Regina Bandeira
16/11/2018
No ano passado, Catarina* se viu obrigada a faltar 12 dias no trabalho. As explicações eram várias, mas relacionadas ao mesmo motivo: as sucessivas agressões do ex-marido. Um dia era a agressão propriamente dita; no outro, o medo de sair de casa. Depois, um dia inteiro prestando novas queixas na delegacia ou fazendo exames de corpo de delito.
Em dois anos de separação, foram mais de 10 boletins de ocorrência (B.Os) contra o agressor, pai de seus dois filhos menores de idade. Estes também sofreram o impacto do inconformismo do pai em relação à separação e, sistematicamente, eram obrigados a faltar à escola por causa da confusão em casa. Enquanto a Justiça não decide o que fazer com o agressor, a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) da cidade onde vivem propôs uma medida radical: encaminhar mãe e filhos a uma das 155 Casas Abrigo em funcionamento no país.
Pioneiras no acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, as Casas Abrigo existem desde 1986, quando a primeira foi inaugurada em São Paulo pela Secretaria de Segurança Pública (cujo titular era o atual presidente da República Michel Temer), e, desde então, mulheres e crianças vítimas de violência doméstica já viveram nesses espaços de acolhimento sigilosos, previstos na Lei 11.340/2006 (Maria da Penha).
A história de Catarina é semelhante à de muitas brasileiras que vivem relacionamentos marcados pelas violências física, verbal e psicológica.
Catarina e as crianças vivem sem contato com a família, com amigos ou qualquer rede social. Catarina deixou de trabalhar e os filhos deixaram a escola. No abrigo, mãe e filhos dormem no mesmo quarto e seguem rígidas regras de segurança. Não vão ao cinema, não passeiam pela vizinhança, só saem do abrigo acompanhados. Quando precisam falar ao telefone, a conversa é monitorada. Nenhuma informação que possa identificar o local do abrigo pode vazar. As crianças perguntam diariamente à mãe quando sairão de lá.
“Não posso me queixar do atendimento aqui. As pessoas são gentis, nos acolheram muito bem. Mas também não posso deixar de comparar minha situação com a dele (o ex-marido). Fui condenada com a falta de liberdade e não cometi crime algum. Estamos privados do direito de ir e vir enquanto ele segue livre, ameaçando meus parentes, amigos, ex-colegas de trabalho”, desabafa a profissional de Marketing, há 8 meses no abrigo.
As Casas Abrigo têm como objetivo prestar atendimento psicológico e jurídico e encaminhar para programas de geração de renda, e até fornecer acompanhamento pedagógico às crianças, uma vez que não poderão frequentar uma escola comum enquanto estiverem ali. Mas é uma fase traumática, afirma a psicóloga Branca Paperetti, que coordenou,por 25 anos, o Centro de Referência à Mulher Casa Eliane de Grammont, em São Paulo. “É um momento em que a mulher sai de circulação, rompe com tudo, laços, vínculos, para não correr o risco de ser morta”, diz.
Mesmo previsto na Lei Maria da Penha, o acolhimento de mulheres ameaçadas de morte em Casas Abrigo, entre os 5.570 municípios brasileiros, só é possível em 155 casas de 142 cidades (2,5 % do total), segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2014. A maioria dessas Casas se concentrava na região Sudeste (45) e a minoria na Região Norte (9). Não há dados que permitam um retrato da situação jurídica das mulheres em abrigos. Após a Lei Maria da Penha, imaginou-se que a demanda por abrigamento diminuiria com a possibilidade de oferecimento de medidas de urgência que limitariam os agressores. No entanto, não é o que os operadores da Justiça percebem na prática.
No Distrito Federal, o juiz coordenador do Centro Judiciário da Mulher do DF, Ben-Hur Viza, avalia que houve aumento na procura pelos serviços de atendimento no sistema de Justiça. “As mulheres estão denunciando mais e isso aumentou a necessidade de protegermos maior número de vítimas. No entanto, minha percepção é de que o número de Casas existentes é insuficiente”, diz o juiz, que é titular do Juizado de Violência Doméstica do Núcleo Bandeirante (DF).
Para evitar que o isolamento da mulher na Casa abrigo seja prolongado, Ben-Hur conta que, assim que chega em suas mãos um processo de violência de uma mulher abrigada, decreta a imediata prisão do ofensor. “Decreto prisão do agressor simultaneamente ao encaminhamento da mulher à Casa. Reconheço que esse tempo na Casa é uma medida extrema, devido ao forçoso isolamento exigido. Mas, não tenho dúvidas: ele é fundamental para salvaguardar a integridade de mulheres ameaçadas e, de fato, salva muitas vidas”, diz o magistrado.
“A Casa foi minha salvação, mas queria que minha vida não estivesse parada. Queria meus filhos brincando com os primos, livres e seguros. Me sinto meio abandonada aqui. Escondida de todos, da vida”, chora a vítima, que ainda aguarda ser chamada para a primeira audiência.
UTI
Em geral, o tempo de acolhimento nas Casas abrigo é de até 90 dias. Mas o prazo pode ser prorrogado. Há mulheres e famílias que ficam apenas um dia; outras vivem muitos meses no abrigo, como acontece com Catarina. A avaliação da gravidade dos casos de violência contra as mulheres deve ser realizada por um serviço especializado no atendimento de mulheres em situação de violência visto que o limite entre a ameaça e o risco iminente de morte pode ser bastante tênue.
A supervisora da Casa do Caminho para Mulheres em Situação de Violência Doméstica no Ceará, Jaqueline Pinheiro, compara esse processo ao atendimento emergencial de saúde. “Você não entra em um hospital e vai direto à UTI. Primeiro deve passar pela triagem. Aqui também funciona assim, mas quem faz a triagem é a rede de atendimento”, diz, referindo-se às DEAMs, delegacias comuns, Centro de Referência da Mulher, Centros de Referência em Assistência Social (CREAS) e Casas da Mulher Brasileira (CMB). Mas, ressalva, faltam programas de renda, moradia e emprego voltados a esse público. “Sem apoio, fica mais difícil ela sair da condição de vítima”, afirma Jaqueline Pinheiro.
Atuação do CNJ
O combate à impunidade nos casos de violação de direitos humanos e a busca pela melhoria e agilidade no atendimento de mulheres vítimas de violência têm sido um dos focos do CNJ. Desde 2007, o Conselho realiza uma vez por ano a Jornada Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que auxiliou na implantação das varas especializadas nos estados brasileiros. O órgão promoveu a criação do Fórum Permanente de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), bem como incentivou a uniformização de procedimentos das varas especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher. Em 2017, o CNJ instituiu a Política Nacional de Combate à Violência contra Mulheres por meio da Portaria 15/2017.
Lei Maria da Penha
Marco legal em relação a um crime considerado até 2006 de menor potencial ofensivo e punido com pagamento pecuniário, a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) mudou a ideia de que violência doméstica deva ser tratada no âmbito privado. A norma estabelece que todo caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime e deve ser apurado por meio de inquérito policial e remetido ao Ministério Público.
A lei tipifica as situações de violência doméstica, proíbe a aplicação de penas pecuniárias aos agressores, amplia a pena de um para até três anos de prisão e determina o encaminhamento das mulheres em situação de violência, assim como de seus dependentes, a programas e serviços de proteção e de assistência social. Esses crimes são julgados nos Juizados Especializados de Violência Doméstica contra a Mulher, criados a partir dessa legislação, ou nas Varas Criminais em casos de cidades em que ainda não existe essa estrutura
*Nome verdadeiro preservado por motivo de segurança
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