Obra da intelectual, expoente do feminismo negro e do movimento pelos direitos civis, chega às livrarias brasileiras 45 anos após sua publicação nos Estados Unidos
RIO - Expoente do feminismo interseccional — que aborda questões de raça, classe e gênero na luta por igualdade —, a intelectual e ativista Angela Davis tem agora sua autobiografia (Boitempo) nas prateleiras de livrarias do Brasil pela primeira vez. Lançado em 1974 nos Estados Unidos, o livro conta a infância da ativista, sua formação política e sua participação na campanha do movimento negro por direitos civis na década de 1970.
A historiadora Raquel Barreto, especialista em Angela Davis e Lélia Gonzalez e pesquisadora do Partido dos Panteras Negras, assina o prefácio do livro. Para ela, a história de vida de Davis é importante para entender o contexto histórico dos Estados Unidos que influencia sua obra.
A historiadora Raquel Barreto, especialista em Angela Davis e Lélia Gonzalez e pesquisadora do Partido dos Panteras Negras, assina o prefácio do livro. Para ela, a história de vida de Davis é importante para entender o contexto histórico dos Estados Unidos que influencia sua obra.
— Essa autobiografia continua muito relevante. Apesar de ter sido lançada em 1974, o contexto histórico em que a Angela Davis se desenvolve, em meio ao movimento black power , das lutas de libertação nacional, do movimento feminista, inaugura problematizações que continuam tendo efeito hoje. Há na obra a formulação teórica de duas questões muito importantes: o que hoje se chama de feminismo negro, e a Angela Davis é uma das gêneses disso, e a crítica à questão do encarceramento, que é um pensamento que no Brasil tem ganhado cada vez mais destaque.
“Se precisássemos ir ao banheiro ou quiséssemos um copo de água, tínhamos de procurar o cartaz com a inscrição 'de cor'. A maioria das crianças negras do Sul da minha geração aprendeu a ler as palavras 'de cor' muito antes de aprender o abecedário.”
Angela Davis foi presa em outubro de 1970 acusada dos crimes de sequestro, assassinato e conspiração. A campanha pela sua liberdade teve repercussão internacional com ações do Comitê Nacional Unificado pela libertação de Angela Davis e participação intensa do Partido Comunista, do qual era afiliada. Por causa de sua posição política, ela chegou a ser proibida de lecionar na Universidade da Califórnia, onde era professora. Sua autobiografia revela momentos de racismo vivido e presenciado pela autora desde sua infância até a juventude na efervescência dos movimentos negros pelos direitos civis e o seu julgamento.
— O que eu acho interessante é que, apesar de ela ser uma jovem negra com uma trajetória muito excepcional do ponto de vista intelectual, cultural e político, o que a difere da maioria da população negra e de outras mulheres negras do período dela, Angela Davis não foi isenta de perseguição estatal. Ela teve contato direto com Herbert Marcuse e fez intercâmbio na França e na Alemanha, mas sofreu a mesma perseguição que outros sujeitos negros sem todas essas oportunidades — afirma Raquel.
Anielle Franco, irmã de Marielle Franco e professora, foi convidada para escrever a orelha do livro, que é uma homenagem à vereadora assassinada em março de 2018.
— A esposa da Angela (Davis) e a própria Angela já tinham adiantado que talvez esse convite acontecesse. Desde que mataram a minha irmã, ela tem citado muito a Marielle nos discursos dela. Eu não sei como isso chegou até a editora, mas quando a gente esteve no Encontro Nacional (de Mulheres Negras) ano passado, ela falou que estavam preparando a tradução e que poderia rolar alguma coisa, mas eu não sabia como seria essa colaboração.
Para ela, uma das lições mais importante da trajetória de Angela Davis está no fato de ela não ter desistido:
— De tudo que a Angela Davis passou, essa é uma das coisas mais importantes. Não desistir de provar sua inocência, porque ela sabia de que lado ela estava, de lutar por aquelas pessoas, que é uma coisa que a Marielle também falava. Não desistir de provar que ela estava ali por uma causa — afirma Anielle.
Após sua prisão, Davis assumiu como bandeira de luta a campanha abolicionista contra o encarceramento em massa da população negra nos Estados Unidos. Seu compromisso com a transformação social coletiva é, de acordo com a historiadora Raquel Barreto, um de seus maiores legados.
“Prisões e penitenciárias são desenhadas para subjugar seres humanos, para converter sua população em espécimes de zoológico — obedientes a nossas tratadoras, mas perigosas umas para as outras.”
— A negação de qualquer estrelismo sobre sua pessoa e a aposta em um projeto que se baseia em experiências coletivas são partes desse legado. Além disso, a relação muito forte com uma formação teórica consolidada que marca toda sua agenda como intelectual e ativista. Os temas da militância política de Angela Davis formaram sua pesquisa e sua produção. O encarceramento e o feminismo são questões que atravessam a práxis dela como militante e a sua produção intelectual.
Referência teórica do feminismo interseccional
Para Raquel Barreto, a autobiografia é uma oportunidade de desmitificar as relações de Angela Davis com o Partido dos Panteras Negras, movimento ao qual constantemente aparece vinculada – fruto da campanha e dos esforços da polícia americana pela sua captura —, mas no qual teve uma breve passagem.
— Não é propriamente correto associá-la aos Panteras Negras. Essa obra é uma oportunidade para o leitor brasileiro conhecer um contexto histórico sobre o qual a gente tem pouca ou nenhuma informação. — afirma a pesquisadora.
“O racismo é, em primeiro lugar, uma arma usada pelas pessoas abastadas para elevar os lucros obtidos – ao pagar menos pelo trabalho do operariado negro.”
Angela Davis é uma das maiores expoentes e referências teóricas do feminismo interseccional, como conta a pesquisadora.
— Desde os anos 1970, Angela Davis é essa imagem icônica que representa o sentido da liberdade negra, da luta política negra e para muitas pessoas ela se transformou no símbolo do black power . Mas, para além do simbolismo dela, está a sua importância como teórica do que hoje se chama de interseccionalidade: a ideia de que é preciso entender tanto a teoria como a prática a partir não só de um eixo: não é só raça, não é só classe, não é só gênero; são essas coisas em conjunto.
Racismo epistêmico e busca por autoras negras
As obras de Angela Davis têm chegado ao mercado editorial brasileiro na última década. Para Raquel Barreto, a demora em traduzir a autora é um sintoma do racismo epistémico.
— É muito recente o esforço do mercado editorial brasileiro em olhar a autoria negra. Tanto do ponto de vista das produções teóricas quanto literárias. O fato de autores negros não serem publicados é fruto do que a gente chama de racismo epistêmico, ou seja, é um apagamento. Isso é uma das consequências do racismo estrutural: ignora-se a produção intelectual de homens e mulheres negras, o que significa que o conhecimento produzido por eles não é levado em conta.
Para Raquel, o movimento recente de busca por autores e autoras negras é consequência das políticas de ações afirmativas:
— O número maior de publicações de pensadores negros mantém relação com a política de ações afirmativas no Brasil que criou a demanda por novas referências teóricas e mostrou que até então o conhecimento produzido nas universidades brasileiras não contemplava um conjunto de autores com características muito específicas.
Professora, Anielle Franco também nota maior busca por referências de autoras negras em sala de aula.
— Desde que os livros dela têm sido lançados aqui no Brasil, Angela Davis virou uma popstar . Acho que é um movimento que está aumentando muito. É uma luta longa, árdua, e acho que está só crescendo. Tenho alunas adolescentes que, hoje, me pedem referências de autoras feministas e autoras negras.
Para Raquel Barreto, a obra de Angela Davis no formato autobiográfico tem ainda mais importância porque há poucos textos do tipo escrito por mulheres negras.
— Hoje, ela é uma referência importante por tudo que representa. Angela Davis continua sendo uma pessoa que forma e informa outras gerações de mulheres negras, e de pessoas que têm algum interesse sobre o que ela produz. Outra questão importante sobre este livro é que temos poucos textos autobiográficos de mulheres negras, poucas narrativas em que elas refletem sobre si, produzem uma narrativa acerca de si mesma e lançam uma interpretação sobre o mundo. — afirma a historiadora.
Segundo Anielle Franco, também é importante facilitar o acesso a este tipo de obra:
— Eu acho enorme a importância dessa referência, e, dependendo de onde vivem essas adolescentes negras, como as minhas alunas, elas acabam não tendo nem acesso a essas obras. Ela têm direito à essa formação. É uma geração que se impõe, que não abaixa a cabeça, que sabe que precisa se impor e estudar. Acho que é um movimento que não vai parar de crescer e tem uma importância teórica e de formação, de dizer que “se ela conseguiu, eu também consigo”. É de extrema importância.
*Estagiária sob supervisão de Renata Izaal
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