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domingo, 9 de setembro de 2018

Misoginia e a cura do masculino

Texto original por Charles Eisenstein

Tradução livre de Denize Guedes
1 de junho de 2016 

Minha nova cidade, West Asheville, está no noticiário. Um café local, o Waking Life Espresso, fechou as portas depois de seus proprietários Jared Rutledge e Jacob Owens serem enxotados por manter um blog misógino. Além dos comentários repulsivos e degradantes às mulheres, de detalhes de supostas conquistas sexuais, eles ainda alardeavam um ou dois incidentes que podem muito bem ter cruzado a linha do estupro.
Como se pode esperar, a comunidade explodiu em ultraje. Todo tipo de manifestação em repúdio aos dois homens foram feitas e muitas pessoas acreditam que eles terão de deixar a cidade.
Eu fico imaginando, porém, se não poderia haver um melhor desenlace. Afinal, as atitudes deles são uma versão extrema de um mal que aflige muitos homens em nossa sociedade. Talvez, aflija a maioria. Quem entre nós, meus amigos, nunca usou transar como uma forma de aumentar nossa auto-estima? Eu sei que eu já — na verdade, houve um tempo em que essa era a minha motivação primária. Enquanto eu, publicamente, não dava notas nem dizia coisas degradantes de minhas parceiras, eu me sentia desconfortável em ser visto com elas se não estivessem dentro dos padrões culturais de atratividade. E me sentia orgulhoso se estivessem. Até certo ponto, entrei nessa coisa de usar mulher como uma espécie de moeda social. Também usei sexo e a afeição de uma mulher como uma forma de amenizar minhas inseguranças e como unguento para minhas feridas de auto-rejeição. Em outras palavras, acho que as ações de Jared e Jacob estão em um continuum com minhas próprias atitudes e ações, o que me faz hesitar em me juntar ao apedrejamento público que parece estar em curso.
O desenlace que gostaria de ver é de cura, tanto dos dois homens como das mulheres e da comunidade maior que machucaram. Muitas das pessoas que comentam no blog que expôs o caso acreditam que os dois homens apenas passaram a se sentir mal porque foram pegos. Mas talvez eles quisessem inconscientemente ser pegos.
As sombras inconscientes ascendem para a nossa consciência por uma razão — para serem encaradas e curadas. Aqui está a misoginia, previamente no subsolo, agora feita visível para todos. A comunidade pode aceitar essa oportunidade de cura ou pode simplesmente banir os homens e fingir que o problema foi embora.
Pessoalmente, eu gostaria de ver algo como uma comissão da verdade e da reconciliação surgir desse incidente. Eu gostaria de ver os homens confrontados por aquelas a quem fizeram mal e realmente ouvir como foi para essas mulheres ser humilhada, como foi para suas famílias e para a comunidade. Ser pego traz arrependimento. Mas somente sentir plenamente o impacto [das ações] de um sobre o outro é que traz remorso. E do remorso surge a possibilidade de cura.
A sociedade está ficando ciente do estrago feito pelo patriarcado sobre as mulheres — da opressão econômica à violência doméstica, tráfico sexual, estupro e mutilação genital. Mas o patriarcado também arruina os homens. Muitos de nós cresceu em uma história cultural tóxica do que seja ser homem. Quando as mulheres são transformadas em objetos e o sexo é feito artificialmente escasso (tudo se torna escasso quando sujeito ao pensamento de propriedade), então, é evidente que os homens ficarão inseguros. Como com o dinheiro, eles tentarão obter uma sensação de segurança por meio do controle de recursos escassos. Eles sentirão uma compulsão por dominar — porque em um mundo de escassez, somente o dominante experimenta a abundância.
A vida de um homem no patriarcado é uma vida de ansiedade sem fim. Ser um perdedor nunca está distante o suficiente. Certo, você pode dizer que esse sofrimento psicológico é pálido em comparação à violência física perpetrada contra as mulheres. Mas considere: quanto um homem precisa estar sofrendo para violentar e abusar da dádiva mais preciosa do feminino?
Tragicamente, o comportamento dominante, controlador e abusivo adotado por homens inseguros e estragados pelo patriarcado não satisfaz suas necessidades. Eles desviam a necessidade de intimidade para o sexo, desviam a necessidade de aceitação incondicional para o controle. Por isso, não importa o quanto transem, não importa quantas mulheres dominem, nunca será suficiente. Sempre precisarão aumentar a dose, elevar a degradação da mulher a novos níveis. E mesmo assim não será suficiente.
Homens como Jared e Jacob são sintomas de um mal muito mais profundo. Envergonhá-los e puni-los endereça o sintoma. Podemos também endereçar a doença para a qual o sintoma aponta?
Parte disso, acredito, é transitar para uma nova narrativa cultural que defina o que seja ser viril. Se a velha narrativa era sobre dominação, controle e desligamento emocional, qual seria uma alternativa? Eu gostaria de ver homens como Jared e Jacob em um círculo de homens que os oferecesse uma história do sagrado masculino em um mundo pós-patriarcal. Nesse mundo, um homem não domina nem abusa da mulher, mas busca protegê-la, apreciá-la, agradá-la, ser inabalável para ela, fazê-la rir, trazê-la presentes e, como em uma dança de salão, sentir para onde ela quer ir e convidá-la para lá com clareza e confiança. Ele coloca suas qualidades de linearidade, capacidade de decisão, humor, calma, solidez, direção, força, persistência, generosidade, mobilidade e assertividade a serviço da dança. Ofereço isso como uma descrição parcial do que um sagrado masculino possa ser, vivendo em diferentes graus dentro tanto de homens e como de mulheres.
Como homens tal qual Jared e Jacob agiriam se estivessem imersos em uma cultura masculina ancorada nessa visão de masculinidade? É difícil dizer, uma vez que não temos ainda uma cultura dessas. Entretanto, sei que muitos homens estão se esforçando para criá-la, juntando-se em grupos de homens para se responsabilizarem pelos valores que mencionei. Eles não ficam impressionados com histórias de conquista sexual. Eles não ficam impressionados com fraqueza mascarada de força. Eles não ficam impressionados com insegurança expressa como dominância. Eles diriam, “Seja homem!”. Estou esperando muito? Imaginar esses dois chegando em um círculo de irmãos para cultivá-los em uma nova História da Masculinidade?
Enquanto o momento de raiva é normal, talvez até saudável, com o tempo ela passa e nós naturalmente vamos em direção ao desejo de refazer o tecido de comunidade. Essa transição é difícil em uma “cultura do outro”, que seleciona determinadas pessoas e as aloca em uma categoria de “más”. Qualquer pedido de desculpas é interpretado como insincero, qualquer tentativa de fazer as pazes é interpretada como em serviço próprio. O próximo passo na “cultura do outro”, depois do meliante ter sido corretamente identificado como monstro e desprezível, é aviltar, humilhar e punir essa pessoa. Passo um: desumanizar; passo dois: punir. Você pode ver como essa receita precisamente espelha a misoginia e o abuso perpetrado pelos dois homens? Pode ver a mesma insegurança em jogo, quando nos asseguramos, “Eu sou melhor do que aquela pessoa. Se eu estivesse na totalidade de suas circunstâncias, teria escolhido diferente — porque simplesmente sou melhor”.
“Que atire a primeira pedra quem nunca pecou.”
Alguns leitores vão sem dúvida pensar que eu estou sugerindo que o comportamento de Jared e Jacob fique impune. Certamente, na lógica da punição, eles merecem ser punidos. Nessa lógica, minha sugestão por um processo alternativo (verdade e conciliação, justiça restaurativa, etc.) somente pode ser categorizada como de desculpabilização e de tolerância de seu comportamento. O que estou sugerindo é pisar fora de todo o mindset de dissuasão e punição (que, a propósito, é a lógica de todo o complexo prisional industrial e de muito da política externa dos EUA). Esse mindset apenas faz sentido se “os terroristas”, “os criminosos”, “os extremistas”, junto com homens como Jared e Jacob, sejam psicopatas irremediáveis que apenas escutarão à linguagem da força.
Em um mundo de nós contra eles, punição é o único caminho. Será essa a nossa visão para um mundo mais bonito? Purgá-lo das pessoas más, assim ficando apenas os puros? Será essa a nossa visão de um ser humano melhor, de nos purgar de pecados? Não vai funcionar. Em nenhum dos casos o mal desaparece. Ele apenas vai para o subsolo e aparece em forma diferente em outro lugar. E a Guerra ao Mal nunca acaba.
Queremos mandar esses dois homens arrependidos (mas sem remorso) para fora da cidade, carregando ainda mais ódio próprio do que tinham? Talvez apenas para extravasá-lo com um pouco mais de discrição em outro lugar?
Ao invés disso, podemos cultivar uma comunidade que se move, passando da velha história de julgamento e punição, que está aberta para a redenção de erros, que acredita na capacidade de seus membros de se regenerar e de crescer. Em uma comunidade assim, podemos parar de esconder nossas partes machucadas, nossas partes feias e inaceitáveis. Sabemos que somos aceitos em nosso cerne. Quando confrontados com o mal que infligimos, nos sentimos seguros de nos mover pela vergonha e experimentar remorso, sabendo que o perdão está do outro lado. Como um ser humano imperfeito eu mesmo, é nesse lugar que quero viver. Não é o tipo de comunidade em que você gostaria de viver também?
Charles Eisenstein é professor, palestrante e escritor especializado em temas que envolvem civilização, o inconsciente, dinheiro e evolução da cultura humana.

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