Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

domingo, 18 de novembro de 2018

Festival do Rio: “As Viúvas” desconstrói heist movie para falar sobre libertação feminina

Trio feminino lidera trama sobre busca por independência

por Matheus Fiore
2.nov.2018

Steve McQueen é um cineasta habituado a construir protagonistas amargurados e acorrentados por seus problemas. Em “Shame”, de 2011, a incapacidade de Brandon (Michael Fassbender) de lidar com seus desejos impacta não apenas seus relacionamentos pessoais; ela afeta também todas as formas como o personagem percebe o mundo, que na obra é frio e sufocante tanto pelos cenários de vidro, fotografados com cores pálidas, quanto pelas escolhas de planos fechados e close-ups claustrofóbicos. Já em “12 Anos de Escravidão”, que conquistou o Oscar de Melhor Filme em 2013 e foi o ponto alto da carreira de McQueen, o escravo Solomon (Chiwetel Ejiofor) vive a mesma situação em um contexto mais explicito – obviamente, o da escravidão –, e McQueen utiliza a trama do personagem subjugado pelo sistema para fazer um comentário político e expor a ferida do racismo, uma das grandes manchas da história da humanidade.

De certa forma, o novo filme de McQueen, “As Viúvas”, mistura elementos tanto de “Shame” quanto de “12 Anos de Escravidão”. Ao mesmo tempo em que as viúvas do título devem lutar para romper a dependência emocional e financeira em relação a seus falecidos maridos, elas também precisam superar o sistema falocêntrico da sociedade em que estão inseridas. Saem de cena, portanto, o desejo e a escravidão dos longas de 2011 e 2013, e entram a luta pela independência e a quebra de um modelo de sociedade.

A trama acompanha o trio formado por Veronica (Viola Davis), Linda (Michelle Rodriguez) e Alice (Elizabeth Debicki), mulheres que, após a morte de seus companheiros (os ladrões interpretados por Liam Neeson, Jon Bernthal e Manuel Garcia-Rulfo), precisam aplicar um golpe para pagar uma dívida com o chefão do crime Jamal (Brian Tyree Henry, o Paper Boi de “Atlanta”).  O primeiro ponto que salta aos olhos em “As Viúvas” é a forma como os personagens masculinos são vistos pelo diretor. Em um primeiro momento, até criamos empatia pelos ladrões que morrem e deixam as protagonistas viúvas, Mas, aos poucos, as cenas se desenvolvem de forma a mostrar como a bondade apresentada, na verdade, é apenas uma falsa imagem criada pelas próprias companheiras dos criminosos. Fica claro que há uma transição que remove qualquer traço de bondade dos personagens de Neeson, Bernthal e Garcia-Rulfo, que aos poucos deixam de ser vítimas e passam a ser grilhões emocionais para Veronica, Linda e Alice.

Já com os outros personagens, como Jamal, seu braço direito Jatemme (Daniel Kaluuya, de “Corra!”) e Jack e Tom Mulligan (Colin Farrell e Robert Duvall), há uma verdadeira disputa para ver qual é mais detestável. Não por acaso, os quatro estão em posição de poder político e financeiro, e têm seu pedestal desafiado pelo golpe do trio feminino que protagoniza o longa. A disputa dos sexos de “As Viúvas”, portanto, se faz presente no conflito central da narrativa, que coloca as personagens femininas tentando subverter um sistema predominantemente masculino.

É interessante ainda que, no meio de um filme que levanta tantas questões de gênero de forma poderosa e sutil, McQueen ainda consiga imprimir características de um clássico filme de assalto, como o planejamento do golpe, sua divisão de tarefas e o sistema de recompensa. A forma como a obra faz isso, porém, é bem distante de um modelo convencional. “As Viúvas” não parte do filme de assalto para tornar-se um drama mais profundo, e nem faz o contrário. É como se, na verdade, o filme de assalto existisse como um elemento menor e paralelo à narrativa de libertação de Veronica e suas coadjuvantes, que só se entrelaçasse com a trama em momentos muito específicos.

Pelo fato de o golpe ser, no universo de “As Viúvas”, um elemento do mundo do crime masculino – e é brilhante o fato de o roteiro pontuar isso ao trazer as protagonistas dizendo que precisam “agir como homem” quando decidem seguir com o golpe –, ele é, coerentemente, tratado como um evento isolado. É como se Veronica, Linda e Alice estivessem cientes de que estão jogando “o jogo” do mundo dos homens, e o fazem apenas para conseguir sua própria independência – tanto financeira, já que o golpe renderia uma boa quantia em dinheiro para as mulheres, quanto emocional, já que seria o fechamento de um arco entre elas e seus falecidos companheiros.

As diferentes formas como mulheres e homens flutuam por esse mundo criado por McQueen impacta diretamente na forma como “As Viúvas” é filmado. Quando acompanhamos as cenas dos homens de poder, é comum não só uma violência exagerada e, de certa forma, desnecessária – torturas e espancamentos acontecem, muitas vezes, apenas pelo gosto pelo sádico de alguns personagens –, como também um estilo de filmagem que nos priva de muitas imagens. Mas, com as mulheres, sentimos que há sempre uma superexposição de seus sentimentos. Quando filma Jack Mulligan desabafando em seu carro, por exemplo, McQueen opta por nos dar o áudio da cena, mas não a imagem: acompanhamos o carro que leva Jack pela cidade por um ponto de vista externo, vendo apenas o motorista conduzindo o veículo. É como se nós, por acompanharmos a obra sob a perspectiva feminina, não tivéssemos acesso à intimidade dos homens. Já quando filma suas “heroínas”, McQueen opta por usar muitos espelhos que, além de mostrarem as personagens por outros ângulos – uma forma de mostrar como seus sentimentos estão expostos –, também servem pra expor o vazio deixado por seus companheiros – como a cama vaga de Veronica em certo ponto do filme.

Em “As Viúvas”, Steve McQueen reafirma seu apreço por um cinema mais reflexivo e denso, desconstruindo um gênero que é comumente associado ao frenético, à ação. “As Viúvas” retrata justamente o nosso mundo, destacando como o dinheiro e a ganância são a principal força motriz da sociedade. O roteiro, porém, não problematiza essa questão. Na trama, mulheres e homens sabem como o capitalismo funciona, e, enquanto os meninos apenas brigam por poder, as mulheres aceitam fazer parte do jogo apenas para encontrarem sua própria forma de sobreviver. São personagens que, mesmo amargurados e explorados, sabem que o modelo de mundo em que vivem está enraizado demais para ser subvertido. Às viúvas resta, então, jogar o jogo e conseguir sua independência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário