Nós, mulheres da área de saúde que trabalhamos com mulheres, temos a oportunidade de estar de frente com elas em situação de fragilidade
KARINA CIDRIM
9 DE MARÇO DE 2020
Atualmente conhecido como “o dia das mulheres”, o dia 8 de março é uma data oficializada desde 1975 pela ONU. Muito diferente do que se propaga, não é um dia para comemorações e, sim, um dia de reflexão, reconhecimento de conquistas e lutas por objetivos ainda não alcançados pelas mulheres.
Muito se especula sobre o início dos protestos que marcaram a escolha deste dia como representativo para as mulheres. É fato que o incidente ocorrido em 25 de março de 1911, em uma fábrica têxtil de Nova York durante uma grande greve por redução da carga de trabalho e salários, que culminou com um incêndio em que cerca de 130 operárias morreram carbonizadas, marcou a trajetória das lutas feministas ao longo do século 20. Porém, eventos anteriores e posteriores foram aos poucos consolidando o mês de março como um mês de luta das mulheres por direitos.
Inspiradas nessas mulheres do início do século, fomos ao longo dele conquistando o direito de trabalhar fora do lar, de votar, de estudar em universidades. Direito ao divórcio, a ocupar cargos antes só preenchidos por homens. Nos destacamos nas ciências, nas artes, na política. Nos últimos anos, conquistamos o direito ao casamento e a parentalidade homoafetiva, trouxemos à tona lutas por novos direitos, que por vezes parecem tão óbvios, mas que ainda nos é negado, como o direito ao parto por exemplo.
Aprendemos e estamos aprendendo cada dia mais a reivindicar nossos corpos, a dizer não aos padrões que nos aprisionam e sexualizam. Estamos aprendendo a dizer não, a dizer é minha vez de falar, a dizer vou te deixar (embora ainda tenhamos medo de sermos demitidas ou até assassinadas por essas atitudes). Temos uma lei que nos defende, a lei Maria da Penha, mas ainda precisamos nos esforçar muito para que ela seja cumprida.
“Nosso corpo, nossas regras”, mas ainda nos sentimos obrigadas a transar com o marido mesmo sem vontade por este ser um dever do casamento, ainda precisamos recorrer a clínicas de aborto clandestinas, ainda precisamos ouvir de um médico homem que precisamos de uma cirurgia de períneo para ficar mais apertadinha para o marido. “Meu corpo, minhas regras”, mas ainda não reconhecemos todos os corpos femininos como mulheres.
Falamos em empatia, em empoderamento, em sororidade, mas ainda falta nos olharmos enquanto mulheres.
Falta a mulher hétero olhar para a mulher homossexual com respeito, sem medo de ser “cantada” ou ser ” julgada” por estar ao lado dela, sem considera-la menos mulher, promíscua ou confusa sobre sua sexualidade.
Falta a mulher homossexual olhar para a mulher hétero e compreender o que se passa nos seus relacionamentos, sem julgar, sem desmerecer. Falta a mulher cisgênera acolher a mulher transgênera, compreender sua luta (dupla) contra o machismo e a transfobia.
Não conseguimos medir o quanto será vitorioso e a força que teremos quando quebrarmos as barreiras que existem entre as mulheres, muitas delas impostas por pensamentos machistas, enraizados na nossa cultura, outras por questões de classe , outras de cor. Imagina que força teremos no dia que a patroa branca olhar a empregada negra e entender tudo que a fez estar naquela posição de “inferioridade”, e abraça-la nas suas lutas e dores. Imagina que poder teremos quando a mulher branca olhar para sua colega de trabalho negra e compreender seus privilégios enquanto branca, e apenas calar quando não for seu lugar de fala e dar àquela mulher o protagonismo que ela deve ter.
Será que temos noção do quão poderosas seríamos, se parássemos de replicar a cultura machista que nos coloca em situação de inimigas e simplesmente nos reconhecêssemos na outra mulher? E se parássemos de falar mal da atual do nosso ex, e se parássemos de competir por homens, de nos intitular feias ou bonitas por motivos diversos?
E se a gorda parasse de taxar a magra de doente, ou a magra parasse de chamar a gorda de desleixada e elas se vissem apenas como mulheres, com os mesmos anseios, mas com histórias tão diferentes. E se deixássemos de chamar outra mulher de vadia, de louca, de desmerecer sua raiva porque ela “está na TPM”, de inferiorizar o trabalho de uma mulher porque ela é filha de alguém importante. Se fizéssemos tudo ao contrário do que a sociedade patriarcal espera que façamos?
Vamos empregar outras mulheres e respeitar seu direito à gravidez e amamentação. Vamos divulgar, ler e consumir produtos feitos por mulheres. Vamos abraçar a freira, a virgem, a missionária, a celibatária e respeitar suas escolhas. Vamos olhar com compaixão para a detenta, a prostituta, a mulher que sofre violência doméstica e permanece no relacionamento, entender suas histórias, estender a mão e ajudar, sem julgar
Nós mulheres da área de saúde que trabalhamos com mulheres: médicas, enfermeiras, psicólogas, fisioterapeutas, todos os dias temos a oportunidade de estar de frente para uma mulher em situação de fragilidade. Seja por uma doença física ou mental, relacionada ou não ao modo de vida, devemos sempre deixar de lado todos os nossos julgamentos e acolhe-la.
É muito mais comum do que se pensa que mulheres desenvolvam medo e aversão a serviços de saúde devido a atendimentos sem empatia. Mulheres lésbicas, bissexuais e trans sofrem ainda mais com a falta de empatia no atendimento. Mulheres tem sido ao longo de anos, séculos, vítimas de procedimentos médicos machistas, que são diariamente replicados por mulheres profissionais de saúde.
Ficam constrangidas ao falar de parceiros sexuais, de práticas sexuais (anal e oral por exemplo), de sintomas mais íntimos por medos de serem julgadas. Os olhares que condenam e a cultura da sexualização dos corpos femininos são tão fortes que elas se sentem no dever de pedir desculpas por não estarem depiladas, terem estrias, cicatrizes, não estarem “limpas” porque vieram do trabalho, estarem acima do peso, serem velhas demais e não conseguirem subir na mesa de exames. E pior: as próprias mulheres profissionais de saúde mantêm essas crenças, dão orientações equivocadas sobre o cuidado com o corpo, numa eterna replicação de falta de conhecimento sobre nós mesmas.
Uma mulher que atende mulheres precisa conhecer seu corpo e sua sexualidade, entender o seu feminino, entender sobre feminismos (sim porque eles são vários), entender sobre desigualdade social, cultural e sexual. Do contrário, seu atendimento será mais um fator gerador de traumas das mais variadas intensidades.
“Todo dia é dia da mulher.” Estatísticas mostram que todo dia, agora enquanto você lê esse texto, uma mulher é violentada, estuprada, demitida injustamente, assassinada, desmerecida, tratada mal na hora do parto, da consulta ginecológica, morta por aborto clandestino. Todo dia é dia de nos olharmos, nos acolhermos e nos protegermos. Isso sim será revolucionário.
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