Eva Alterman Blay é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
29 de outubro de 2018
O feminismo no Brasil vem pelo menos desde o século XIX. Direitos mínimos como educação e cidadania não foram dados às brasileiras, foram conquistados pela ação de mulheres cujos nomes ficaram apagados na nossa história. Essas mulheres ainda não encontraram o devido destaque. Foram elas que construíram degraus no espaço que ainda estamos conquistando.
Essa trajetória foi marcada por escritoras e educadoras como Nísia Floresta. Pioneira em seu tempo, ela viajou pelo mundo, publicou na Europa, conviveu com pensadores como Augusto Comte e construiu escolas para crianças, especialmente para meninas brasileiras, onde substituiu as prendas domésticas pelo ensino de português, francês e italiano, além das ciências naturais, sociais e matemática. É de sua autoria o livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens, primeira publicação a tratar dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho, e no qual Nísia reivindica que as mulheres sejam consideradas inteligentes e merecedoras de respeito pela sociedade[i]. O livro possivelmente foi uma tradução livre da obra Vindications of the Rights of Woman de 1792, escrito pela feminista inglesa Mary Wollstonecraft.
Desde o início do século XX, é fundamental apontar a atuação da bióloga Bertha Lutz, cujo ativismo político pavimentou o caminho para o direito ao voto feminino. Foi a segunda brasileira a fazer parte do serviço público no Brasil ao começar seus trabalhos no Museu Nacional, em 1919. Estava entre as fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), em 1922, e teve participação no Congresso Nacional, quando em 1936 assumiu o mandato como suplente de Cândido Pessoa. Nessa posição, defendeu mudanças na legislação trabalhista em favor do direito feminino ao trabalho, contra o trabalho infantil, direito à licença-maternidade e à equiparação de salários entre homens e mulheres[ii]. Lutas que, 82 anos depois, ainda enfrentamos.
Apesar dos caminhos traçados por mulheres extraordinárias como Nísia e Bertha, o feminismo nas décadas de 60/70 enfrentou uma das mais difíceis armas: o ridículo. Éramos todas ridicularizadas. Ir a público explicar o que era o feminismo significava estar preparada para piadas, gozações, desconsideração! O termo feminismo se tornou pejorativo. Até hoje algumas feministas evitam esta denominação temendo a pecha de mulher “mal amada”, feia, adjetivos usados como forma de nos agredir e menosprezar.
Para entender a obscuridade em que vivíamos nas décadas de 1960 e 1970 é preciso trazer à luz algumas profundas crises. Naquela época, na televisão, um apresentador achincalhava uma mulher, a atriz Leila Diniz. Ela ousara ir à praia no Rio de Janeiro usando um biquíni. O problema estava além do biquíni. O que causava enorme revolta no apresentador era a exposição da barriga de Leila grávida! Criou-se um verdadeiro escândalo que repercutiu na televisão, no rádio, nas revistas, clamando contra a atitude “desavergonhada” de Leila. Entenda-se: a mulher grávida, se fosse à praia, tinha de vestir uma espécie de bata que cobrisse a barriga. Essa tinha de ficar escondida. Por que era importante esconder a gravidez? Seria a barriga a revelação de que a mulher tivera relações sexuais? A maternidade, tão endeusada depois que a criança nasce, tinha de apagar a sexualidade feminina? Era como se todas as mulheres gerassem filhos mantendo-se virgens. Leila subvertia os padrões morais patriarcais.
A construção da imagem da mulher como dona de casa perfeita, mãe e esposa foi o tema discutido no livro A Mística Feminina, de Betty Friedan. Em 1965, recebi a versão francesa do livro (nossa influência acadêmica era a francesa, daí ter recebido a versão do livro em francês La Femme Mystifiée). Betty, uma jornalista de formação universitária, sensível a um mal-estar que afligia as mulheres americanas, fizera uma pesquisa extensa, entrevistando-as. No livro, publicou os resultados, revelando a insatisfação das mulheres americanas brancas, de classe média, que após frequentarem o ensino superior se casavam e tornavam-se donas de casa. Em geral, mudavam-se para a periferia das grandes cidades, cuidavam da casa e dos filhos enquanto o marido saía para trabalhar fora. Depois de algum tempo, essas jovens mulheres estavam tristes, deprimidas, entediadas pela rotina. De nada valia a formação que tiveram. Ao mesmo tempo, elas sentiam enorme culpa, pois não conseguiam explicar por que ainda se sentiam infelizes mesmo depois de casadas e com filhos, destino traçado para elas e “sonho” de quase todas as mulheres de sua época.
Apesar dos caminhos traçados por mulheres extraordinárias como Nísia e Bertha, o feminismo nas décadas de 60/70 enfrentou uma das mais difíceis armas: o ridículo. Éramos todas ridicularizadas. Ir a público explicar o que era o feminismo significava estar preparada para piadas, gozações, desconsideração!
Betty mostra como essa geração recorria aos psicólogos, aos remédios, sem resolver o problema. A difusão desse diagnóstico provocou grande impacto e disparou uma reação que culminou com um largo movimento feminista. Mulheres brancas e de classe média, de modo geral, se uniram em torno de quatro pontos: pleitear “oportunidades iguais de acesso ao trabalho e à instrução, paridade de salários para tarefas iguais, legalização do aborto, abertura de creches em regime de tempo integral em todo o país”. Esse conjunto de reivindicações passou a ser conhecido como Equal Rights Amendement [iii].
A Mística Feminina foi para mim um dos mais influentes livros pela visão sociológica que trazia e pela desconstrução dos padrões tradicionais pelos quais a sociedade procurava conformar as mulheres. Rose Marie Muraro, editora da Vozes, convidou Betty Friedan para vir lançar a versão brasileira de A Mística Feminina. A escritora foi recebida como uma personagem ridícula, horrorosa, que vinha trazer ideias americanas para o Brasil para influenciar as brasileiras. Imaginava-se que o feminismo fosse um modismo norte-americano que as brasileiras iriam copiar. Qualificada com menções que a descreviam como uma mal-amada, horrorosa, o Pasquim a recebeu com todos os epítetos já descritos. Mas ela, como uma escritora culta, se revelou muito segura de suas ideias sobre a realidade norte-americana e logo mostrou que nada poderia falar sobre as brasileiras cuja realidade confessou desconhecer. Assim, desarmou os entrevistadores, que reconheceram estar diante de uma intelectual e militante pelos direitos da igualdade entre homens e mulheres. Ao final, a reportagem apresentou outra visão da escritora e do feminismo.
Cada uma à sua maneira, Leila Diniz e Betty Friedan abalaram pontos nevrálgicos da condição feminina, desestruturando um falso moralismo. Libertar o corpo, dar à mulher o exercício de sua sexualidade, foi um passo para revelar o que ocorria e ocorre dentro do lar. A dupla moral, uma aplicada ao homem e outra à mulher, durante séculos foi a garantia da desigualdade entre os gêneros.
O movimento feminista veio mostrar a vertente política da moral e afirmar pela primeira vez que o pessoal é político. Hoje, quando nos deparamos com figuras políticas que em seus discursos querem voltar ao século XIX e reger a sexualidade por padrões patriarcais e de uma determinada vertente religiosa, constatamos quanto ainda falta para alcançarmos a plenitude da cidadania das mulheres e dos homens.
[i] DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010 (Coleção Educadores).
[ii] ARQUIVO NACIONAL. Mirian Lopes Cardia. Publicado em 19 de Fevereiro de 2018. Disponível em:
[iii] IN MEMORIAM. “Betty Friedan: morre a feminista que estremeceu a América”. Ana Rita Fonteles Duarte. Rev. Estud. Fem., vol. 14, no. 1. Florianópolis Jan./Apr. 2006.
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