Olhar para nós mesmos e pessoas queridas ao nosso redor com carinho pode ser essencial e mudar cenários.
Marcela Campos
21 de Novembro de 2018
É engraçado como a barba aparada bem quadrada e a armação preta, grossa, dos óculos não se parecem nem um pouco com a imagem que você tinha do vizinho alcoólatra, cujos gritos faziam vibrar a parede da sala na hora que acabava a novela das nove.
O sorriso aberto, a camisa de linho ajustada ao corpo, cash caindo na conta todo quinto dia útil para pagar, entre outras, uma IPA das boas na sexta-feira. A vida assim bonita, gostosa, fluída. Ninguém olha para esse cara e se pergunta quantos chopes já lhe desceram hoje.
Fato é que o álcool tem sido um dos entorpecentes mais consumidos pela história da humanidade - o seu uso data da Pré-História. Já a fabricação da bebida em sua forma destilada teve início já no séc. XII. Até hoje, o álcool é uma das drogas mais bem toleradas e assimiladas por uma enorme variedade de culturas por todo o mundo. As poucas tentativas de banimento falharam categoricamente. De norte a sul, leste a oeste, todo mundo (ou quase!) desce uma pinguinha. E não tem mal nisso, não é?
É. Na maioria das vezes, não. O único problema é que, em outras, isso tudo pode dar muito, muito errado.
Segundo o Relatório Global Sobre Álcool e Saúde, publicado em setembro deste ano pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o álcool esteve relacionado a 3 milhões de mortes em todo o mundo no ano de 2016. No Brasil, esteve associado a 36,7% e 23% dos acidentes de trânsito e 69,5% e 42,6% das ocorrências de cirrose hepática, respectivamente para pessoas do gênero masculino e feminino.
Os homens bebem mais - estima-se que consumam, no Brasil, 13,4L de álcool puro por ano, cada. As mulheres brasileiras ficam responsáveis por 2,4L por ano, cada, fechando nossa estimativa geral per capta em 7,8L por ano. Não por acaso, o gênero masculino também domina os índices de dependência alcoólica - são 6,9% dos brasileiros dependentes contra 1,6% das brasileiras.
Mas o consumo vem diminuindo e tornando-se mais saudável. Na comparação com anos anteriores, não só a ingestão da substância vem diminuindo, mas também os episódios de binge drinking (beber demais, 60g ou mais de álcool puro, de uma só vez, de forma episódica). É esse um dos padrões de consumo mais nocivos, que causam consequências agudas mas possivelmente graves ou fatais. Estamos aprendendo.
A nossa relação com a bebida é controversa, uma variante numa escala de prazer à destruição. Eu diria que ter conversas desonestamente anacrônicas sobre o assunto não é só contraproducente, mas perigoso. Se nos encontramos entre os papos categóricos da felicidade líquida e da virilidade alcoólica ou do pai severo que castra toda vontade de experimentar, não achamos espaço para pensar em como essa relação se dá. E ainda que isso não seja verdade só para o álcool, é nesse limbo que a linha entre o consumo por prazer, o consumo como muleta social e a dependência torna-se tênue.
Não me leve a mal; não quero que você pare de beber. Isso aqui é um convite: qual é a sua relação com a bebida?
Quanto você precisa beber pra sentir prazer? É pela acidez do vinho na língua ou por virar o maior número de shots possível que você bebe? Amigos, família, pessoas próximas, como relacionam-se com o álcool? Já fizeram comentários sobre seus hábitos?
Para que a nossa conversa seja respaldada por uma base sólida do que se conhece sobre o consumo de álcool até hoje, conversei com a Dra. Silvana do Vale, médica oncologista que me contou que o câncer pode ser uma das heranças do abuso alcoólico.
Você sabe como é que a substância age no seu corpo?
A composição do nosso sistema nervoso conta com dois subsistemas em alternância - o sistema inibitório e o sistema excitatório.
Os primeiros copos ou alguns drinks para quem não costuma beber em grandes quantidades tratam de coibir o nosso sistema inibitório - ficamos falantes, alegres, simpáticos, abertos às possibilidades. Ficamos no brilho.
O problema é que conforme a bebedeira avança e o hábito de beber em grandes quantidades vai tornando-se constante ao longo do tempo, o álcool passa a coibir também o sistema excitatório. O bêbado chorão, triste, sonolento, birrento, dá as caras. A longo prazo, principalmente em quadros de dependência, o brilho apaga-se completamente para dar lugar à demolição da autoestima, senso de identidade e proximidade com amigos e familiares e ao funcionamento da vida do sujeito.
As consequências não se restringem ao âmbito psicossocial - além da bastante comum cirrose hepática, entram para a lista das consequências físicas o risco aumentado de cânceres de cabeça e pescoço, estomacal, intestinal e de bexiga. Comprometimentos do sistema nervoso também podem acontecer como perdas cognitivas, sensoriais e de memória.
Segundo a Dra. Silvana, não há dúvidas de que o álcool seja uma droga. A grande diferença para com as outras drogas é a aceitação social e a sua legalidade, mas ela lembra ainda que a substância pode causar tanto ou mais dano do que outras drogas. Explica ainda que existe, sim, predisposição genética hereditária para o vício - algo que está na alçada das equipes de saúde identificarem por meio da observação de comportamentos e histórico familiar.
Mas isso significa que para todas as pessoas, qualquer quantidade e frequência de consumo são nocivas?
Qual é a medida?
A verdade é que, segundo a publicação recente mais relevante sobre o assunto, não existe nível seguro de consumo. Ainda que possa haver pequeno efeito benéfico para a saúde cardíaca, no fim das contas, qualquer quantidade de álcool, desde uma dose ao dia, aumenta o nosso risco de sofrer de doenças relacionadas à substância.
Começa devagar, em 0,5% para uma dose ao dia, e vai até 37% para aqueles que consomem cinco doses diárias.
Ou seja, os pequenos benefícios uma vez registrados pela ciência são superados pelo risco aumentado de outros problemas de saúde, incluindo o câncer.
Mas também não existe nível seguro para se viver, sair na rua e relacionar-se e ninguém está recomendando que desistamos de uma vez por todas, né?
A questão aqui é evitar excessos - de risco e de consumo. Silvana nos chama a atenção para um parâmetro interessante: pensar no beber compulsivo. O consumo frequente de grandes quantidades de álcool em curtos períodos de tempo pode ser considerado um indicativo problemático e é o que já chamamos lá em cima de binge drinking, causador de possíveis desastres agudos.
Segundo ela, gostar de meia tacinha de vinho no fim do dia e consumi-lo com regularidade não é necessariamente pior do que encher a cara só aos fins de semana - é preciso analisar caso a caso, sempre levando em conta qual o padrão de bebida de cada indivíduo, de que forma isso impacta sua vida e se existe comportamento compulsivo.
Como você e pessoas ao seu redor têm bebido? Como têm olhado e cuidado uns dos outros para manterem-se física e emocionalmente saudáveis?
Perceber
Alcoolismo é uma doença caracterizada pela dependência do álcool. Nada de novo sob o sol.
No nosso imaginário, é simples identificá-lo: o homem violento, raivoso, fora de si ou a mulher que está sempre trançando as pernas, incapaz de olhar pelos próprios filhos. Somos rodeados por imagens publicitárias bastante características de campanhas anti-drogas.
Mas eu propus uma conversa honesta e nada anacrônica, e a gente precisa admitir que nem sempre as coisas acontecem dessa forma. Nem sempre o alcoolismo é uma esquete escura em preto e vermelho que passa nos intervalos da novela.
O alcoolista consegue manter a vida em ordem até que não consegue mais. É um ótimo funcionário e produz bastante, até que não produz mais. Um amigo e parceiro carinhoso, até que não é mais. A doença pode se manifestar em quem menos imaginamos.
O Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool (CISA) disponibiliza um artigo interessante que nos ajuda a pensar dependência, segundo o qual existem, entre algumas variações semelhantes, dois tipos primordiais de alcoolismo.
O primeiro tipo é aquele de início após os vinte anos de idade, evolução lenta, menor frequência dos fatores de risco na infância e de psicopatologias associadas e também melhor prognóstico.
Esse pai, esposa, amigo, irmã, não vai irromper pela porta de casa quebrando tudo de um dia para o outro. Não vai subitamente parar de produzir e perder o emprego. Não vai envergonhar filhos pequenos na porta da escola. Pelo menos não por muitos anos.
Olhar para nós mesmos e pessoas queridas ao nosso redor com carinho pode ser essencial e mudar cenários para este tipo de alcoolismo. Temos aumentado a frequência ou quantidade em que bebemos nos últimos tempos? Estamos passando por situações de vulnerabilidade, tanto físicas quanto emocionais? Existem pressões pontuais sob as quais estamos vivendo agora? O nosso círculo social, como cuida uns dos outros em relação ao abuso do álcool? O que meus amigos vão pensar se eu não beber hoje?
Ser capaz de extrair significativo prazer de outras atividades na vida, estando sóbrio, é um indicativo saudável. Cultivar relações nas quais conversas honestas podem acontecer, relações de parceria e bons colos, é essencial.
O outro tipo classificado de alcoolismo é aquele de início antes dos vinte anos, com maior frequência de fatores de risco na infância - como agressividade e impulsividade - e alcoolismo familiar, maior frequência de associação com outras drogas e psicopatologias, progressão mais rápida e dependência mais grave. Alguns autores o classificam como predominantemente ou exclusivamente masculino. O Guilherme relaciona gênero e álcool numa reflexão incrível aqui e o Fred Mattos destrincha nossa mente e a bebida aqui.
Em qualquer dos tipos, o desenvolvimento da doença depende de fatores hereditários, genéticos e comportamentais variáveis. Identificá-la em seu início pode não ser muito fácil justamente porque os danos não aparecem de forma rápida ou imediata. De qualquer forma, o artigo aponta os seguintes indicativos de que pode haver um problema:
instabilidade no andar;
consumo de álcool pela manhã;
a frequência de doenças e machucados menores;
sintomas de abstinência (enjoos pela manhã, tremores, medo e apatia);
mudanças de casa e emprego sem motivo aparente;
beber escondido.
Como cuidar quando alguém próximo precisa?
Precisamos uns dos outros. Para produzir, para relaxar, compartilhar alegrias e dividir angústias. Não é à tôa que a maioria de nós precisa de uma rede de apoio formada por pessoas que gostamos e admiramos para ser feliz.
Procurar cultivar essa rede de modo que ela seja empática, firme e segura significa cuidar de quem está ao nosso lado e deixar ser olhado.
Já sugeri, ao longo do texto e alguns parágrafos acima, perguntas que possam servir de faísca para refletirmos a nossa relação não só com o álcool, mas também com outras drogas e comportamentos potencialmente nocivos.
Ser honesto, olhar para dentro e exercer o cuidar já é muita, muita coisa.
Mas pode ser que nos encontremos em situações que exijam ajuda específica, treinada e profissional. Se você acha que alguém próximo ou você mesmo precisa deste tipo de orientação, provavelmente não está exagerando.
O tratamento do alcoolista tem necessariamente mais de uma frente - é necessário apoio médico para lidar com as consequências fisiológicas e o processo de abstinência. Médicos da sua confiança, clínicos gerais e de família, que te acompanhem ao longo da vida podem ser procurados, bem como psiquiatras. Outros especialistas em alcoolismo também, incluindo outras áreas da saúde.
Acompanhamento terapêutico e psicológico também é essencial, uma vez que o abuso da substância não tem causas somente orgânicas, mas também comportamentais e emocionais. Por fim, a socialização tem papel fundamental no fortalecimento da identidade e autoestima do dependente, bem como apoio, carinho e firmeza das pessoas queridas.
No Brasil, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), você pode procurar tanto as Unidades Básicas de Saúde (UBS), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou os CAPS Álcool e Drogas (CAPS AD) para ajuda.
Alguns planos de saúde também oferecem programas especiais para acompanhamento de saúde geral e vícios. Vale dar uma ligada e consultar. Universidades com cursos na área da saúde também podem, eventualmente, oferecer esse serviço. Se você está perto de uma, passe para perguntar.
O grupo Alcoólicos Anônimos já é bastante conhecido e tem papel importante na socialização e busca de apoio entre pessoas que estão passando pela mesma questão. Por todo o país e até no exterior, diferentes grupos reúnem-se para criar uma rede de suporte. Você pode ler mais sobre e achar um grupo perto de você no site deles.
Por fim, resista à tendência de afastar-se, física ou emocionalmente, de quem está ao seu lado. Conte para alguém o que está sentindo e compartilhe seus planos e angústias. Não pare de construir sua rede de carinho e cuidado.
E nós, como temos bebido?
É com a experiência de quem soma mais de 2 milhões de atendimentos em pronto-socorro, 212 mil internações e 122 mil cirurgias por ano que fazemos um apelo sobre a sua saúde: fazer check-up periódico é a melhor chance de viver mais e melhor.
Acontece que os homens tendem a adiar a prevenção e perdem oportunidades de ouro de preservar sua qualidade de vida. Por isso, nesse Novembro Azul, nós do grupo Americas Serviços Médicos firmamos uma parceria com o Papo de Homem para levar, até vocês, os argumentos que faltam para tratar a saúde como prioridade. Nada de deixar para ler depois, certo?
Contribuiu com o conteúdo a nossa especialista Dra. Silvana Kelly Monção do Vale. Especialidade: Oncologia - CRM 114273.
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