Por falta de conhecimento ou empecilhos do sistema, vítimas de violência sexual deixaram de ser assistidas conforme prevê a lei. MPF lança campanha "Sua palavra é lei” para receber denúncias
El País
BEÁ LIMA
GIL ALESSI
São Paulo
Em 30 de setembro Gal*, 32 anos, acordou confusa, como se estivesse um pouco dopada. Foi até o banheiro de sua casa e notou os azulejos, a pia, a cuba e o lixo sujos de sangue. Estava ferida e percebeu que a noite passada, que havia começado em uma festa e terminado com ela dividindo um Uber com dois desconhecidos, não tinha terminado bem. Ela se lembrava vagamente do que passou. O suficiente para ter certeza de que havia sido estuprada. Não demorou muito e descobriu que estava grávida. Tinha em seu útero a consequência de um ato sexual que sequer consentiu.
Desesperada, procurou na internet e lembrou que o aborto legal é assegurado a vítimas de estupros. "Tudo que eu li me mostrava que eu teria que me expor muito. A primeira coisa que eu fiz foi ligar no centro de proteção à mulher que tem na minha cidade", conta ela, que é de Ponta Grossa (Paraná). A atendente não sabia orientá-la sobre como funcionava o procedimento e, depois de desligar o telefone, não atendeu mais qualquer ligação. Uma amiga, então, a orientou a procurar a Delegacia da Mulher de sua cidade e registrar um boletim de ocorrência. Acreditava que assim conseguiria dar prosseguimento à interrupção da gravidez, apesar de o registro ser desnecessário desde agosto de 2013 quando a Lei 12.845, também conhecida como Lei do Minuto Seguinte, foi aprovada. “Você vai querer seguir com o inquérito ou você vai querer só um aborto mesmo?”, escutou da delegada. A noite que Gal queria esquecer, a delegada queria fazê-la lembrar. Escutou até que poderia fazer hipnose forense para se lembrar melhor dos detalhes de seu estupro e, com isso, fazer um retrato falado de seus agressores.
Desesperada, procurou na internet e lembrou que o aborto legal é assegurado a vítimas de estupros. "Tudo que eu li me mostrava que eu teria que me expor muito. A primeira coisa que eu fiz foi ligar no centro de proteção à mulher que tem na minha cidade", conta ela, que é de Ponta Grossa (Paraná). A atendente não sabia orientá-la sobre como funcionava o procedimento e, depois de desligar o telefone, não atendeu mais qualquer ligação. Uma amiga, então, a orientou a procurar a Delegacia da Mulher de sua cidade e registrar um boletim de ocorrência. Acreditava que assim conseguiria dar prosseguimento à interrupção da gravidez, apesar de o registro ser desnecessário desde agosto de 2013 quando a Lei 12.845, também conhecida como Lei do Minuto Seguinte, foi aprovada. “Você vai querer seguir com o inquérito ou você vai querer só um aborto mesmo?”, escutou da delegada. A noite que Gal queria esquecer, a delegada queria fazê-la lembrar. Escutou até que poderia fazer hipnose forense para se lembrar melhor dos detalhes de seu estupro e, com isso, fazer um retrato falado de seus agressores.
A Lei do Minuto Seguinte garante às vítimas de violência sexual atendimento emergencial e humanizado. Ela afirma que qualquer unidade do Sistema Único de Saúde deve oferecer sem a necessidade da apresentação de um boletim de ocorrência tratamento profilático, com os medicamentos que ajudam a evitar doenças sexualmente transmissíveis ou uma gravidez indesejada. E, no limite, o aborto legal para quem necessitar e quiser. Na teoria, um protocolo perfeito. Mas, na prática, a realidade é outra. Muitas vítimas de violência sexual deixaram de receber o atendimento adequado ou porque não sabem da existência deste direito ou porque, como Gal, encontram uma série de empecilhos na rede que deveria acolhê-las.
Entre o momento em que descobriu estar grávida e conseguir, finalmente, ser bem atendida, Gal esperou oito semanas. E precisou percorrer 516 quilômetros —a distância entre sua cidade e o Hospital Pérola Byington, em São Paulo, um dos principais centros do país voltados para a saúde da mulher—. Só ali conseguiu realizar o procedimento conforme manda a lei. "Quando eu vi a doutora Alessandra entrar na sala eu senti que aquilo era real, porque foi tanto sofrimento pra chegar até ali, eu tinha visto tanta coisa na internet, mas quando ela entrou na sala e se apresentou eu tive a sensação de que parte daquele sofrimento ia ficar pra trás", conta emocionada.
Um estupro por dia
No Brasil, a cada minuto uma pessoa é estuprada. São registrados uma média de 164 casos por dia. Um número alto, mas que segundo especialistas é menor do que o real. Estima-se que 90% das vítimas nunca registre queixa, o que elevaria o número total para 600.000 estupros por ano. E a subnotificação não existe apenas na esfera criminal, mas na da saúde também. "No ano de 2016 foram 23.000 vítimas atendidas no SUS, ao passo que 49.500 procuraram a Polícia (dados da publicação de pesquisadores do IPEA “Atlas da Violência 2018”). Em 2017 foram 60.000 vítimas que buscaram a Polícia, mas o Ministério da Saúde ainda não totalizou os dados de atendimentos no SUS em 2017. E aqui estamos falando de estupros. O IPEA, no mesmo estudo, estima que 90% das vítimas não procuram o Poder Público", relata o procurador Pedro Antonio de Oliveira Machado, responsável por um inquérito que investigou a aplicação da lei do minuto seguinte. Após a investigação, o Ministério Público Federal criou um canal para que as vítimas possam denunciar os serviços que não seguirem os protocolos de atendimento previstos em lei.
A procuradoria também lançou uma campanha publicitária multimídia em parceria com a agência Y&R, que será veiculada na TV e exposta em mobiliários urbanos do Estado. “Nós identificamos uma série de problemas [no ciclo de atendimento às vítimas]”, afirma o procurador Machado. “Um dos maiores era a falta de informação, especialmente para as vítimas, que não sabem a quem recorrer. Mas mesmo no âmbito dos profissionais do Sistema Único de Saúde também havia falta de informação”, diz.
A campanha também enfatiza que não é necessário que a vítima da violência, seja homem ou mulher, apresente um boletim de ocorrência relativo ao estupro para que possa receber o atendimento na rede pública ou privada de saúde. Por isso, as peças publicitárias têm como mote “Sua palavra é lei”. “Nossa legislação sobre o tema é muito boa. A dificuldade é fazer com que seja cumprida”, afirma Machado.
Em dezembro de 2013, Nice* e Clarissa*, vó e tia-avó de Camila*, respectivamente, também passaram pelo périplo da busca por atendimento adequado após descobrirem que a menina de apenas 6 anos estava sendo abusada pelo padrasto. A lei do minuto seguinte era recente, mas no litoral de São Paulo, onde a menina vivia, ninguém soube ajudá-las. "Nem a conselheira tutelar quis falar com a Camila", relata a tia, que não recebeu nenhum encaminhamento médico para vítima ou laudo. Elas também recorreram ao Pérola Byington, em São Paulo, para conseguir atendimento. "Descobriram até mais coisa que estava acontecendo com ela e que não sabíamos porque o padrasto a ameaçava e a mãe falava que era mentira".
Receber as primeiras doses das vacinas profiláticas e do coquetel anti HIV é fundamental nas primeiras 72 horas após a violência. "A medicação profilática anti-HIV tem 100% de eficácia", afirma André Malavasi, diretor de ginecologia do Hospital Pérola Byington. "O protocolo é simples e eficiente, pode ser aplicado até mesmo em Unidades Básicas de Saúde", diz Sylmara Berger Del Zotto, ginecologista e assistente da Secretaria da Saúde do Estado.
Ameaça aos direitos
Apesar dos números alarmantes e do consenso de médicos e especialistas quanto à necessidade do tratamento profilático para as vítimas – até para evitar o trauma de um futuro aborto legal como decorrência do estupro—, o sistema de atendimento pode estar na mira das bancadas conservadoras da Câmara. Desde 2013, ano em que a lei 12.845 foi aprovada, vários deputados se movimentaram para tentar derrubá-la, sob a justificativa de que a oferta de pílula do dia seguintepara as mulheres violentadas seria uma espécie de legalização do aborto. Entre os parlamentares responsáveis por tentar revogar a lei, está o presidente eleito Jair Bolsonaro.
Em 2015, o projeto do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, levou uma massa de mulheres às ruas para protestar contra a medida, com o lema "Pílula fica, Cunha sai". Já o capitão da reserva foi coautor do projeto de lei 6055, que pedia a anulação da lei de proteção à mulher por “preparar o cenário político e jurídico para a completa legalização do aborto no Brasil”. Posteriormente a matéria foi incluída em outro projeto de legislação com o mesmo objetivo, de autoria de Cunha (PL 6033). O texto de Cunha, por sua vez, sofreu alterações e tramitou vagarosamente na Câmara. A última movimentação se deu em maio deste ano, quando foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família uma versão suavizada da proposta cunhista.
A preocupação agora é de que a nova legislatura da Câmara, com forte influência das bancadas evangélicas e da bala, consiga avançar em algum dispositivo para que haja um retrocesso nos cuidados com vítimas de violência sexual. Até o momento o assunto ficou adormecido durante a campanha de Bolsonaro – que priorizou temas de segurança pública nas eleições. O procurador Machado se mostra otimista em frente a um possível ataque aos direitos das vítimas de violência sexual: “A lei decorre do texto constitucional, o atendimento prioritário a vulneráveis, e o presidente eleito disse que seu norte será a Constituição”. No entanto, ele afirma que o MPF monitora a tramitação dos projetos de lei que podem impactar a questão.
*Os nomes das vítimas foram alterados para preservar suas identidades.
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