiparado.
Antes da vigência do atual CC, duas leis regulamentavam a união estável no Brasil: Lei 8.971/94 e 9.278/96. As leis surgem para regulamentar o artigo 226, parágrafo 3º da CF pelo qual a família decorrente da união estável passou a ser protegida.
É importante frisar que por opção do legislador da década de 1990, os efeitos sucessórios do casamento (artigo 1611 do CC/16) e da união estável (artigo 2º da Lei 8.971/94 e artigo 7º da Lei 9.278/96) eram idênticos. Para fins sucessórios, casar ou se unir estavelmente produziam iguais efeitos.
Com o CC de 2002, a igualdade sucessória foi perdida por força do artigo 1790 do CC. O sistema harmônico e socialmente aceito passou por um abalo que, conforme reflexões várias que fiz anteriormente, gerou desconforto ao julgador e à sociedade.
Nesse sentido, iniciou-se verdadeira batalha pela declaração de inconstitucionalidade do dispositivo. Em razão da reserva de plenário, vários tribunais se manifestaram quanto o tema e suas decisões revelam o desconforto gerado pelo desarmônico artigo 1790.
Enquanto os tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul, São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais e Distrito Federal declararam o dispositivo constitucional, os tribunais de Justiça do Paraná e do Rio de Janeiro o declararam inconstitucional.
Então, após quase 14 anos de vigência do CC, o STF iniciou o julgamento do Século em matéria de sucessões: o artigo 1790 é efetivamente inconstitucional?
II – Voto do ministro Barroso — fundamento da inconstitucionalidade
Os fundamentos do voto foram vários e dois merecem nota.
(a) Não é legítimo desequiparar casamento e união estável para fins sucessórios, pois a hierarquização é incompatível com a Constituição Federal.
(b) a diferenciação entre casamento e união estável pode ser legítima ou arbitrária.
(a) A equivocada hierarquização.
A parte final do artigo 226, § 3º da CF prevê “devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Essa locução levou alguns autores e o próprio STJ em diversas decisões a um equívoco na interpretação do dispositivo. Não criou a CF uma hierarquia entre as formas de família: casamento não é melhor, nem pior que união estável.
Assim, argumentos utilizados em profusão pelas decisões do STJ tais como o regime de separação obrigatória deve ser imposto aos septuagenários em união estável, sob pena de o casamento ser pior que a união estável, demonstram que há um equívoco interpretativo grave do texto constitucional.
Na realidade, a Constituição apenas determina ao legislador que não dificulte a conversão da união estável em casamento, mas não determina ao cidadão que se case. E nem poderia fazê-lo, pois é vedada a interferência do Estado nas decisões quanto ao planejamento familiar.
União estável e casamento são formar distintas de constituição de família, mas não há hierarquia entre elas: não há uma melhor, nem uma pior.
O fato de não haver hierarquia, conforme leciona Barroso em seu voto, implica igualdade de tratamento?
(b) “Diferenciação legítima ou arbitrária, eis a questão”
O voto reconhece que a ampliação do conceito de família não implicou equiparação absoluta entre casamento e união estável. Diferenças existem quanto à criação, comprovação e extinção. Logo, é possível que o legislador crie regimes diferentes para os institutos. A diferença não é, por si, inconstitucional.
Contudo, a questão é saber se a diferenciação é legítima ou arbitrária (item 42 do voto). Segundo o Ministro Barroso, são esses adjetivos que caracterizarão a inconstitucionalidade: se a diferenciação for legítima ela é constitucional, mas se arbitrária será inconstitucional. O Ministro exemplifica como legítima a diferença quanto aos requisitos para comprovação dos institutos (item 44).
Então vem a questão: como podemos saber se a diferenciação feita pela lei é ou não arbitrária? A dúvida de Hamlet passa a ser a dúvida de todos os juízes ao aplicarem o Código Civil e demais leis em matéria de união estável.
Da leitura do voto do Ministro Barroso percebe-se uma linha condutora. Só é constitucional a diferença quando da criação, comprovação e extinção, logo, em termos de efeitos, união estável e casamento não podem ser diferenciados, sob pena de arbitrariedade e consequente inconstitucionalidade.
b.1) Diferenças na criação são legítimas, logo constitucionais
O casamento passa pelo ritual de habilitação, celebração e registro no livro B do Registro Civil e a união estável é um simples fato da vida: união pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir família. É legítima e constitucional a diferença.
b.2) Diferenças na comprovação são legítimas, logo constitucionais
O casamento se comprova pela certidão de casamento, já que este é registrado no livro B do Registro Civil. A certidão é a prova essencial de sua existência. Já a união estável pode ser comprovada por simples prova testemunhal, por contrato escrito ou mesmo escritura pública.
b.3) Diferenças na extinção são legítimas, logo constitucionais.
O casamento válido só termina pela morte de um dos cônjuges (velho adágio pelo qual mors omnia solvit), pela invalidade (seja o casamento reconhecido como nulo ou anulável) ou pelo divórcio.
Aliás, o próprio CC reforça a importância da separação de fato ao permitir a união estável de pessoas que se encontram nessa situação (art. 1.723, p. único do CC).
b.4) Diferenças quanto aos efeitos são ilegítimas, logo inconstitucionais
A aparente simplicidade da questão até o momento não deve iludir o leitor. A partir de agora, vem um cipoal, um emaranhado de problemas que decorrem do voto do Ministro Barroso.
Dessa premissa, a conclusão que se chega é óbvia. Na redação do artigo 1.829, onde se lê atualmente “cônjuge” se lerá “cônjuge ou companheiro”. Essa leitura se espraia por todo o livro de Sucessões. Dúvida não há que cônjuge e companheiro terão direito real de habitação em caso de falecimento do outro (art. 1.831 do CC). Todos os dispositivos de concorrência sucessória se aplicam igualmente aos companheiros: art. 1.832 (concorrência com descendentes) e art. 1837 (concorrência com ascendentes). O companheiro exclui o colateral da sucessão (art. 1.838).
Assim, não há como se negar pelos fundamentos da decisão do STF que o cônjuge e o companheiro são herdeiros necessários e ambos fazem jus à legítima (art. 1.845 do CC).
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