Em sua nova coluna, a filósofa e ativista reflete sobre a força das mulheres negras e suas representações
Há muitos anos, feministas negras brasileiras discutem as diferenças do “ser mulher”. Em oposição à universalização do feminismo, promovida por mulheres brancas, feministas negras discorrem a partir da condição de gênero e da perspectiva decolonial, antirracista.
No artigo O poder feminino no culto aos orixás, Sueli Carneiro e Cristiane Abdon Cury analisam a figura da mulher na mitologia africana reproduzida nos terreiros de candomblé, os arquétipos das orixás e as diferenças sociais quanto às relações de gênero. As autoras explicam a tradição da visão das mulheres como bruxas, é evidente que num sentido em tudo contrário ao historicamente atribuído pela civilização ocidental.
No artigo O poder feminino no culto aos orixás, Sueli Carneiro e Cristiane Abdon Cury analisam a figura da mulher na mitologia africana reproduzida nos terreiros de candomblé, os arquétipos das orixás e as diferenças sociais quanto às relações de gênero. As autoras explicam a tradição da visão das mulheres como bruxas, é evidente que num sentido em tudo contrário ao historicamente atribuído pela civilização ocidental.
As grandes feiticeiras estão, sim, na religião, mas podemos perceber sua representação nas avós, nas mães que muito viveram, seja em estado de cólera, seja em serenidade, quando falam, e todos se calam, deixando no ar as injustiças estruturalmente postas. “Discutir, portanto, a mulher no candomblé nos remete imediatamente às figuras míticas femininas que compõem um perfil da compreensão que o sistema mítico do candomblé possui da condição feminina. As Ìyá mi, ancestrais míticas, são a máxima representação do poder feminino. Também são chamadas de Ajé, que em yorubá significa bruxa ou feiticeira.”
Dentre as Ajés, a mais temida é Ìyá mi Oxorongá. A partir dessa feiticeira, que com uma palavra amaldiçoa de morte, é possível compreender como essa representação se distancia do olhar ocidental, de identidade vitimada: “Pronunciando-se o nome desta orixá, a pessoa que estiver sentada deve se levantar, e quem estiver de pé fará uma reverência, por se tratar de uma orixá terrível a quem se deve respeito. Pássaro africano, Oxorongá emite um grito horríssono, de onde provém seu nome. O símbolo dessa orixá é a coruja dos augúrios e presságios. Ìyá mi Oxorongá é a dona da barriga, e não há quem resista a seus ebós fatais”.
Vale dizer que as representações de Ìyá mi ocorrem em seus aspectos socializados nas oxirás culturadas, como Oxum, Iansã, Iemanjá, Nanã, Obá e Ewá. Na chefia dos terreiros, há as Yalorixás, que são “depositárias e transmissoras dos conhecimentos do culto, de seus mistérios. Conhecem as formas de manipulação da natureza. Sabem manipulá-las para a solução de problemas dos indivíduos que estão sob sua guarda”, descrevem as autoras.
Nos terreiros por todo país são cultuadas também as pombagiras, entidade que atende por vários nomes, sendo um dos mais comuns Maria Padilha. Sua representação é de uma mulher livre, sensual, que ao mesmo tempo conquista e espanta qualquer homem. É a ela que se fazem oferendas para se livrar de um homem encosto (e são vários, não é, minhas queridas?). Quem for vê-la em uma das giras, vai ouvir uma das cantigas mais conhecidas “Arreda homem que aí vem mulher. Maria Padilha, rainha do Candomblé”. E ela arreda qualquer um.
No artigo “Não à intolerância religiosa! O mito Pombagira como representação da mulher livre”, Joice Berth destaca que as pombagiras “são temidas e carregam estigmas comuns aos utilizados pelo patriarcado para manter os privilégios da supremacia machista. Elas encerram em si o arquétipo da mulher livre e demonstram todo poder pessoal que é reprimido no cotidiano feminino. Podemos dizer, seguramente, que a pombagira seria a representação real da mulher, caso a supremacia branca não tivesse criado uma série de mecanismos preconceituosos que cerceiam a autonomia plena do ser feminino”. As feiticeiras de matrizes africanas são a antítese de toda negação de transcendência comportamental, política, ética que mulheres possam representar. A partir delas é possível pensar em uma prática transformadora das relações coloniais presentes até hoje.
Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política e feminista, autora dos livros O Que é Lugar de Fala e Quem Tem Medo do Feminismo Negro? (@djamilaribeiro1)
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