1 de agosto de 2018
É tarefa difícil nos dias atuais conceituar o que se entende por feminismo – em razão das diversas possibilidades de significado que tal terminologia possui -, bem como determinar com exatidão o momento histórico em que as primeiras ideias feministas tiveram êxito (se o tiveram) na luta pelo fim do tratamento desigual da mulher em relação ao homem em função do gênero.
O que é certo apenas é que apesar das divergências em relação a alguns temas polêmicos, os vários movimentos feministas sempre tiveram em mente o mesmo ideal, qual seja, a busca pela liberdade e igualdade da mulher frente ao homem através da desconstrução dos papéis de gênero.
O que é certo apenas é que apesar das divergências em relação a alguns temas polêmicos, os vários movimentos feministas sempre tiveram em mente o mesmo ideal, qual seja, a busca pela liberdade e igualdade da mulher frente ao homem através da desconstrução dos papéis de gênero.
O grande desafio dos movimentos feministas sempre consistiu em romper com a ideologia patriarcal que oprime as mulheres, colocando-as em posição de inferioridade em relação aos homens. Baker (2015) enfatiza para o fato de que o patriarcado não se trata apenas de um fenômeno histórico que teve início na Antiguidade e que terminou no Século XIX, com a conquista pelas mulheres de alguns direitos, pelo contrário, o patriarcado é uma ideologia que ainda se encontra enraizada nas sociedades atuais, e que consiste em reproduzir e fomentar a ideia de superioridade e dominação masculina.
A obra intitulada de “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, do ano de 1949, é uma das primeiras obras com ideias feministas (de que se tem notícia), que teve por escopo pôr em causa o patriarcalismo através do estudo e da diferenciação entre sexo e gênero.
A diferenciação entre sexo e gênero (e ainda entre sexo, gênero e orientação sexual) é de fundamental importância para que possamos entender a forma como os papéis de gênero foram construídos socialmente. As correntes feministas nos mostram que sexo e gênero não são conceitos iguais, sendo aquele uma característica biológica; anatômica, e este uma construção social. É um erro, portanto, pensar que gênero é o produto/resultado das diferenças biológicas.
Baker (2015) diz que a lógica dos discursos de gênero e a atribuição de papéis imutáveis a homens e mulheres, como se fossem qualidades naturais, em virtude de uma suposta característica biológica, fomenta a desigualdade entre homens e mulheres. A dicotomia masculino-feminino fomenta a relação de poder entre os dois sexos.
Em outras palavras, condicionar as mulheres à vida privada/doméstica, atribuindo-lhes, de forma absoluta, qualidades inalteráveis, como, por exemplo, a passividade e a fragilidade, significa restringir as possibilidades de libertação da mulher em relação a dominação masculina.
Mackinnon (1987) afirma que o problema central não é a diferenciação entre homens e mulheres em função do gênero, mas sim o que está por trás dessa distinção; os motivos que sustentam essa diferenciação. Beleza (2010), por sua vez, diz que o problema não está nas diferenças entre homens e mulheres, mas sim na hierarquização dessas diferenças. Ou seja, o problema está em estabelecer uma relação desigual entre homem e mulheres em função das diferenças biológicas.
Um dos reflexos do tratamento desigual conferido às mulheres em relação aos homens pode ser observado em diversas áreas do direito. No Direito Penal a dominação masculina pode ser facilmente vislumbrada através de alguns exemplos.
A legítima defesa da honra como causa de exclusão da ilicitude nos casos de adultério é um destes exemplos. Outro é o casamento entre agressor e vítima do crime estupro como causa extintiva de punibilidade. Todas essas situações, de alguma forma, representavam a superioridade masculina no Direito Penal de outrora.
Por outro lado, a criminalidade feminina sempre foi vista como algo irrisório e sem importância para a criminologia. A mulher era sempre tida como vítima e não como criminosa.
A ingenuidade, a passividade e a honestidade eram atributos inerentes à condição de mulher. Os estereótipos de gênero e os papéis que são impostos às mulheres podem ser evidenciados também nos dias atuais.
O ônus de oferecer resistência imposto às mulheres no crime de estupro é um exemplo disso. Exige-se a resistência, e até mesmo, em alguns casos, a luta corporal entre agressor e vítima, para que fique caracterizada a recusa da vítima. Um simples “não” não é suficiente para que a negativa da vítima seja configurada. Ainda persiste no imaginário popular (e até no imaginário do julgador) a crença de que quando a mulher diz “não”, na verdade ela está fazendo “charme” para não dizer “sim” de primeira.
Assim, em razão das manifestas desigualdades existentes na lei entre homens e mulheres, as primeiras correntes da chamada “Teoria Feminista do Direito” surgiram pleiteando a inclusão e a igualdade da mulher em relação ao homem no direito. A doutrina costuma dividir as correntes feministas do direito em três grupos, quais sejam, feminismo liberal (estágio da igualdade); feminismo da diferença (estágio da diferença) e feminismo pós moderno (estágio da diversidade).
Segundo Rita Mota Sousa (2015), em obra específica sobre o tema, a primeira corrente feminista do Direito, chamada de feminismo liberal, teve início nos Estados Unidos da América nos anos 60 e 70 do Século XX. O feminismo liberal pleiteava a igualdade formal, que homens e mulheres recebessem o mesmo tratamento legal. Argumentava-se que o sexo não podia ser considerado um fator de distinção relevante entre os indivíduos.
“O que o feminismo liberal colocou em crise foi, portanto, o modo como a lei se dirigia às mulheres, tratando-as como um grupo em torno de características presumidas, ao invés de as tratar como indivíduos” (SOUSA, 2015, p, 30)
Segundo a autora, o feminismo liberal falhou ao negar as diferenças entre os sexos, e, em razão disso, pregar uma visão assimilacionista do direito, deixando de lado situações especiais, como por exemplo, a gravidez e a maternidade. Ainda de acordo com a autora, a partir dos anos 80 o debate girou em torno da diferença, surgindo daí a corrente feminista voltada para a diferença, para o tratamento especial (feminismo radical e feminismo cultural).
Haveria que reconhecer que certas diferenças entre os sexos são únicas e inerentes a um dos sexos. A gravidez era, de facto, uma característica das mulheres. O modelo liberal não oferecia uma proposta de justiça para estas situações, pois a norma masculina não tem analogia possível com a gravidez ou a maternidade. O tratamento especial seria uma forma de anular a desvantagem com que as mulheres se confrontavam, e colocá-las no mesmo ponto de partida por forma a que pudessem competir no mercado laboral em igualdade de circunstâncias com os homens. (SOUSA, 2015, p. 34)
Calheiros (2013), em texto sobre gênero e igualdade, salienta que a ideia de diferença entre gêneros ao mesmo tempo em que foi utilizada para construir um papel social da mulher de subordinação frente ao homem, foi utilizada para alcançar a igualdade substancial/material da mulher em relação ao homem.
Sousa (2015) afirma que o feminismo pós moderno (ou feminismo da diversidade) teceu críticas importantes às correntes precedentes pelo fato de estas possuírem uma visão essencialista, na medida em que não considera as características diferenciadoras entre os vários grupos de mulheres. A autora afirma que a discriminação que atinge uma mulher branca, letrada, de classe média e heterossexual não é a mesma que atinge a mulher negra, lésbica ou de classe trabalhadora.
“Esta fase, portanto, afirma que as mulheres são diversas e plurais, e o gênero se cruza com outras categorias, como raça/etnia, geração, sexualidade e capacidade, construindo um sujeito complexo e plural” (BAKER, 2015, p. 51-52)
Contudo, apesar dos avanços e da gradativa ocupação das mulheres nas funções públicas, o tratamento desigual em função do gênero ainda pode ser visualizado em diversas situações. Todavia, restringiremos nossa análise as decisões judiciais de estupro e de homicídio conjugal, para demonstrar que, ainda hoje, os estereótipos de gênero ainda são reproduzidos – ainda que inconscientemente – nas sentenças judiciais Brasil afora.
Não é novidade para ninguém que os estereótipos de gênero socialmente construídos influenciam os juízes nas tomadas de decisões. O simples fato dos magistrados estarem inseridos na sociedade já é o suficiente para que eles tenham pré-compreensões acerca dos mais diversos assuntos. Não há, portanto, como se cobrar neutralidade, pois, por mais isento e imparcial que o juiz seja, jamais ele será neutro.
Nota-se que neutralidade e imparcialidade são conceitos distintos. Este se baseia em critérios objetivos e é algo alcançável, já aquele, além de ser impossível de ser alcançando, é algo subjetivo; intrínseco (não há como retirar as influências ideológicas e pré-compreensões que o julgador carrega consigo).
No processo judicial, inúmeras são as decisões em que a fundamentação utilizada pelo julgador evidencia a contaminação do mesmo pelos estereótipos de gênero. Em suas fundamentações, muitos se baseiam em padrões de comportamentos já estabelecidos, baseados no padrão masculino de dominação.
No crime de estupro, a situação é ainda mais evidente. Expliquemos. O estupro, por ser um crime praticado geralmente na clandestinidade (sem testemunhas oculares/presenciais do fato) faz com que os magistrados deem mais valor à palavra da vítima e a vida pregressa dos envolvidos. Em função disso, os julgadores frequentemente se utilizam dos estereótipos de gênero baseados na “moralidade” e na “honestidade” dos envolvidos para formarem seus juízos de valor.
A análise da credibilidade dos depoimentos prestados perpassa por questões morais. Os julgadores se baseiam no estereótipo da “mulher honesta” (expressão esta que foi expurgada em 2005 do Código Penal) para verificarem a ocorrência ou não do crime. Vale ressaltar ainda que o processo judicial nos casos de estupro, por si só, ocasiona prejuízos imensuráveis para as vítimas, que, além de serem rotuladas, sofrem pela vitimização secundária que o processo judicial proporciona.
Rossi (2015) diz que, nos casos de estupro, a justiça penal se baseia na lógica da honestidade da mulher do ponto de vista da moral sexual dominante. Assim sendo, as mulheres que não se adequam a esse padrão imposto pelo patriarcado não terão seus depoimentos valorados de forma correta.
Assim, a existência do estupro só irá ganhar plausibilidade quando os envolvidos se enquadrarem a certa moral sexual que é definida por condutas e atributos específicos de cada sexo. Desta forma, no julgamento, serão escolhidos fatos da vida de cada um dos protagonistas de maneira a enquadrá-los em estereótipos opostos: vítima x pretensa vítima e estuprador x acusado incapaz de cometer um estupro (ROSSI, 2015, p. 51) (destacamos)
Ora, ainda hoje ditados populares como “ela instigou“, “ela pediu por isso“, “ela provocou o acusado“, são muitos utilizados para atenuar a culpa do réu e até mesmo para atribuir culpa integral à mulher (é o que muitos chamam de cultura do estupro, que será abordada em artigo específico).
A “garota problema” pode ser aquela que possui vasta experiência sexual para a sua idade, a usuária de drogas, a que se insinua para os homens ou a que realiza programas, apresentando um comportamento que é tido como socialmente inadequado. Trata-se de um estereótipo de gênero, uma vez que um adolescente do sexo masculino não será visto como um “garoto problema” em virtude de seu comportamento sexual, pois um dos ideais de masculinidade dos adolescentes é justamente o de ter o maior número de relações sexuais possível e com o maior número de parceiras possível.
Ao se analisar as decisões judiciais relativas ao crime de estupro, se percebe que há um processo de culpabilização da vítima através dos estereótipos de gênero. Quando a vítima foge do padrão que lhe é imposto, ou seja, quando a vítima não possui os atributos que se espera que ela tenha, os julgadores, contaminados pelos estereótipos socialmente construídos, tendem a não valorar adequadamente o caso concreto.
Em um dos acórdãos trazido à tona por Rossi (2015), (Embargos Infringentes n. 2012.014223-3/TJSC), o fato da vítima não ser mais virgem e de ter tido relações sexuais na noite anterior foi determinante para que o seu depoimento fosse considerado não credível e o acusado absolvido.
Nota-se, portanto, que a virgindade, a honestidade, as roupas usadas, tudo isso acaba influenciando na decisão judicial. O estereótipo da mulher recatada e do lar ainda é o padrão de comportamento que o julgador espera das mulheres brasileiras.
Por fim, vale ressaltar que nos próximos textos continuaremos a abordar essa temática, analisando, especificamente, um caso de homicídio conjugal, ocorrido em Portugal, em que a análise dos estereótipos de gênero se faz imprescindível, para que se demonstre que o sistema patriarcal não é algo doméstico, mas sim global (e em Portugal a situação talvez seja até mais crítica em virtude do índice preocupante de violência doméstica no País).
REFERÊNCIAS
BAKER, Milena Gordon. A tutela da mulher no direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
BELEZA, Teresa Pizarro. Direito das mulheres e da igualdade social : a construção jurídica das relações de género. [Coimbra] : Almedina, 2010.
CALHEIROS, Clara. Género e igualdade: há um futuro para o feminismo? In: Scientia Ivridica, Braga, t. 62 n.333 (Set.-Dez.2013), p.487-503.
CARLOS, Paula Pinhal de. A reprodução das desigualdades de gênero no discurso dos julgadores e a vítima mulher frente ao sistema de justiça penal. Disponível aqui. Acesso em: 30 Jul. 2018.
MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified: Discourses on life and law. Cambridge: Harvard University Press, 1987.
ROSSI, Giovanna. Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica: análise do discurso judicial no crime de estupro. Florianópolis: Pontifícia Universidade Federal de Santa Catarina, 2015, Monografia. Disponível aqui. Acesso em: 30 Jul. 2018.
SOUSA, Rita Mota. Introdução às teorias feministas do direito. Porto: Edições Afrontamento, 2015.
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