Conheça a Lei do Minuto Seguinte que desde 2013 garante direitos de vítimas de violência sexual sem a necessidade de provas ou registro policial prévio
Naquela segunda-feira, Carla* só conseguiu lavar o rosto e chamar um táxi. No caminho, contou por telefone a uma amiga o que acontecera na noite anterior. Desabou chorando. Consternado, o motorista perguntou se ela gostaria de ir à delegacia. Não quis. Ansiava chegar ao Hospital Pérola Byington, em São Paulo.
Por sua atuação nas ONGs Artemis e Mulher sem Violência, de defesa dos direitos das mulheres, estava ciente de que o boletim de ocorrência não seria exigido para obter atendimento médico. Desceu do carro e anunciou para o segurança: “Fui violentada”. O homem questionou se ela havia registrado o ocorrido e, solidário, não insistiu diante da negativa.
“Eu não tinha condições de encarar uma delegacia. Sentia pavor de ter contraído alguma infecção sexualmente transmissível (IST) e queria a profilaxia o mais rápido possível”, conta a advogada paulistana, reconhecida pela atendente que registrou sua ficha de entrada.
Naquele dia, Carla se viu no lugar de tantas outras mulheres que já acompanhara até o Pérola, centro de referência para assistência a vítimas de estupro. Era agora uma delas. E parte de uma estatística alarmante.
No Brasil, a cada minuto uma mulher é estuprada. Segundo o Atlas da Violência 2018, entre os anos de 2001 e 2016, o índice de casos de abuso sexual e estupro cresceu 90%. Os números podem ser maiores, já que, conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), somente cerca de 10% dos crimes são notificados.
A comunicação é obrigatória apenas quando envolve menores de idade – talvez por isso, nas estatísticas oficiais, crianças e adolescentes são maioria. “As mulheres adultas muitas vezes se calam com medo de julgamentos e ofensas que as deixariam ainda mais feridas”, afirma a promotora de justiça Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público. Ela ressalta, no entanto, que a conscientização sobre a importância de registrar esse tipo de ocorrência tem crescido. O que falta ainda é o conhecimento mais amplo dos direitos assegurados pelo Estado para qualquer pessoa submetida a atividade sexual não consentida.
A Lei do Minuto Seguinte
Carla nunca compareceu à delegacia para prestar queixa da violência que sofreu. Atualmente, o atendimento médico a mulheres como ela, que, devastadas, só pensam em preservar o que restou da integridade física, é possível graças à Lei do Minuto Seguinte, aprovada em 2013.
Proposta pela então deputada federal Iara Bernardi, ela é tema de uma campanha nacional a partir deste mês, encomendada pelo Ministério Público e capitaneada pelas publicitárias Gal Barradas e Laura Esteves.
“São muitas as dúvidas em relação aos direitos das vítimas desse tipo de crime e, consequentemente, há falhas no atendimento médico”, explica Pedro Antônio de Oliveira, procurador do Ministério Público Federal responsável pelo inquérito que apontou a necessidade de reforçar a comunicação sobre a Lei do Minuto Seguinte, inclusive entre profissionais de saúde.
Sem a necessidade de apresentar registro policial, qualquer pessoa abusada sexualmente tem direito a atendimento para diagnóstico, tratamento de lesões, realização de exames que detectem ISTs e gravidez.
A legislação assegura assistência emergencial gratuita 24 horas por dia em qualquer hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), público ou conveniado. Também obriga os planos médicos a cobrir esses procedimentos em instituições privadas – à exceção do aborto, mesmo nos casos em que a prática é legalizada.
Ainda são previstos acompanhamento psicológico, cirurgias plásticas reparadoras (quando necessário) e serviços de assistência social – um apoio integral e multidisciplinar, que leve em conta a fragilidade da vítima em todas as esferas.
Os dias pós-violência
As 72 horas após a violência são determinantes. É nesse intervalo de tempo que os remédios contra ISTs virais (como aids, HPV e hepatite B) e não virais (como gonorreia, clamídia e sífilis), tétano e a anticoncepção de emergência precisam ser administrados.
O tratamento se mantém fora do hospital por até 28 dias, com medicações via oral e retorno à unidade de saúde para reforço de alguns fármacos. É importante atentar também para os efeitos colaterais. Aproximadamente 70% das vítimas sofrem ainda com inchaço, muito vômito e intensas cefaleias.
Se a vítima engravida após um estupro, o aborto é permitido e pode ser realizado de forma legal em hospitais de referência. Nessa situação, a palavra da mulher também basta. Hospitais e médicos não podem negar o procedimento alegando falta de boletim ou provas físicas.
Por lei, o profissional que realiza a interrupção de uma gravidez resultante de estupro é isento de punição. “Infelizmente, as vítimas ainda encontram dificuldade para fazer o aborto legal. Em algumas instituições, até a pílula do dia seguinte é negada”, alerta o procurador Pedro.
A resistência, muitas vezes, vem do médico. Após passar pelo clínico, Carla foi conduzida ao andar onde seria medicada. Na sala de espera, encontrou crianças e adolescentes – todos vítimas de violência sexual. Tentou se concentrar em sua dor. Foi aí que reparou no formulário que tinha em mãos. “Meu caso havia sido registrado como abuso”, lembra, revoltada.
Confrontado por ela, o médico respondeu que, pelo fato de ter aberto sua casa – onde foi violentada por um rapaz que conhecera em um aplicativo de relacionamentos – para o agressor, o crime não se enquadrava como estupro. A advogada precisou brigar por um registro correto. Depois, por uma vacina contra hepatite B, que notou não estar em sua lista de medicações, apesar de ser prevista no protocolo legal de atendimento. “O farmacêutico do hospital dizia não ser necessário. Tive que acionar amigos médicos e insistir muito para conseguir algo que era meu direito”, conta ela, que até hoje pensa nos menores que aguardavam a profilaxia naquele dia e que, talvez, jamais tenham percebido a vacina faltante. “Meu direito à saúde só foi garantido porque eu tinha conhecimento sobre o processo.”
* Carla é uma advogada paulistana que recorreu ao serviço público após ser estuprada. Seu nome foi trocado para preservar sua identidade.
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