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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

40 dias de assédio

Grupo católico pró-vida que constrange mulheres em frente ao hospital de São Paulo importou dos EUA o modelo de assédio às vítimas de estupro: são como colonizadores de novos territórios para o missionarismo

DEBORA DINIZ
GISELLE CARINO
27 OCT 2019

A promessa é de 40 dias ininterruptos de assédio contra mulheres. O grupo é pequeno, porém ruidoso. Umas poucas pessoas murmuram orações e praguejam às mulheres que se aproximam do hospital para aborto legal em São Paulo. Eles se autodenominam “40 dias pela vida”, mas há um desvio de identidade no título: são católicos, doutrinados pelo imperialismo religioso dos Estados Unidos, que usam o tempo produtivo da vida para perseguir mulheres. Ignoram o que sejam direitos ou cuidado à dignidade de uma mulher vítima de estupro —a missão é constrangê-las para doutriná-las a não abortar. Nem que isso signifique abandoná-las à própria sorte depois do parto.

Para isso, montaram barraca com direito à estátua de santa na porta do Hospital Pérola Byington, o principal centro de atendimento para mulheres e meninas vítimas de violência sexual no Brasil. Santa Gianna Molla morreu de parto: sofria de câncer e optou por não realizar um aborto para salvar a própria vida. Fez como as feministas acreditam dever ser o mundo em que se respeitam as liberdades individuais. Nem uma mulher deve ser obrigada a se manter grávida de um estupro ou ser forçada a interromper uma gestação contra sua vontade, mesmo que isso represente uma forma indireta de suicídio. Santa Gianna Molla recusou tratamentos que salvariam sua vida por uma convicção religiosa individual.

Poucas mulheres nasceram para a santidade como foi Gianna Molla. Infelizmente, no curso da vida, meninas são vítimas de estupro e engravidam. Muitas delas sofrem violência na casa e os agressores são homens de sua rede familiar e de afeto. Sofrem medo, sentem-se desamparadas, e a interrupção da gestação é uma das formas de proteger seus planos de vida. Segundo dados do estudo “Serviços de Aborto legal no Brasil: um estudo nacional”, 94% dos casos de atendimento para o aborto previsto em lei (estupro, anencefalia e risco de vida) foi resultado de estupro. Tristemente, 15% das vítimas foram meninas entre 11 e 14 anos. Não há dados seguros sobre o atual cenário de assistência às vítimas de estupro no país, mas se estima que o acesso e os cuidados nos 37 serviços identificados pela pesquisa estejam ainda mais restritivos que em 2015 quando os dados foram coletados.

A coordenadora da barricada abençoada não se descreve em missão desumana. Ao contrário, explica em detalhes o combo de perseguição às mulheres. A ação em hospitais segue o protótipo dos grupos antiaborto católicos e evangélicos nos Estados Unidos em frente às clínicas de planejamento familiar da rede PPFA: primeiro praguejam às mulheres na expectativa de que sofram e desistam do aborto. Dali, as mulheres vítimas de estupro são levadas para espaços onde permanecem até o parto, as chamadas casas de “gravidez em crise”. A oferta é de cuidado, mas é também de vigilância ao direito de escolha. Pouco se sabe sobre o funcionamento desses espaços e grupos, quem os financia além do governo americano para as ações nos Estados Unidos, ou como as mulheres são vigiadas. O que sabemos é que há uma importação do modelo de assédio às mulheres vítimas de estupro —são como colonizadores de novos territórios para o missionarismo. A igreja não é mais suficiente; é preciso ocupar o espaço público e os hospitais, tornando-os também insuportáveis às mulheres e meninas já vítimas de violência sexual na casa.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown.

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.

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