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domingo, 13 de outubro de 2019

A arte imitando a vida: por que o filme Joker desconcertou o público?


O roteiro de Todd Phillips e Scott Silver transcorre no alvorecer da década de 80. Bruce Wayne é um garoto, filho do bilionário candidato a prefeito Thomas Wayne, e Arthur Fleck, interpretado por Joaquim Phoenix, é um palhaço que divide sua rotina entre cuidar da mãe debilitada e a profissão de comediante.
Portador de distúrbios mentais – expressos na forma de uma risada desvairada –, que se agravam conforme sua carreira naufraga, sua mãe adoece, sua vizinha se apieda e um apresentador de TV faz chacota de sua imagem, Fleck contabiliza desamor, episódios traumáticos e a absoluta ausência de compaixão no mundo.

Conforme se afoga na loucura, ascendendo ao personagem Coringa, Arthur alia-se ao próprio medo empilhando cabeças esmagadas e pessoas alvejadas. A cada morte que soma, nesse País das Maravilhas gótico que é Gotham City, o Coringa se afeiçoa com a violência que aparente possui aversão, e evolui para vingar todos os arlequins do mundo, emprestando choro de pierrô a toda a Gotham e ao pequeno Bruce.
No desenrolar da trama, a guerra do bem contra o mal – cujos papéis estão bem definidos no imaginário popular – desvela no vilão e arqui-inimigo do Batman um homem sofrido e negligenciado pelo aparelho estatal. O desequilíbrio se apodera do ser na medida em que se afasta dos cuidados médicos, dando força à criação do “gênio do crime”. Conforme as gargalhadas exibem uma dor tão implícita e uma vergonha tão poderosa, o personagem sombrio, de personalidade essencialmente violenta, vai angariando do expectador uma empatia desconcertante. 
Enquanto a boca de Arthur sorri, seus olhos só passam tristeza. As danças expansivas do mensageiro das trevas retratam homens socialmente marginalizados, na ânsia de que a morte valha mais centavos do que a vida.
A sensação maniqueísta de julgamento raso é esfacelada pelo texto como um trem desgovernado. Trata-se, afinal, de um cordeiro em pele de lobo? Ora, talvez os mocinhos lutem pelo mal disfarçado e, em contrapartida, as máscaras dos bandidos podem esconder motivos nobres não revelados.
Sobrevém a exposição das formas de relacionamento afetivo contemporâneas, entorpecidas na alteridade digital, deslegitimando patrulhas moralizantes e coroando uma narrativa que atravessa a fábula para construir uma caricatura de nossa falência ética. Constrói-se um picadeiro no qual o mestre de cerimônias é o Coringa, a síntese das nossas irretrocedíveis improbabilidades, uma celebração do descontrole que dá lugar ao mal, mas quem paga o preço são os “monstros”.
Num circo que renasce nas cinzas da moral, na fogueira de uma ética que arde, ao ilustrar genuínas emoções de um doente mental, lembramos o quanto esquecemos de ouvir, compreender e dar voz ao outro. A maestria do palhaço abre a Caixa de Pandora e todos os males estão libertos.

A arte imitando a vida

As escadarias, que nas telas dão o tom de ascensão e queda – o triunfo de se libertar é revelado na descida, com melodia e harmonia épicas, em uma subjetiva decadência moral e social –, confirmam que a arte imita a vida. Enquanto coletividade, ao empurramos uns aos outros ladeira a baixo, pensamos estar evoluindo, numa lógica egoísta e desumana de superioridade.
A apoteose vivida por Fleck, ao romper os grilhões da fantasia para dar lugar ao ser que verdadeiramente o habita, assombra nossos porões. Instalado por meio de uma atitude precipitada, o caos reflete um mundo órfão de pacíficos e ajuizados diálogos. Ao comandar a alegoria o palhaço risca a palavra “não” e a frase se torna “esqueça de sorrir”, sepultando a esperança, mitologicamente enjaulada.
A sociedade espera que as pessoas com alguma deficiência ajam como se não as tivessem, choca o ovo da serpente que desesperadamente busca combater. “Nos tempos em o mundo se mostra louco, herói é aquele que mantém o senso de humor”, dizia Sabatini. Entretanto, humor do Coringa não é do tipo que pavimenta, mas que escancara a medida do abismo, tão transparente que se torna invisível.
O desgoverno institucional que vivemos atropela pessoas “inofensivas” sem lhes perguntar o nome, assalta cruelmente valores de dignidade do ser humano sem ao menos lhes proporcionar um lugar no mundo. Nesse cenário a orquestra se rende à batuta do idolatrado palhaço que vivia o trágico dilema: “ser ou não ser, eis a questão”.
As metáforas cirurgicamente dirigidas na produção do filme nos torturam porque aliciam mazelas que todo mundo enxerga, mas ninguém vê, nos enquadram como coautores da barbárie e nos fazem perceber que o fim da origem do vilão é o princípio do nascimento do herói. Esse Estado de Exceção que viola direitos fundamentais em “prol de uma causa maior” ilustra uma impostora artesania de valores, ludibriando os bobos da corte no limite da excelência. Reflexões difíceis sobre questões complexas, buscaremos a glória ou nos contentaremos com a perdição?

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