A promotora de justiça Silvia Chakian fala sobre as representações construídas sobre as mulheres desde a era das bruxas que estão orientando a forma como elas são ouvidas e (des)acreditadas
Foi no final do século 14, quando movimentos heterodoxos ameaçavam o poder da Igreja e crescia a preocupação com o acesso das mulheres a artes, vida social, práticas sexuais e controle da função reprodutiva, que se construiu o discurso criminológico mais poderoso já direcionado a elas: o mito da mulher satânica. A “caça às bruxas” representou uma estratégia bem articulada pelas classes dominantes. Para a escritora Rose Marie Muraro, “os inquisidores tiveram a sabedoria de ligar a transgressão sexual à transgressão da fé, punindo as mulheres por tudo isso”.
Para tanto, sedimentou-se a crença da existência de uma seita de feitiçaria e culto ao demônio mais ligada às mulheres, porque satanás se dirigiria preferencialmente a elas. Justificava o famoso manual de inquisidores denominado O Martelo das Feiticeiras que as mulheres seriam mais inclinadas à tentação, por causa de sua luxúria insaciável, sendo mais crédulas que os homens, além de muito faladoras, motivo pelo qual não conseguiriam deixar de transmitir os conhecimentos da magia. A perversão também seria um atributo feminino, fruto de sua debilidade intelectual e moral.Salvar
Para tanto, sedimentou-se a crença da existência de uma seita de feitiçaria e culto ao demônio mais ligada às mulheres, porque satanás se dirigiria preferencialmente a elas. Justificava o famoso manual de inquisidores denominado O Martelo das Feiticeiras que as mulheres seriam mais inclinadas à tentação, por causa de sua luxúria insaciável, sendo mais crédulas que os homens, além de muito faladoras, motivo pelo qual não conseguiriam deixar de transmitir os conhecimentos da magia. A perversão também seria um atributo feminino, fruto de sua debilidade intelectual e moral.Salvar
Disseminado no imaginário comum que as bruxas seriam responsáveis por desastres naturais, epidemias e até esterilidade, legitimavam-se torturas, execuções em fogueiras e perseguições, prioritariamente de camponesas, velhas, mendigas, parteiras, aquelas que evitavam a maternidade, adúlteras, prostitutas, viúvas ou que viviam sozinhas. Afinal de contas, a liberdade que ostentavam era uma ameaça à estabilidade social. Os quatro séculos de terror permitiram a construção de uma nova ordem patriarcal, ainda mais opressora em relação às mulheres, verdadeira política institucionalizada de apropriação e controle de seus corpos, que impôs um modelo de comportamento feminino pautado em silenciamento, recato e obediência.
E a degradação da imagem da mulher na sociedade daquela época tem reflexos até hoje. Mesmo com o abandono do mito da feiticeira, no final do século 17, as mulheres permaneceram associadas à ideia de criaturas perigosas, descontroladas, interesseiras, vingativas e promíscuas, noção que repercute diretamente, dentre outras consequências, na falta de credibilidade de sua palavra. Não por outra razão, são as mulheres as mais questionadas e recebidas com desconfiança quando relatam terem sido vítimas de violência física, psicológica, patrimonial, moral e, principalmente, sexual.
Ao analisar esse período das inquisições, a filósofa Silvia Federici destaca que nos julgamentos por “bruxaria” a má reputação era prova de culpa. Nada mais atual, porque à desconfiança que recai sobre a palavra da mulher vítima de violência sexual, soma-se a imposição de que ela corresponda a padrões de recato. Prova disso são os questionamentos sobre seu comportamento, sua roupa, seu consumo de álcool ou o fato de estar sozinha em determinado local. Realidade até mais tormentosa quando há intersecção dos marcadores de raça, classe e orientação sexual não hegemônicos, o que pode significar descrédito ainda maior.
Portanto, são as representações construídas sobre as mulheres desde a era das bruxas que estão orientando a forma como elas são ouvidas e (des)acreditadas. O mito atual é o da mulher mentirosa. A mulher satânica foi, na verdade, temida por sua liberdade, seu conhecimento e seus desejos de emancipação. Nesse ponto, somos (e queremos ser) todas bruxas. Mas não podemos aceitar o legado de desconfiança, que impõe credibilidade menor da nossa palavra, pelo simples fato de sermos mulheres. Caso contrário, mesmo com o avanço na conquista de nossos direitos, o tratamento a nós reservado continuará sendo tão desumano e degradante quanto o da Idade Média.
"Portanto, são as representações construídas sobre as mulheres desde a era das bruxas que estão orientando a forma como elas são ouvidas e (des)acreditadas"Silvia Chakian
Silvia Chakian é promotora de justiça, mestre em Direito Penal e autora do livro A Construção dos Direitos das Mulheres (@silvinhachakian)
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