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sábado, 2 de fevereiro de 2019

No Brasil, pesquisas sobre gênero ganham força nos últimos 10 anos, mas professores já falam sobre “caça às bruxas”

Brasil tem 358 grupos em instituições de ensino que discutem gênero na área de Humanas e Ciências Sociais Aplicadas e são certificados pelo CNPq; especialistas lamentam enfrentamento ao termo, que dificulta progresso na área
Por Lola Ferreira*
24 DE JANEIRO DE 2019
Quando um grupo de alunos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) se dispôs a discutir gênero e sexualidade em uma escola pública a uma semana das eleições gerais de 2018, nenhum dos integrantes pensou que seria tão difícil. Com apoio de uma professora da instituição e com o aval da diretora do colégio estadual selecionado, foram até a unidade distribuir folhetos para explicar conceitos básicos sobre gênero, sexualidade e apresentar a metodologia. Em uma época de ânimos acirrados e radicalização de opiniões políticas,  acreditavam no potencial da discussão, mas tiveram de recuar: alunos, professores e pais pressionaram a direção escolar, que decidiu abolir o projeto.

O episódio acima foi relatado pela estudante Dalai Torres, do curso de Ciências Sociais da UFRJ, à Gênero e Número. A desistência teve um motivo crucial: “nossa segurança”, ela conta. O temor de Torres também é sentido pelo professor Donizete Batista, da UFV (Universidade Federal de Viçosa), em Minas Gerais. Um dos coordenadores do grupo “NÃO RECOMENDADXS – Grupo de Pesquisa em Sexualidade, gênero e interseccionalidades”, ele afirma que no último ano já sente um aumento da repressão e cerceamento da discussão sobre gênero.
“Um termômetro do início desse processo foi a agressão que a Judith Butler sofreu ao visitar o Brasil. Acredito que a partir de 2019 vai haver maior perseguição a essas pesquisas. A gente teme muita coisa: o [corte no] direcionamento de verbas para os grupos, a participação em congressos e eventos sobre o tema. É um momento bastante conturbado nesse sentido”, revela.
Criado em 2018, o grupo coordenado por Batista é um dos mais recentes certificados pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Localizado no campus de Rio Parnaíba, cidade com cerca de 12 mil habitantes, o professor reconhece a importância da discussão, apesar de ressaltar que serão tempos difíceis: “Ano passado, uma professora de escola pública nos procurou para irmos até lá falar sobre gênero e foi muito interessante. Um avanço. Mas hoje eu acho que isto seria praticamente inviável, porque há uma caça às bruxas”, diz.
O Não Recomendadx é um dos 122 grupos de pesquisa com no máximo quatro anos de existência que levam “gênero” no nome, são certificados pelo CNPq e que estão nas áreas de Ciências Humanas ou Ciências Sociais Aplicadas. No total, com estas características, são 358 grupos. Na análise feita pela Gênero e Número, foram desconsideradas as áreas de Biológicas, Saúde e Linguística, pois a ideia era visibilizar as áreas mais relacionadas aos Estudos de Gênero propriamente ditos.
Os grupos dentro do recorte analisado que têm mais de 15 anos de existência são 58, mas a quantidade de grupos que discorrem sobre o tema aumenta mais que o dobro quando analisados os que têm de cinco a nove anos de existência: são 126.
Gênero e Número apurou que as únicas instituições que têm mais de 10 grupos de discussão de gênero são a UFRJ, a UFF (Universidade Federal Fluminense) e a UFPA (Universidade Federal do Pará). A UFF, aliás, chama a atenção por cerca de 60% dos seus grupos terem no máximo quatro anos de existência, indicando que houve uma ampliação do interesse pelas linhas de pesquisa nesse tema A UFRJ também encabeça, juto com a UFG (Universidade Federal de Goiás), a lista das universidades que criaram mais grupos de gênero entre 2010 e 2014: foram seis. A única instituição que não tem ensino superior e consta na lista é o Colégio Pedro II, onde o grupo existe há pelo menos um ano.
Ser um colégio em meio a essa lista é um dos motivos que levou o presidente Jair Bolsonaro, ainda quando era deputado federal, a afirmar que a instituição era um “balão de ensaio tomado por marginais do MST”. Em outras ocasiões, o hoje presidente acusou a instituição de propagar “ideologia de gênero”.

Gênero na sociedade

A coordenadora do NEPEM/UFMG (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais), Marlise Matos, lamenta que o atual governo tenha travado uma batalha contra a chamada “ideologia de gênero” e insistido no fato de que há uma doutrinação cultural em curso, o que dificulta o ambiente da pesquisa dos estudos de gênero.
A pesquisadora acredita que os grupos interferem de maneira direta ou indireta nos avanços da sociedade em relação à compreensão do que são os estudos de gênero, e por isso devem lutar por sua manutenção.
Há um consenso do conservadorismo em entender o tema como algo ameaçador. O que estamos vivendo é uma caça às bruxas, e é um retrocesso. Eu acho preocupante, sem dúvidas, e por isso é necessária uma maior articulação para reagir e reforçar a necessidade desses estudos. Precisamos de articulação para não correr o risco de perder o espaço já conquistado.
A base de dados do CNPq mostra que são 16 grupos discutindo gênero e violência, 22 discutindo gênero e raça, 25 discutindo gênero e trabalho e muitos outros que discutem a conexão com religião, políticas públicas, narrativas de mídia e família, entre outros.
O objetivo dos grupos é investigar sob as lentes da pesquisa como os temas estão sendo vividos pela sociedade em geral e encontrar formas de incidir positivamente sobre eles. A ameaça que alguns pesquisadores sentem, se concretizadas, podem representar prejuízos na evolução e amadurecimento dos estudos de gênero. É o que acredita a professora e doutora em Ciências Sociais Lays Mazoti, da UFV.
“O conjunto de pesquisas que surgiram nestes dez anos busca, justamente a partir da instalação de um processo educativo, possibilitar essa mudança de mentalidade. É uma correlação de forças que se influenciam mutuamente: a sociedade muda e passa a levantar novas perguntas que movimentam novas pesquisas nas universidades que impulsionam, por sua vez, outras mudanças”, analisa.

O caso Débora Diniz

No último ano, a pesquisadora Débora Diniz, da UnB (Universidade de Brasília), protagonizou uma perseguição do conservadorismo contra os estudos relacionados a gênero. Em julho de 2018, Diniz tornou públicas as ameaças de mortes que vinha recebendo, via email, telefone e em grupos da internet, por sua atuação a favor da descriminalização do aborto. A campanha de ataque à reputação de Diniz, que também é escritora e documentarista, ganhou volume e veio à tona no momento em que o STF se preparava discutir a ação sobre a descriminalização do aborto no Brasil até a 12ª semana.

Pesquisadora saiu do Brasil após ameaças de morte | Foto: Youtube / Ipea
Pesquisadora saiu do Brasil após ameaças de morte | Foto: Youtube / Ipea

Em dezembro, Débora Diniz contou ao jornal El País que entrou no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal e saiu do Brasil. Ainda que não esteja presente no território nacional, a pesquisadora continua a desenvolver pesquisas sobre o tema, mas em segurança: “Assim como outros defensores dos direitos humanos, não posso me permitir cruzar limites sob o risco de virar mártir”, disse.
*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

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