História de Joana, que caiu nos trilhos da estação Coelho da Rocha (RJ), levou à criação da CPI dos Transportes e à publicação do livro 'Não foi em vão', que terá lançamento neste sábado
Teresa Cristina olha um grafite com a imagem da filha, Joana, atropelada por um trem em 2017 Foto: Arte sobre foto de Larissa Amorim/Casa Fluminense |
RIO - Era 24 de abril de 2017. O relógio marcava por volta das 10h30. A caminho da faculdade, Joana Bonifácio tentava embarcar em um trem na estação Coelho da Rocha — na Baixada Fluminense —, quando prendeu o pé na porta, teve o corpo arrastado por mais de 20 metros pela partida da composição, caiu no vão com a plataforma e foi atropelada.
Aos 19 anos, a jovem ficou por mais de oito horas nos trilhos sem que sua família fosse avisada, até que a irmã de apenas 13 anos se deparou com uma foto dela já morta em uma rede social, com o boato de que se trataria de um suicídio.
Aos 19 anos, a jovem ficou por mais de oito horas nos trilhos sem que sua família fosse avisada, até que a irmã de apenas 13 anos se deparou com uma foto dela já morta em uma rede social, com o boato de que se trataria de um suicídio.
Joana era a segunda da família a entrar no ensino superior. Era negra e pobre.
A história guarda muitas similaridades com 66 outros atropelamentos fatais que ocorreram nos trens do Rio ao longo de 2017. Isto é, 66 foram os notificados. A morte de Joana, no entanto, nem sequer aparece na lista, o que indica existir grande subnotificação.
Capa do livro "Não foi em vão: mobilidade, desigualdade e segurança nos trens metropolitanos do Rio", que será lançado neste sábado, dia 19, no Fórum Rio 2030, em Santa Cruz. O evento é organizado pela Casa Fluminense Foto: Divulgação |
O caso motivou a elaboração do livro "Não foi em vão: mobilidade, desigualdade e segurança nos trens metropolitanos do Rio", escrito pela prima de Joana, Rafaela Albergaria.
Após a tragédia na família, ela começou a pesquisar as histórias por trás das mortes no sistema ferroviário entre 2008 e 2018, e as barreiras que envolvem desigualdade e racismo na prestação desse serviço. No livro, Rafaela conclui que, se é recorrente, não é acidente.
— A mãe da minha prima se questionava muito: "O que eu fiz para isso acontecer com a minha filha?". A minha tia não pôde estudar quando jovem e sempre depositou muita esperança na Joana. Era um sonho para ela. Mas eu rebatia logo: "Tia, você acha mesmo que Deus só ia matar preto e favelado? Não é Deus". É negligência, é o tratamento de negros como cidadãos de segunda classe, é o genocídio da população negra.
O lançamento do livro será neste sábado, dia 19, no Fórum Rio 2030, em Santa Cruz. O evento é organizado pela Casa Fluminense, uma associação de ativistas criada em 2013 com o objetivo de diminuir as desigualdades na Região Metropolitana.
Papel de Marielle Franco
Rafaela lembra que, logo que a tragédia aconteceu, ela entrou em contato com a então vereadora Marielle Franco, para pedir ajuda para levar o tema até a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). As duas se conheciam de projetos sociais.
— A Marielle foi a primeira pessoa que eu procurei. Depois do enterro da minha prima, eu cheguei em casa e liguei para ela, porque eu sabia que, para ela, eu não ia precisar me esforçar para convencer que minha prima foi morta em última instância pelo racismo. Eu sabia que ela seria uma pessoa que entenderia facilmente quando eu dizia que o transporte em Coelho da Rocha é muito diferente do transporte que circula pelo Leblon. Ela me deu muito suporte — destaca.
A história de Joana gerou, então, a CPI dos Transportes na Alerj, que teve conclusão no final de 2018.
Serviu como base também para a pesquisa de Rafaela, que resultou em seu livro, mapeando o número de mortes por atropelamentos na malha ferroviária do Rio, as circunstâncias das mortes, a reação da concessionária etc. De 2008 até 2016, a média de óbitos notificados foi 30. Em 2017, quando houve maior pressão sobre o tema, devido á morte de Joana e à CPI, o número de notificações saltou para 66. E em 2018, foram registradas 83.
— Eu fiz esse percurso de Coelho da Rocha até a Urca por nove anos, e sempre vi pessoas se machucando. Quase todos os dias. Vi que era um fato social — conta Rafaela, que é formada em Serviço Social. — O que eu espero é que meus filhos cheguem à universidade e que eles não morram no caminho.
A jovem explica que fez a ecolha de discutir no livro somente as mortes por atropelamento — "porque se tratava de minha prima, é algo que me toca, que corta minha carne" —, mas, em sua pesquisa, ela se deparou com dados e histórias de muitos outros tipos de morte nas plataformas e nos trens: em decorrência de estupro, violência doméstica, mortes por auto de resistência.
Rafaela destaca o quanto a falta de segurança se estende ao risco de estupro: a saída da estação Vila Rosali, do ramal de Belford Roxo, por exemplo, dá dentro de um cemitério. A jovem conta que inúmeros estupros já aconteceram ali.
— Hoje já existe uma regra não escrita: as mulheres não usam essa saída depois das 18h. Isso é assustador, mas a gente acaba naturalizando esse tipo de situação, que dificilmente seria vista com tanta passividade pelo poder público se fosse em uma saída de metrô na Zona Sul — lamenta ela.
Trauma: mãe não consegue mais entrar em trens
Desde o atropelamento de Joana, sua mãe, Teresa Cristina Bonifácio Gouveia, nunca mais conseguiu entrar em um trem.
— Não consigo, de jeito nenhum. Peguei trauma, me faz mal — conta ela.
Ela, que segue morando em Coelho da Rocha, leva entre três e quatro horas — pegando cerca de três conduções, entre ônibus e metrô — apenas para chegar ao seu trabalho, no Jardim Botânico, bairro de elite da Zona Sul carioca.
Para Teresa, o livro "Não foi em vão" vai contribuir para evitar outras tragédias.
— Espero que conscientize as próprias pessoas que moram na Baixada de que os meios de transporte que temos aqui são indignos. Às vezes, as pessoas já estão acostumadas com tão pouco que nem sequer reclamam mais. Mas é importante saber que devemos lutar pelos nossos direitos, por um mínimo de dignidade.
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