Por Camila Ferraz Ramos Guimarães e Gustavo Roberto Costa
Segunda-feira, 28 de outubro de 2019
Feministas, hoje pedimos licença para fazer um alerta. Para tentar mostrar que o apelo ao sistema de justiça criminal para resolver e fazer cessar as formas de violência não é e nunca será a solução dos problemas enfrentados pelas mulheres.
A criminalização das opressões parece um avanço; um reconhecimento das necessidades de determinados grupos. Gera um sentimento de visibilidade. O uso do sistema criminal como aliado de lutas identitárias, todavia, é um equívoco; é a mais absoluta contradição.
A criminalização das opressões parece um avanço; um reconhecimento das necessidades de determinados grupos. Gera um sentimento de visibilidade. O uso do sistema criminal como aliado de lutas identitárias, todavia, é um equívoco; é a mais absoluta contradição.
O direito penal não é mocinho; é um anti-herói, com sérias deturpações. Não possui vocação heroica, não realiza justiça, pune por motivos egoístas, pessoais; por vingança. Elegê-lo como estratégia para evitar e fazer cessar as mais diversas formas de violência é legitimar um sistema de poder e opressão, que nada mais faz que produzir e reproduzir dor e sofrimento.
Ao defender a criminalização de condutas que atentem contra o “gênero” feminino (assim como a outras pautas), estende-se um tapete vermelho para o direito penal – que é essencialmente patriarcal – passar.
As leis são criadas e aprovadas, em sua grande maioria, por homens. É por meio deles que o direito penal e seu elemento estruturante, o poder punitivo, foi criado e é mantido.
O poder punitivo foi inicialmente pensado a partir da morte, como direito de fazer morrer e deixar viver, sendo, por isso, um poder de homens[1]. Beauvoir já afirmava que o grande infortúnio da mulher foi estar excluída das expedições guerreiras, quando se consolidou o “fazer morrer” como um poder essencial do ser dominante; um poder masculino.
O conceito “antigo” de mulher honesta demonstra bem quem eram os detentores do poder de legislar. E embora essa discriminação moral não seja mais explícita, ela persiste, causando ainda mais sofrimento e humilhação para mulheres vítimas de violência de gênero (seja dentro de casa, seja fora dela).
Nosso modelo punitivo de resolução de conflitos tem como característica principal o confisco da vítima[2], permitindo ao Estado que tome o seu lugar e tenha maior poder de intervenção. Logo, percebe-se que é uma decisão imposta de modo vertical, hierárquica. Deixa-se, então, nas mãos de pessoas que desconhecem por completo a mulher e sua história a decisão sobre sua vida.
Na linha do que afirmam os autores da criminologia crítica, a imposição de uma pena nada mais é do que a manifestação de um poder, cujo objetivo é reafirmar e manter determinados interesses, de determinadas pessoas[3]. Foi Pachukanis quem demonstrou, expondo o caráter puramente ideológico do direito, que o direito penal (cuja origem é a vingança privada) funciona como um meio “eficiente de manutenção da disciplina social, ou seja, do domínio de classe”[4].
Socorrer-se do direito penal e apostar na sua resolutividade para violências de gênero é fortificar essa sua função, criminalizando e aprisionando os mesmos vulneráveis de sempre, aqueles que estão dentro das penitenciárias e enquadram-se nos estereótipos próprios da seletividade da justiça criminal.
Aceitar a punição como alternativa para proteger mulheres e minorias é validar os mecanismos seletivos, destinados unicamente a instituir e manter uma ordem de desigualdade social. Seletividade, reprodução de violência e segregação, afirma Zaffaroni, não são características conjunturais, mas sim estruturais, do sistema penal[5].
Conceber o direito penal como meio de resolução de conflitos é concordar com um sistema seletivo; é fortalecer uma estrutura que condena diariamente mulheres em situação de extrema vulnerabilidade; mulheres que vivem em comunidades e estão à mercê da violência policial; mulheres periféricas, geralmente negras, que morrem, por exemplo, após a escolha de não querer gerar um filho, perdendo a vida por motivos desconhecidos da mulher de classe média.
Defender o direito penal é defender a opressão dirigida àquela mulher que nunca teve oportunidade, que precisa sustentar quatro, cinco, seis filhos, e enxerga no tráfico a única alternativa de subsistência. E assim milhares de crianças passam a viver sem as suas mães (em entidades de acolhimento e abandonadas) – o que acham desse belo resultado do punitivismo?
Defender o direito penal é excluir mulheres negras e pobres, difundindo assim um discurso elitista, não abrigado pela luta feminista interseccional.
Defender que se criminalizem condutas que afetam mulheres oprimidas e outras minorias em situação de vulnerabilidade é dar força a um sistema misógino e patriarcal, em grande parte responsável pela intolerável exclusão social que vivenciamos.
A promessa de pacificação social pregada pelo direito penal é falaciosa. Sua aplicação só contribui para mascarar as verdadeiras causas da violência. O direito penal não só oculta as estruturas desiguais e opressoras como impede que sejam adotadas políticas mais eficazes – como a justiça restaurativa – no trato da questão[6].
A falsa sensação de resolução de problemas sociais gerada a partir da imposição da pena criminal incentiva a perspectiva de que violências de gênero e outras acontecem em virtude de desvios pessoais, deixando encobertas e intocadas as distorções estruturais que os alimentam[7].
Confiar no direito penal é tapar os olhos para as mortes desenfreadas nas comunidades, justificadas pela “guerra às drogas”; é compactuar com sofrimentos, danos e dores à população esquecida. Deixar que o direito penal se perpetue é atestar conformação com todo esse sistema inconstitucional e ter, sim, as mãos sujas de sangue.
Ser mulher, feminista e prezar pela verdadeira justiça social é repudiar o discurso punitivista. O poder das mulheres e a superação dos ciclos de violência sofridos por muitas somente podem ser alcançados com o avanço do processo civilizatório; com a união de todas e todos (esse é o nosso dever). Não é o Estado burguês, capitalista e opressor que vai trazer proteção a vítimas de violência.
Feministas do meu Brasil, uni-vos.
Camila Ferraz Ramos Guimarães é Analista Jurídica do Ministério Público do Estado de São Paulo. Pós-Graduada pelo Instituto de Direito Constitucional Contemporâneo e graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, campus Londrina.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo Transforma MP e da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Associado do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
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