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domingo, 20 de outubro de 2019

O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago, diz Silvia Federici

Autor: Redação Folha de São Paulo Data da postagem: 16/10/2019


Silvia Federici, 77, italiana radicada nos Estados Unidos, é professora emérita da Universidade Hofstra, onde ensinou disciplinas de filosofia e estudos de gênero. Uma das feministas vivas mais importantes da atualidade, participou nos anos 1970 do movime

Autora de 'Calibã e a Bruxa' diz que a desvalorização das tarefas domésticas, incluindo o sexo, permite o controle das mulheres
“Eles abriram as portas das fábricas, dos escritórios, e agora podemos trabalhar como trabalhadoras baratas, mas tradicionalmente o casamento era a solução. A mulher tem de achar um homem que traga o salário para casa”, diz a filósofa Silvia Federici, para quem o trabalho doméstico está no centro da discussão sobre igualdade entre mulheres.

A autora participou, nos anos 1970, do movimento feminista internacional Wages for Housework (salários pelo trabalho doméstico) —e em 1975 lançou livro de mesmo nome—, que defendia que as tarefas realizadas dentro de casa deveriam ser remuneradas. A ideia era chamar a atenção para o fato de esses afazeres serem uma forma de trabalho, embora a sociedade não os veja dessa forma.
Em 2004, Federici lançou o livro “Calibã e a Bruxa”, que marcou os estudos feministas e de história ao mostrar como a caça às bruxas na Europa foi necessária ao estabelecimento do capitalismo, junto da expulsão dos camponeses com o cercamento das terras comuns, da exploração das colônias na América e do trabalho escravo.
Diferentemente de muitos dos clichês do feminismo que se estabeleceram com internet e redes sociais, Federici dá importância às tarefas domésticas, defende que a luta pelo direito ao aborto seja feita junto daquela pelo direito a ter filhos, critica o termo minoria e ataca a exploração da mulher como mão de obra barata.
Pensadora marxista, lançou neste ano, em francês, “Le Capitalisme Patriarcal” (o capitalismo patriarcal), no qual defende que o fim do sexismo não passa pela igualdade salarial de homens e mulheres ou pelo fim da discriminação, mas pela luta contra o capitalismo. Em “Mulheres e Caça às Bruxas”, lançado em setembro pela Boitempo, ela retoma, em ensaios, algumas das questões de “Calibã e a Bruxa”.
Federici faz conferência na terça (15), no Sesc Pinheiros, em São Paulo, com ingressos esgotados, no evento Democracia em Colapso?, que tem ainda as feministas negras Angela Davis e Patricia Hill Collins na programação.
O que muda quando as mulheres saem para o mercado de trabalho e pagam outras mulheres para fazerem o trabalho doméstico em suas casas?
É uma longa cadeia. O trabalho doméstico vai de uma mulher para outra mulher, ou para uma criança, uma filha. Uma mulher deixa o seu filho com outra mulher ou com sua mãe, e a mãe tem de seguir trabalhando. Mulheres nunca se aposentam. Quando você emprega outra mulher imediatamente há uma relação de poder. A patroa fala “estou atrasada, pode ficar mais meia hora?” ou “é minha filha, pode ficar um pouco mais?”, e sempre tem uma chantagem emocional quando se trabalha para outra mulher, sobretudo quando estão lidando com mulheres muito pobres.
A solução é um movimento de mulheres que conecte as que trabalham em casa por dinheiro ou as que o fazem sem dinheiro, para mostrar como o trabalho reprodutivo é trapaceado nesta sociedade.
A desvalorização do trabalho doméstico afeta ambas: a que faz sem pagamento e a que faz por pagamento. Então temos que lutar juntas. Se não, cria-se toda uma relação de poder e mais desigualdade entre as mulheres.


Silvia Federici/Imagem: Reprodução - Folha de São Paulo

Vem caindo o número de donas de casa. No Brasil, por exemplo, a parcela da população que se declarava dona de casa caiu de 19%, em 1993, para 7% neste ano. O que isso muda?
Eu não gosto do termo dona de casa, prefiro trabalhador doméstico. O fato de as mulheres dizerem que não são donas de casa significa que elas não são só donas de casa em tempo integral. No passado, havia uma grande quantidade de mulheres que trabalhavam a maior parte do tempo em casa, agora muitas estão trabalhando fora de casa, mas não pararam de fazer o trabalho doméstico. Elas o fazem à noite, de manhã cedo, aos domingos. Há muito trabalho doméstico, trabalho reprodutivo.
Temos que questionar as estatísticas. A questão do trabalho doméstico é tão dramática hoje como era nos anos 1970, porque as mulheres agora não têm tempo. Elas trabalham o tempo todo. Trabalham cuidando de todo mundo, da casa, ajudando as pessoas a viver e ajudando as pessoas a morrer.

Não há tempo para descansar, para a saúde, e o dinheiro é pouco. Os trabalhos que as mulheres conseguem pagam muito pouco. E quando chegam em casa, ainda têm mais trabalho, sobretudo se têm filhos. Como isso afeta as vidas das mulheres? Quem se beneficia disso?
Quem?
Todos os empregadores se beneficiam disso e não nos dão nada. Há uma grande diferença entre fazer cadeiras, sapatos ou carros, e o trabalho de fazer crianças, de criar crianças.
Com a desvalorização do trabalho doméstico, a mulher tem de arranjar um outro emprego, ou tem de depender de um homem.
Os homens também são explorados neste mundo, mas pelo menos o trabalho deles é reconhecido como trabalho, eles têm alguns direitos como trabalhadores.
Nós somos as fábricas de trabalhadores. Da comida às roupas e o trabalho emocional. E o sexo também é parte do trabalho doméstico.
Não importa o quão cansada esteja, se é casada e seu marido quer fazer sexo, muitas de nós faremos sexo. Se dissermos não, muitas vezes eles nos obrigam.
Quantas mulheres têm o poder de dizer “eu não tive um orgasmo”? A mulher tem de fazer sexo mesmo que esteja cansada e tem de fingir que está gostando. Milhões de mulheres mentem porque o homem quer ficar satisfeito.
As mulheres da minha geração, sempre mentimos [sobre orgasmo], queríamos que acabasse logo, tínhamos grandes expectativas, mas a realidade não era o que esperávamos. O sexo é parte do trabalho, ele se torna uma tarefa. Dar prazer ao homem, fazê-lo feliz. O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago.
A violência doméstica pode se relacionar a tudo isso, não?
Muito da violência doméstica tem a ver com o trabalho doméstico. É a comida que não está boa, a casa que não está limpa, as crianças que estão muito barulhentas. O marido chega em casa cansado, ele quer sexo. Esse é o tipo de coisa que normalmente leva à violência doméstica.
A violência é um elemento funcional da organização da reprodução da força de trabalho. Pelo salário, e pelo sistema salarial, o governo e o capital dão aos homens o poder de supervisionar o trabalho das mulheres. O capitalismo dá ao trabalhador o salário e, pelo salário, ele controla o trabalho da mulher. O trabalhador assalariado na família é o representante do Estado.
O trabalho doméstico é organizado de forma eficiente a disciplinar a mulher, porque sempre que pensa em dizer “não”, ela acha que vai estar indo contra seu marido e filhos. Não se vê que esse é um trabalho que está beneficiando os empregadores, parte da produtividade que gera acumulação de capital, que é parte da máquina capitalista.
A violência é institucional, organizando o trabalho doméstico que, como não é pago, faz da mulher dependente do homem. A partir do momento que se é dependente, há uma relação de poder. A mulher vai para a cama com um homem e não é igual a ele.
A senhora é uma pensadora marxista. Vemos a direita acusar a esquerda do que ela chama de ‘marxismo cultural’, uma tentativa de dominar escolas, universidades e campos da cultura com temas que doutrinariam as pessoas, como a discussão de gênero ou o feminismo, por exemplo. Por que Marx é o bode expiatório?
Eles usam a ideia de Marx para demonizar todos os movimentos de oposição. Judith Butler, por exemplo, não usa Marx —a maioria das feministas não usa. Estão usando Marx para atacar qualquer crítica à sociedade capitalista, à exploração da vida humana, à destruição do meio ambiente. Eles fazem isso porque nos movimentos sociais a consciência anticapitalista está crescendo.
Todo mundo sabe que o sistema é injusto. Não temos uma revolução porque as pessoas estão constantemente sob pressão, com o trabalho, e porque os governos são muito opressivos. As pessoas não lutam porque têm medo de tornar suas vidas ainda mais miseráveis, têm medo de, se lutarem, sofrer ainda mais.
Mas esse sistema não vai sobreviver, porque todos estão vendo o quão destrutivo é. Há tanta exploração... Os suicídios estão aumentando.
Depressão e ansiedade são doenças em massa. Isso porque a vida é muito miserável, insegura, não há senso de futuro, não há prazer em viver.
Houve críticas a “Calibã e a Bruxa” porque, segundo elas, a senhora pôs no mesmo patamar as mulheres europeias queimadas como bruxas, as africanas escravizadas e as ameríndias exterminadas. Neste novo livro a senhora fala bastante do feminismo negro; foi uma forma de responder a essas críticas?
Eu falei de perseguição a mulheres que foram queimadas vivas. As mulheres eram torturadas por dias e depois queimadas. Eu não deveria falar sobre isso? Não falei sobre toda a exploração da mulher negra porque isso seria um outro livro.
Eu abordei uma forma particular de perseguição que aconteceu. Não ponho no mesmo nível. Eu falo da experiência das mulheres escravizadas, mas estava centrada na bruxaria porque, por três séculos, mulheres na Europa estavam sujeitas a serem presas, demonizadas, expulsas, exiladas, exterminadas, como bruxas.
Além de pôr o trabalho doméstico no centro de seu trabalho, diferentemente de muitas das feministas, a senhora também se distancia dos movimentos em voga ao recusar o termo minoria. Por quê?
Palavras carregam política nelas e a linguagem também é um terreno de luta. Usar minoria faz com que não seja tão importante o que acontece com esses grupos, constrói uma justificação da marginalização.

Os negros são minoria nos Estados Unidos? Se estamos falando de identidade política, há toda a história de superexploração, de terem sido escravizados, de sempre estarem no centro das mais intensas brutalidades. Tudo isso é escondido no conceito de minoria, que constrói uma desvalorização, uma marginalização.
Por que os novos líderes da direita estão interessados em dificultar, até em casos em que já é legal, o aborto?
Eles querem que produzamos mais crianças. Crianças são necessárias como trabalhadores, consumidores, soldados.
Mas estão interessados em um tipo de trabalhador. Que tipo de pessoa deveria se reproduzir e que tipo não deveria? Eles não podem mais tão facilmente esterilizar mulheres negras, mulheres pobres. Mas certamente não querem que as mulheres pobres tenham muitos filhos. Então, ainda que controlar o corpo das mulheres e fazer com que reproduzam seja importante, quando se trata de mulheres negras, pobres, imigrantes, é diferente.
Eles só se importam enquanto o feto está na barriga da mãe, aí tem todos os direitos, mas quando a criança nasce, não lhe dão nem sequer um real. Eles cortam o dinheiro para a infância. Temos que denunciar isso.
Essas pessoas só se importam com a vida do feto, porque elas não têm de pagar por ele, porque está na barriga da mãe, mas quando nasce, e precisa de cuidados, aí elas não se importam. Esse argumento conservador tem de ser exposto, elas não se importam com as crianças, eles não ligam se elas morrerem.
É um jeito de, indiretamente, impedir mulheres negras, mulheres pobres, de ter filhos, é uma esterilização indireta.
Se falamos de controle sobre nossas vidas, nossos corpos, nós temos que dizer que queremos, sim, o direito de não ter filhos, mas queremos também o direito de tê-los, sem sermos criminalizadas, sem sermos condenadas a uma vida de pobreza, a uma vida apenas de trabalho e trabalho, em que nem sequer teremos tempo de ficar com nossos filhos.

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