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domingo, 20 de outubro de 2019

Bolsonaro acerta em veto mas outros projetos colocam mulheres em risco

Veto à proposta que obrigava agentes de saúde a comunicar em até 24 horas suspeitas de violência doméstica gerou controvérsia, mas outros projetos no Congresso também representam retrocesso na conquista de direitos — e podem ser aprovados
Por Lola Ferreira*
17 DE OUTUBRO DE 2019
Há uma semana, o veto de Jair Bolsonaro ao PL 2.538/2019 causou debate nos setores engajados na agenda da violência contra as mulheres, e inicialmente gerou críticas ao presidente. O texto previa que casos com indícios de violência doméstica fossem comunicados pelas unidades de saúde aos órgãos de Segurança Pública em até 24 horas. Especialistas ouvidos pela Gênero e Número explicaram por que Bolsonaro acertou, ainda que baseado em avaliações que desqualificam as vítimas, como o parecer emitido pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Enquanto isso, outros projetos em tramitação no Congresso também colocam em risco direitos adquiridos.

Um dos principais problemas do projeto, de autoria da deputada Renata Abreu (PODE/SP), é o possível afastamento da mulher dos órgãos de saúde: “Se uma mulher chegar aqui sabendo que vai ter obrigação de denunciar, ela pode nem mesmo nos procurar”, analisa Helena Paro, médica ginecologista e obstetra e coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (Nuavida HCU/UFU). Ela também faz parte da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, que divulgou nota quando o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados.
Paro reitera argumentos da rede, como o aumento do risco de retaliação do agressor quando a denúncia é feita à revelia da vítima, e avalia que uma das características mais comuns nos crimes de violência motivada por gênero é o sentimento de culpa criado nas mulheres. Por isso, o trabalho de conscientização do profissional de saúde é exatamente fazer com que ela tenha autonomia para procurar uma delegacia de polícia, quando e caso sinta-se confortável. 


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Uma lei que obrigue o sistema de saúde a comunicar às autoridades policiais um caso de violência doméstica, portanto, contraria as diretrizes dos profissionais, incluindo o sigilo entre médico e paciente. Na avaliação de Paro, um retrocesso. 
Com o veto de Bolsonaro, fundamentado no argumento de que o projeto “contraria o interesse público”, o projeto volta para a Câmara dos Deputados. Apesar do motivo aparentemente nobre, o caminho de chegada ao veto foi tortuoso. Em nota, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que influenciou na decisão do presidente, classificou a violência doméstica como uma “vergonha” para a mulher. De acordo com o texto, o sigilo profissional, “também é garantia da mulher de que não terá sua vida privada revelada e poderá confiar na relação estabelecida, sabedora de que não será exposta à vergonha publicamente”.
Renata Abreu, entretanto, já afirmou que não medirá esforços para que o veto seja derrubado na Casa. “A legislação vigente se refere aos casos visíveis de violência, enquanto a minha proposta, na forma do substitutivo do Senado, acrescenta também os indícios de violência percebidos pelos médicos”, afirmou em nota, sem considerar os argumentos técnicos da Rede Feminista de Ginecologistas.
Abreu também alega que o caso poderá diminuir a subnotificação, apesar de já haver legislação vigente para notificação compulsória, dentro do próprio sistema de saúde, para casos de violência doméstica.

Direitos em jogo

Se o projeto de Renata Abreu gerou debate e movimentação de atores do campo de combate à violência de gênero, propostas semelhantes também tramitam na Câmara dos Deputados.
PL 10025/2018 propõe que “as pessoas físicas e as entidades, públicas e privadas, prestadoras de serviços de saúde deverão notificar a ocorrência de ato violento contra a mulher à autoridade policial mais próxima do estabelecimento hospitalar ou ao Ministério Público, mediante o encaminhamento de cópia de ficha de notificação no prazo máximo de 5 (cinco) dias do atendimento”.
O projeto está desde 6 de agosto na mesa da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, mas já foi aprovado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher.
Para Gabriela Biazi, advogada e gestora da Rede Feminista de Juristas, a intenção de sempre levar para o campo da punição os casos de violência doméstica pode interferir na criação de políticas públicas que sejam efetivas para as mulheres: “A resposta penal é limitada e a mulher pode ser vitimizada novamente. Não adianta o médico comunicar e a mulher ser maltratada na delegacia. Temos que qualificar as políticas públicas e dar instrumentos para que a mulher saia do ciclo de violência, sem a fé cega de que somente a denúncia resolve o problema delas”. 
A fala de Biazi conversa com relatos de mulheres que, quando procuram a delegacia de polícia, são desencorajadas a prosseguir com as denúncias, por “falta de provas”, por exemplo.
No campo da retirada dos direitos de pessoas LGBT+, o deputado Heitor Freire (PSL/CE) apresentou o PL 3419/2019, com a proposta de impedir cirurgias de redesignação sexual e qualquer tratamento hormonal em pessoas transgênero menores de 21 anos. O texto prevê punição aos responsáveis e profissionais de saúde que fizerem o procedimento. Na justificativa, Freire argumenta que a “ideologia de gênero” impõe a identidade de gênero às pessoas. A idade apontada pelo parlamentar é a mesma definida pelo Conselho Federal de Medicina na resolução que estabelece as diretrizes das cirurgias, estabelecida em 2010. 
Já no campo dos direitos reprodutivos, o PL 3.415/2019, de Filipe Barros (PSL/PR) endurece a criminalização da interrupção da gravidez, alterando a pena para venda de remédios abortivos. Com ares de correta, já que os remédios causadores de aborto são de fato proibidos, a justificativa chama a atenção. O parlamentar argumenta que o aumento da pena para a venda de remédios ilegais que provoquem aborto, e não para todos os outros remédios proibidos no país, se dá porque o procedimento é “a execução premeditada de uma vida humana em gestação”. Barros também diz que gestantes que abortam “matam seus filhos” e expressa a esperança de que o aumento de pena diminua o número de abortos no Brasil.
No Senado, o PL 3.406/2019, Eduardo Girão (PODE/CE) propôs “normas de proteção à Gestante e à Criança por Nascer”, afirmando que uma criança será assim definida desde o momento da concepção. O texto, portanto, entra em conflito com os casos de interrupção da gravidez permitidos no Brasil (estupro, fetos anencefálos e risco de vida para a gestante) e usa o argumento corriqueiro de setores contrários à legalização do aborto de que “a vida começa a partir da concepção”.
O artigo 12 do projeto de Girão abre brechas para impedir aborto em casos de estupro, ao afirmar que “é vedado ao Estado ou a particulares causarem danos a criança por nascer em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores”. No artigo seguinte, o parlamentar explica: a criança fruto de estupro deverá ter acompanhamento psicológico e poderá ser encaminhada à adoção, caso a gestante queira. De acordo com o senador, o estatuto proposto nesse projeto garante também que o Estado arque com todos os custos de gestação e criação, até a criança ser adotada ou passar a receber pensão alimentícia do progenitor. 
O projeto está na Comissão de Assuntos Sociais, aguardando o relatório da senadora Juiza Selma (PSL/MT). Selma também foi a relatora da “PEC da Vida” e, na ocasião, no seu parecer, argumentou que “cada vez mais amplia-se a consciência, em âmbito internacional, do valor e da dignidade da vida humana, que deve ser protegida desde o primeiro instante, desde a concepção”.
Gabriela Biazi, da Rede Feminista de Juristas, comentou que vetos como o que movimentou o debate de gênero nesta semana não podem fazer com que sejam ignorados outros projetos tão perigosos quanto: “Não acho que [o veto] levou os direitos humanos das mulheres em consideração. Temos que ficar alerta”.
*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

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