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terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Marcas que não se apagam, pois que matam

Especialistas alertam para o recrudescimento da violência contra meninas e mulheres no país e afirmam que encerrar o ciclo de agressões implica enfrentar o machismo de uma sociedade patriarcal

Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 08/01/2019

Casos emblemáticos como o da advogada Tatiane Spitzner, de 29 anos, que antes de ser jogada do prédio em que morava, em Guarapuava (PR), no ano passado, foi agredida por mais de 20 minutos pelo marido Luís Felipe Manvalier, de 32, sem que ninguém denunciasse, ou da cabeleireira Tatiane Rodrigues da Silva, de 30 anos, morta a facadas em Governador Valadares (MG) pelo ex-namorado, Hamilton  Ezequiel da Silva, de 33, que já tinha ficado 60 dias preso por agredi-la, retratam a última etapa de um ciclo de múltiplas  violências que atinge estrutural e sistematicamente as mulheres brasileiras.

Apesar do cerco da legislação, especialmente da Lei Maria da Penha (11.340/2006) – que criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, retirando o problema da esfera privada e a tratando como uma questão de Estado – e da Lei do Feminicídio (13.104/2015) – que incluiu o assassinato de mulheres como uma modalidade de homicídio, entrando no rol dos crimes hediondos –, os números da violência contra mulheres e meninas crescem assustadoramente: a cada dez assassinatos de mulheres pela sua condição de gênero cometidos na América Latina e Caribe em 2017, quatro ocorreram no Brasil. Os dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), atualizados anualmente, revelam que o país concentrou em um ano 40% dos casos de assassinatos de mulheres ocorridos nos 23 países da região – com 1.133 mulheres assassinadas apenas por serem mulheres.

Desigualdades de gênero, classe e raça
Na mesma direção, o Mapa da Violência 2018, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), identificou, apenas em 2016, um total de 4.645 mulheres assassinadas no país. Esse número indica uma taxa de 4,5 homicídios para cada cem mil brasileiras e um aumento de 6,4% no período de dez anos desse estudo. “A violência contra a mulher, face mais brutal e explícita do patriarcado, é entendida como toda e qualquer ação que fere a dignidade e a integridade física ou psicológica da mulher”, caracteriza a feminista e professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Mirla Cisne.

A violência determinada pelas relações desiguais entre homens e mulheres, no entanto, não é homogênea: está permeada pelas relações de classe e raça. A edição de 2018 do Mapa da Violência revela que a taxa é maior entre as mulheres negras (5,3) do que entre as não-negras (3,1), evidenciando uma diferença de 71%. Em dez anos da série, o estudo verifica que enquanto a taxa de homicídios para cada cem mil mulheres negras aumentou 15,4%, para as brancas foi registrada queda de 8%. O levantamento mostra que, entre 2006 e 2016, a taxa de assassinatos de mulheres negras em 20 estados brasileiros cresceu bastante, sendo que em 12 deles o aumento foi maior que 50%. “Todas as mulheres, independentemente da classe e da etnia, em uma sociedade patriarcal estão sujeitas a sofrer violência, mas não sofrem indiferenciadamente. A classe e a etnia não apenas imprimem novas determinações de violência, mas, também, tornam as mulheres mais propícias a ela”, acentua a professora da UERN. 

Expressões da violação física
Entre os diversos tipos de violação à integridade e à dignidade humana das mulheres, Mirla salienta as violências física, sexual, psicológica, patrimonial, social e obstétrica. “Vamos caracterizar como violência contra a mulher tudo aquilo que ofende, agride, desvaloriza, explora e oprime as mulheres”, explica. A violência física – da qual pelo menos uma menina ou mulher é vítima a cada dois segundos no Brasil, conforme adverte o site Relógios da Violência, do Instituto Maria da Penha – pode ser entendida como todo ato que afeta diretamente o corpo da mulher. “São agressões como empurrões, beliscões, bofetadas, pontapés, arremesso de objetos, queimaduras e até feridas por arma branca ou de fogo, deixando marcas, como hematomas, arranhões, feridas, cortes e cicatrizes”, exemplifica a professora.

A realidade nua e crua da agressão física – que em geral vem acompanhada da violência verbal, como xingamentos e humilhações – está retratada em vários estudos. O relatório ‘Visível ou invisível: a vitimização de mulheres no Brasil’, por exemplo, produzido em 2017 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), denuncia que 29% das 853 mulheres que aceitaram responder à pesquisa – de uma amostra de 1.051 entrevistadas em 130 municípios de pequeno, médio e grande porte – tinham sofrido ao menos algum tipo de violência física ou verbal nos últimos 12 meses. Desse montante, pelo menos 22% relataram ter sofrido insulto, humilhação ou xingamento, 10% informaram terem sido ameaçadas de apanhar ou ser chutada e empurradas e 9% das mulheres relataram ter sofrido com batidas, empurrões ou chutes, além das que disseram ter sofrido perseguições (9%). A vitimização desses casos sobressai entre as mais jovens, principalmente na faixa de 16 a 24 anos (45%), assim como é maior entre as mulheres negras (31%) em relação às brancas (25%). A pesquisa chama atenção ainda para o perfil do agressor, verificando que a maioria dos casos de agressões físicas a mulheres pela sua condição de gênero é cometida por pessoas conhecidas da vítima (61%), entre elas 19% são cônjuges, companheiros ou namorados e 16%, ex-cônjuges, ex-companheiros ou ex-namorados, seguidos por familiares e pessoas próximas, como amigos e vizinhos. Nesses casos, as agressões ocorrem mais na rua (42%), seguido da casa (35%), do bar/balada (10%) e da escola/faculdade (6%). Conforme avança a idade, no entanto, a proporção de mulheres agredidas no ambiente doméstico é maior, atingindo especialmente 63% das pessoas idosas.

O Instituto DataSenado, que a cada dois anos atualiza os números das violações dos corpos das mulheres, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, também revela que 67% das 1.116 brasileiras ouvidas entre março e abril de 2017 já sofreram alguma forma de violência física. A pesquisa constatou ainda uma relação entre a raça e o tipo de violência predominante. Entre as mulheres que declararam ter sofrido algum tipo de violência física, enquanto o percentual de brasileiras brancas foi de 57%, o de negras (pretas e pardas) foi de 74%.

Os agressores mais frequentes identificados por essa pesquisa são os que têm ou tiveram relações afetivas com a vítima (74%). Ou seja, o autor da agressão é o atual marido, companheiro e namorado (41% dos casos) ou ex-marido, ex-companheiro e ex-namorado (33%). A pesquisa do DataSenado, além de constatar um aumento significativo do percentual de mulheres vítimas de algum tipo de violência provocada por um homem – passando de 18%, em 2015, para 29%, em 2017 –, revela que depois da violência física, segue em maior número a violência psicológica, com 47% das menções, e as violências moral e sexual, com 36% e 15%, respectivamente. “As diversas formas de violência contra as mulheres envolvem diferentes práticas e experiências de controle sobre os corpos das mulheres e das meninas, independente de quem a comete”, descreve a assistente social e professora da Universidade Federal do Amazonas, integrante do Observatório da Violência de Gênero do Amazonas, Milena Barroso.

Marcas por toda a vida
Segundo Relógios da Violência, a cada 1,4 segundo uma mulher é vítima de assédio e a cada nove minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil. A violência sexual é identificada tanto no assédio sexual quanto nas situações em que a mulher é forçada a fazer sexo contra a sua vontade, seja por um estranho ou por seu cônjuge (nesse caso, denominado estupro conjugal). “Aqui, a coisificação da mulher como um objeto voltado para a satisfação alheia, em detrimento de si própria e de seus desejos, é explícita. Pesa nessa forma de violência a apropriação patriarcal mais latente sobre o corpo da mulher”, lastima Mirla.
A professora observa que, quando praticada pelo marido, esse tipo de violência infelizmente não é devidamente caracterizado. “A gente costuma sempre alertar que o sexo precisa ser consensual. Você não pode transar por desejo alheio ou para a satisfação do desejo alheio, em detrimento do seu corpo, da sua vontade. O estupro conjugal é também uma violência sexual”, reitera.

Face à magnitude do problema, a pesquisa ‘Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo’, publicada em 2013 na revista Caderno de Saúde Pública, atenta para os sérios efeitos que esse crime provoca nas esferas física e mental da mulher. De acordo com o estudo, as consequências físicas imediatas são a gravidez, infecções do aparelho reprodutivo e doenças sexualmente transmissíveis. Já no longo prazo, as mulheres podem desenvolver distúrbios na esfera da sexualidade, apresentando ainda maior vulnerabilidade para sintomas psiquiátricos, principalmente depressão, pânico, tentativa de suicídio e abuso ou dependência de substâncias psicoativas.

A médica psiquiatra Claudia Facuri, que integrou a equipe de atendimento à violência sexual do Hospital da Mulher Dr. José Aristodemo Pinotti da Universidade de Campinas  (Unicamp), confirma que a situação da agressão sexual é danosa tanto do ponto de vista físico quanto psicológico. “A vítima pode muitas vezes não se recuperar completamente do trauma”, sublinha. Ela elenca alguns problemas decorrentes deste crime: “Mulheres vítimas de abuso sexual reclamam de aumento de dor pélvica crônica, apresentam dificuldade sexual posterior, maior risco de obesidade e hipertensão, dificuldade de manter o autocuidado ao longo do tempo e problemas de depressão”.

A grandeza da violência sexual está retratada em números: segundo o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, anunciado em 2018 pelo FBSP, esse tipo de violação contra meninas e mulheres cresceu 8,4% de 2016 a 2017, passando de 54.968 para 60.018 casos registrados. Na mesma direção, a edição de 2018 do Mapa da Violência – com base nos dados da Segurança Pública, que identificou 49.497 casos de estupro em 2016, e nos registros do Sistema Único de Saúde (SUS), que contabilizou 22.918 notificações desse crime no mesmo ano – informa que 51% dos casos de estupros em 2016 vitimaram crianças com menos de 13 anos de idade.

Esse levantamento aponta que, em 30% dos casos, o agressor era amigo ou conhecido da criança e, em outros 30%, foi um familiar próximo, como pai, irmão ou padrasto.  No caso de vítimas adultas, quase 1/5 dos estupros foi cometido por cônjuges, namorados ou ex, sendo que em 53,52% dos crimes registrados o autor era desconhecido. Já nos casos de vítimas adolescentes, amigos, familiares e namorados, cônjuges ou ex foram autores do crime em 58,39%. Em geral, mostra o Mapa da Violência 2018, quando a vítima conhece o agressor (quase 55% dos casos), ela já havia sido vítima antes.

Um boletim epidemiológico do Ministério da Saúde divulgado em junho de 2018 chamou atenção para os milhares de casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes cometidos na casa da vítima. Segundo o levantamento, entre 2011 e 2017, foram notificados 184.524 casos de abuso sexual, dos quais 31,5% foram contra crianças, sendo 70% deles cometidos no domicílio, e 45% contra adolescentes, sendo 58,2% consumados na própria residência.

O Mapa da Violência 2018 revela ainda que são as mulheres e meninas negras a maioria entre as vítimas da violência sexual (54%), seguidas pelas brancas (34,3%), indígenas (1,2%) e amarelas (0,7%) – 9,8% não informaram a raça/etnia. Outro dado desconcertante, como o próprio estudo acentua, é a vitimização de pessoas que, além de sofrerem a violência de gênero, ainda vivem em situação de vulnerabilidade por deficiências física e/ou psicológica: 10,3% das vítimas de estupro identificadas pelo estudo possuíam alguma deficiência e, destas, 12,2% sofreram estupro coletivo.

À vista de estudiosas e feministas estão também os casos de abuso sexual em ambiente escolar. Em São Paulo, em 2015, chegarem à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e ao Ministério Público Estadual (MP-SP) denúncias de estupro e violência sexual na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), tendo sido emblemático o caso do aluno da FMUSP acusado de dopar e estuprar três colegas. Um ano antes, no entanto, uma equipe de pesquisadores da faculdade, coordenada pela professora Maria Fernanda  Tourinho Peres, já havia identificado que 43% dos participantes do estudo – 317 dos 1.072 estudantes matriculados na graduação da FMUSP em 2013 – tinham sofrido pelo menos algum tipo de assédio ou discriminação sexual. Desses, segundo o levantamento, apenas 24 (7%) afirmaram que não terem sofrido nenhum tipo de agressão.

Este cenário motivou, inclusive, a criação da Rede Não Cala! USP, em 2015, oficializando o apoio que muitas docentes já prestavam de maneira individual às denúncias que recebiam de alunas, implicando de forma mais ampla a prevenção e o combate aos casos de violência, por meio também de campanhas educativas e de comunicação. Coordenadora desse grupo, a professora da FMUSP Ana Flávia D´Oliveira observa que as instituições escolares têm papel relevante no combate ao abuso e à exploração sexual de crianças, adolescentes e jovens. “É muito importante visibilizar essa violência no interior de qualquer instituição de ensino, entendendo que ela não é um produto necessariamente da universidade ou da escola, mas de uma sociedade machista e patriarcal. Precisamos trazer o tema para dentro dessas instituições, especialmente porque formamos pessoas para o mundo do trabalho e que precisarão combater a desigualdade e a violência de gênero”, orienta a professora.

Medo de morrer é dominante
As especialistas dizem que os números da violência sexual certamente são maiores, porque o crime é um dos que têm maior índice de subnotificações, ou seja, nem chegam ao conhecimento da polícia. E por que muitas mulheres não denunciam? Ao buscar caminhos para o enfrentamento do problema, o Observatório da Mulher Contra a Violência, em conjunto com o Instituto de Pesquisa DataSenado, revela que as mulheres deixam de denunciar a agressão sofrida em razão, principalmente, do medo de sofrerem mais violência, seja por parte do agressor, seja por parte do Estado. Além disso, elas têm receio de o agressor sofrer violência por parte do Estado e de não conseguirem sustentar a si ou aos filhos, ou mesmo de serem socialmente excluídas.

Para Cláudia Facuri, conhecer seus direitos e ter uma rede de apoio são medidas que poderiam contribuir com o aumento das denúncias de agressão e interromper este ciclo de violência. “A vítima precisa se apropriar e conhecer seus direitos logo nos primeiros momentos de atendimento, antes mesmo de dar início ao tratamento médico psicológico”, orienta.

É importante destacar que o atendimento imediato às vítimas da violência sexual, sem a necessidade de registro policial, está contemplado, desde 2013, pela Lei do Minuto Seguinte (12.845), garantindo a qualquer pessoa abusada sexualmente o direito à assistência para diagnóstico, tratamento de lesões, realização de exames que detectem doenças sexualmente transmissíveis e gravidez. A legislação assegura assistência emergencial gratuita 24 horas por dia em qualquer hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), público ou conveniado, obrigando inclusive os planos de saúde a cobrirem esses procedimentos em instituições privadas – à exceção do aborto, mesmo nas situações garantidas pela legislação, que são os casos de estupro, de risco de vida para a mulher causado pela gravidez e feto anencefálico. Nesses casos, o aborto só pode ser realizado no SUS. Ainda são previstos por lei acompanhamento psicológico, cirurgias plásticas reparadoras (quando necessário) e serviços de assistência social.

Mas nem todas as mulheres conseguem acesso a tudo o que a lei prevê. Segundo levantamento do Ministério da Saúde, com base no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, apenas 40% das vítimas de estupro registradas em 2017 foram atendidas pelo SUS. Isso significa que, naquele ano, somente 24 mil, de um total de 60 mil mulheres agredidas sexualmente, receberam tratamento em algum hospital. O problema é recorrente: em 2016, dos 49,5 mil estupros registrados pelo Atlas da Violência, produzido pelo Ipea e pelo FBSP, somente 20,2 mil vítimas foram socorridas por uma equipe de saúde.

A falta de conhecimento sobre a legislação e de atendimento adequado nos serviços de saúde levou o Ministério Público Federal em São Paulo a lançar, no ano passado, a campanha ‘Lei do Minuto Seguinte: sua palavra é a lei’. A iniciativa conta com vídeos, peças gráficas e ações de comunicação digital, todos baseados na premissa da legislação: a palavra da vítima é o suficiente. Além de explicar o que a lei garante – como o direito de realizar o aborto no SUS sem precisar apresentar boletim de ocorrência nem autorização judicial –, o que a vítima tem que fazer de imediato – neste caso, procurar o serviço de saúde e depois cuidar das questões relacionadas ao registro de ocorrência –, e quais as consequências da violência sexual – que são físicas e psicológicas, podendo causar depressão, desenvolvimento de síndrome do pânico e de pensamentos suicidas, distúrbios relativos à própria sexualidade e abuso de substâncias psicoativas –, a campanha orienta ligar para o Disque 180 nos casos em que à mulher violentada é negado atendimento integral e gratuito ou fazer a denúncia pelo próprio site (www.leidominutoseguinte.mpf.mp.br).

Dores invisibilizadas
Salta ainda aos olhos da professora Mirla Cisne a violência social como expressão das discriminações e preconceitos sofridos pelas mulheres. Ela destaca como exemplos dessa violação os salários mais baixos em relação aos homens, a própria discriminação étnico-racial e a pequena representação feminina na política e nos espaços de poder. “Além disso, a violência social se materializa na desqualificação e mercantilização das mulheres, muito comum nas propagandas e em letras de músicas”, completa. Ela realça ainda a violência psicológica, sempre presente nas demais formas de violência, ainda que intangível. “A violação psicológica diz respeito à relação de ameaça, de desvalorização, atinge a autoestima das mulheres e, por vezes, afeta a saúde mental delas”, detalha a professora.

Entre as formas de agressão contra as mulheres presentes em nossa sociedade fazem parte, ainda, a violência patrimo-nial – quando objetos materiais ou de valor sentimental são destruídos pelo agressor, como uma forma de atingir a mulher – e a obstétrica, que diferente das demais formas, não é principalmente praticada pelo cônjuge ou ex-cônjuge, embora também haja casos assim. Esta última diz respeito ao momento da gestação, do parto e pós-parto e aponta um problema que tem diretamente a ver com os serviços de saúde. “É tudo aquilo que atinge as mulheres de forma física ou psicológica, seja no período de gestação, nascimento ou amamentação”, caracteriza Mirla.  Ela revela que essa forma de violência também atinge mais mulheres negras e pobres. “Elas escutam piadas do tipo ‘na hora de fazer você gostou e agora está gemendo de dor’, ‘que mãe é você que não aguenta essa dor?’. Enfim, são as mulheres negras e pobres que costumam sofrer todas as formas de humilhação e desumanização na hora do parto. Sem citar as mulheres que fazem abortamento, que chegam a ser castigadas no momento do atendimento”, denuncia, lembrando que isso vai de encontro à Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde e ao código de ética médica.

Agredidas também no parto
Mirla recorda o Dossiê Violência Obstétrica ‘Parirás com dor’, elaborado pela Rede Parto do Princípio para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência Contra as Mulheres do Senado Federal, em 2012. O documento traz relatos de mulheres que, no momento do parto, ouviram agressões do tipo: “Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse jeito, né?”; “Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de novo”; “Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender”; “Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha”; “Na hora de fazer, você gostou, né?”.

A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Silvana Granado, que participou do estudo ‘Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento’, sobre atenção à gestação e ao parto, realizado entre 2011 e 2012, explica que qualquer ação de brutalidade ou maus-tratos e de discriminação por raça ou mesmo por idade sobre a mulher gestante pode e deve ser entendida como uma violência obstétrica. “Adolescentes grávidas, mulheres pobres e multíparas ou que não têm companheiros costumam sofrer toda forma de agressão física ou verbal na hora do parto”, revela.

Em meio às práticas violentas no atendimento às mulheres gestantes, Silvana destaca também como exemplos de violência obstétrica as cesarianas desnecessárias – que chegam a 55,5% contra 44,5% de partos normais –, a indução de contrações do músculo uterino com oxicitocina e a episiotomia – incisão efetuada na região do períneo para ampliar o canal de parto. Segundo a pesquisadora da Ensp/Fiocruz, com base na pesquisa ‘Nascer no Brasil’, apenas 5% das mulheres tiveram a chance de dar à luz sem intervenções durante o trabalho de parto. “A oxicitocina causa muitas dores. Mas muitos profissionais usam a substância para acelerar o nascimento do bebê, porque alegam precisar esvaziar a sala de parto. Isso é uma agressão”, lamenta, citando ainda como prática agressiva e machista, recorrente em casos de parto normal, o chamado “ponto do marido”. “Isso acontece mesmo. É o ponto que se faz ao término da sutura de uma episiotomia, apertando a entrada da vagina, com o intuito de torná-la mais estreita, sob a justificativa de aumentar a satisfação sexual do marido”, critica, dizendo que é falsa a crença de que o parto normal danifica os tecidos vaginais.

A violência obstétrica está retratada, ainda, nos casos de abortamento. Segundo Silvana, é recorrente meninas e mulheres serem agredidas verbalmente quando sofrem um aborto, mesmo natural – e a elas, inclusive, ser negado um atendimento humanizado.  “Não bastasse o sofrimento com a perda do bebê, essas mulheres relatam que são pressionadas de forma agressiva pelo profissional da maternidade para saber se tomaram alguma medicação, provocando a perda do filho”, diz.

“Se, por um lado, a legislação brasileira avançou bastante no tocante ao enfrentamento de certos tipos de violência contra a mulher, por outro, o país não conseguiu avançar no que tange ao direito reprodutivo da mulher e ao controle do seu próprio corpo”, salienta a professora Milena Barroso, da Universidade Federal do Amazonas. Mirla concorda e observa que essa é uma das pautas mais difíceis e desafiadores para o movimento feminista, porque envolve o enfrentamento ao fundamentalismo religioso. “A gravidez não pode ser uma consequência biológica, mas ela deve ser uma opção. Nós, feministas, defendemos o direito ao aborto, enquanto os fundamentalistas nos apresentam como ‘defensoras de assassinato de bebês’”, lamenta, afirmando ainda que a legalização poderia implicar a redução de casos de aborto, realizados muitas vezes por pressão do companheiro, pai ou familiares, e protegeria a vida dessas mulheres, em especial das pobres e negras.
A magnitude dos casos de aborto no Brasil é alarmante: uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto – isso significa que 4,7 milhões de mulheres entre 18 e 39 anos já abortaram. Os dados são da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016, coordenada pelos pesquisadores Marcelo  Medeiros, Alberto Madeiro e Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB) e Anis – Instituto de Bioética. São mulheres, de todas as idades, casadas ou não, que são mães hoje, de todas as religiões, ou sem religião, de todos os níveis educacionais, trabalhadoras ou não, de todas as classes sociais e grupos raciais, em todos os municípios e regiões do país, que atravessam a fronteira da legalidade para interromper uma gestação.

Mas as taxas de abortos não são uniformes: as mulheres das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, pobres, negras ou indígenas abortaram mais que as mulheres brancas e com maior escolaridade.  A edição de 2016 da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) revela que os casos de aborto são maiores entre mulheres nas regiões Norte/Centro-Oeste e Nordeste (15% e 18%, respectivamente) do que nas regiões Sudeste e Sul (11% e 6%). Da mesma forma que os índices são maiores em capitais (16%) do que em áreas não metropolitanas (11%). Abortaram mais as mulheres com escolaridade até o quinto ano (22%) contra as que têm nível superior (11%), bem como as que têm renda familiar de até um salário-mínimo (16%), enquanto as que têm renda alta – ou seja, mais de cinco salários mínimos – foram 8%. Entre as mulheres amarelas, pretas, pardas e indígenas, foram registradas taxas que variaram entre 13% e 25%, enquanto entre as brancas esse índice foi de 9%.

A pesquisa mostra, também, que quase metade das mulheres aborta usando medicamentos (48%), sem se confirmar, no entanto, qual foi a substância usada, ainda que se tenha conhecimento de que o Misoprostol13, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a realização de abortos seguros, é o mais usado no país. A proporção de mulheres que precisou ser internada para finalizar o aborto foi, também, de 48%.

Resultado da batalha feminista
O avanço da legislação na prevenção e combate à violência contra meninas e mulheres é um consenso. A Lei Maria da Penha, emblemática para as feministas no combate ao machismo e ao sexismo, tornou-se o principal instrumento legal para coibir e punir a violência doméstica e familiar praticada contra mulheres no Brasil, alterando os instrumentos para processar e condenar os agressores e afastando a competência dos Juizados Especiais Criminais para julgar os casos relacionados a essa violência. “Trata-se do resultado de uma longa trajetória de luta dos movimentos feministas e dos direitos humanos, passando a reconhecer e tratar a violência contra a mulher como uma questão pública e, como tal, dever do Estado em intervir e coibir sua prática”, observa Mirla Cisne.

Qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual, está prevista na Lei 11.340/2006. “Isso foi um grande avanço, uma vez que a violência contra a mulher era comumente restrita à violência física e, ainda assim, muitas vezes sendo encarada como um problema de ordem privada. Além disso, foi a primeira lei brasileira a reconhecer a relação entre pessoas do mesmo sexo, abrindo caminhos legais para a conquista de direitos por parte das pessoas não heterossexuais”, acrescenta a professora da UERN.

No texto da lei, destacam-se todas as formas de violência: a física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; a psicológica, que se refere a qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou vise degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças e decisões da mulher; a sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição; a patrimonial, referente a qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos; e, também, a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Na avaliação de Mirla, a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher são algumas das medidas de prevenção da violência previstas na lei que avançaram e contribuem para o enfrentamento do problema. A professora, porém, considera ainda incipiente o atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, especialmente a implementação de serviço policial especializado, como as Delegacias de Atendimento à Mulher. “A rede de atendimento prevista na Lei Maria da Penha é fundamental. Mas sua efetivação é insuficiente e precária, concentrando-se mais nas capitais”, critica Mirla, informando que, até mesmo nas capitais, essa rede tem funcionado com baixa qualidade.

Criadas em 1985 em São Paulo, como resposta ao grande número de reclamações quanto ao atendimento recebido por mulheres nas delegacias comuns, as delegacias especializadas de atendimento à mulher são poucas e de difícil acesso: estão apenas em 5% das cidades brasileiras.  De acordo com o Programa de Bolsas de Reportagem da Revista AzMina, que fez um levantamento dessas instituições em 2016, entrando em contato com todas as secretarias estaduais de Segurança Pública, a quem essas unidades estão subordinadas, há apenas 461 delegacias especializadas no país, sendo a maior parte em São Paulo, onde tudo começou, com 132 unidades, seguido por Minas  Gerais, com 71. O Rio de Janeiro, onde em 2017 foram registrados mais de quatro mil casos de mulheres vítimas de violência sexual, segundo o Dossiê Mulher, por exemplo, o número de delegacias especializadas é de 14. E não há lei que determine quantas delegacias devem existir em cada localidade e como o governo deve trabalhar para criá-las.

O levantamento de AzMina observa que, ainda que representem a porta de entrada em uma rede de apoio que ajuda a mulher sair da situação de violência, nem todas as unidades funcionam direito: em muitas delas, é recorrente o mal atendimento, o machismo institucional e a falta de estrutura.

Isso porque, segundo o texto da lei, o atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar deve ser prestado de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no SUS e no Sistema Único de Segurança Pública, permitindo à mulher violentada ser incluída por um juiz no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal, ter o direito à remoção do trabalho, quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta, e à manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses, além do atendimento prioritário quanto aos serviços de contracepção de emergência, à profilaxia das DSTs e do HIV/Aids e a outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual.

Entendendo a urgência no enfrentamento da violência doméstica e familiar e compreendendo que uma mulher morta foi antes vítima de um ciclo de violência dentro de sua própria casa, o Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo – estado que registrou em 2018, segundo a Secretaria de Segurança Pública, um caso de feminicídio a cada quatro dias – lançou em 2018 a pesquisa ‘Raio-X do Feminicídio em São Paulo’, por meio do qual identificou que o inconformismo com a separação (45%) é a principal motivação do crime, seguido de ciúmes ou posse (30%) e em meio a uma discussão (17%). Ao analisar 364 processos de assassinatos pela condição de gênero, a pesquisa identificou 240 casos de feminicídio íntimo, ou seja, cometidos por namorado, marido ou ex. O estudo indica ainda que em 66% dos casos as vítimas foram atacadas dentro de casa, 6% em via pública, 5% no trabalho e 5% em estabelecimentos públicos.

Luta que não se esgota
Outro marco foi a Lei do Feminicídio, de 2015. Mirla lembra que os casos de assassinatos de mulheres, geralmente, eram julgados pela Lei 9.099/95, que trata de “crimes de menor potencial ofensivo”, sendo equiparados aos casos de briga entre vizinhos e de acidente de trânsito. “Os homens agressores só eram presos em caso de homicídio ou lesão corporal grave, que impossibilitasse a vítima de trabalhar por mais de 30 dias”, recorda. Com a legislação, o feminicídio foi adicionado ao rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), tal qual o estupro, genocídio e latrocínio, com pena prevista de reclusão de 12 a 30 anos.
Nem todos os Tribunais do Júri, onde são julgados os crimes contra a vida, no entanto, têm aplicado a Lei 11.340/2006 nos casos de homicídio de mulheres.  Foi o que verificou a pesquisa ‘Impacto dos Laudos Periciais no Julgamento de Homicídios de Mulheres em Contexto de Violência Doméstica ou Familiar no Distrito Federal’, realizada em 2013 pelo Anis –Instituto de Bioética, em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap) do DF, revelando que a menção expressa à Lei Maria da Penha apareceu em apenas 33% das peças do processo de homicídio de mulheres, entre os anos de 2006 e 2011. O estudo sugere que o contexto da violência sistêmica contra as mulheres, que está nas raízes de grande parte dos assassinatos, ainda é pouco reconhecido pelos operadores do Direito, o que acaba por interferir na aplicação da Justiça.

A professora da UERN entende que ampliar o entendimento sobre as leis implica falar da necessidade de lutar por uma sociedade sem violência e sem as apropriações, explorações e opressões que dão corpo a essa violência. Em sua avaliação, o primeiro passo nesse sentido é desnaturalizar a ideologia patriarcal da subordinação e inferiorização feminina. A mulher, segundo Mirla, precisa ser reconhecida e se reconhecer como sujeito de direito e não como uma “coisa” voltada para a satisfação e cuidado do outro. O segundo passo é compreender de fato que a violência contra mulher é problema público e não de ordem individual e privado, exigindo a intervenção do Estado por meio de mais equipamentos sociais e fortalecimento das políticas públicas. “Logo, a rede de proteção, assistência, combate e prevenção à violência que está prevista na Lei Maria da Penha deve ser efetivada também no campo, onde os números dessa violência também são grandes”, defende. Milena concorda: “A legislação precisa ultrapassar os limites das grandes cidades”.

Mirla destaca ainda a importância de o tema ser tratado no contexto da educação. “Acredito que uma educação não sexista e antirracista é fundamental para a formação de consciências livres de preconceitos e naturalizações de discriminações”, afirma, sugerindo ainda que a luta antipatriarcal seja incorporada na agenda de todas as organizações políticas comprometidas com o avanço dos processos democráticos e com a construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária. O mesmo defende Milena, para quem a discussão sobre questões de gênero e sexualidade deveria ser central nas escolas, contribuindo com a prevenção da violência, de práticas sexistas, racistas e homofóbicas, bem como para a própria identificação de casos de vio-lência. “Muitos casos de violência sexual nas famílias são identificados pela escola”, garante.

O Observatório da Mulher Contra a Violência e o Instituto de Pesquisa DataSenado indicam também algumas diretrizes para que as ações da área sejam mais efetivas, entre elas a criação de novas portas de entrada para a rede de apoio e modelos de intervenção regionalizados. Com base em um estudo realizado em 2017, eles sugerem capacitar os Centros de Referência de Atendimento Social (CRAS), que atuam, por exemplo, no cadastramento de beneficiários de programas de transferência de renda, de forma a identificar, no momento em que as mulheres buscam um atendimento desses serviços, um quadro de violência doméstica.
Em relação aos modelos de intervenção, o estudo propõe intensificar a regionalização por meio do estabelecimento da rede de apoio à mulher vítima de violência nas chamadas cidades-polo, em linha com o que prevê o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. O objetivo dessa diretriz é viabilizar o suporte às vítimas de pequenas municipalidades, tendo em vista que a implantação de uma estrutura de serviços que atendam exclusivamente mulheres nessas localidades é muito desafiadora.

Outras ações destacadas para tornar o enfrentamento à violência contra as mulheres mais efetivo incluem assegurar a agilidade na concessão de medidas protetivas, realizar um monitoramento eficaz do cumprimento dessas medidas protetivas e assegurar o atendimento psicossocial da mulher,de seus filhos e também do autor da violência. “Afinal, o Estado tem o dever de garantir a vida, a liberdade e a autonomia das mulheres, bem como das pessoas a elas vinculadas e delas dependentes, como os filhos”, conclui Milena.

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