Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Susana Trimarco, uma das maiores ativistas contra o tráfico humano

A luta desta argentina começou há uma década, quando sua filha de 23 anos sumiu a meio quarteirão de casa


SCOTT JOHNSON

LIDERANÇA Susana Trimarco em foto recente. A busca pela filha levou-a a criar uma fundação para ajudar outras famílias de vítimas do tráfico de pessoas na Argentina (Foto: João Pina)
LIDERANÇA
Susana Trimarco em foto recente. A busca pela filha levou-a a criar uma fundação para ajudar outras famílias de vítimas do tráfico de pessoas na Argentina (Foto: João Pina)

Projeto Generosidade (Foto: reprodução)
Susana Trimarco tem muitas perguntas, mas todas acabam numa só: o que aconteceu com sua filha, María de los Ángeles Verón, mais conhecida na Argentina como Marita, desaparecida há uma década? Aos 58 anos, Susana fala rápido e em tom passional sobre a filha, que tinha 23 anos quando tudo ocorreu. Olha dentro dos olhos de sua neta, Sol Micaela, de 13 anos, e percebe a semelhança física com Marita – o cabelo escuro, os olhos oblíquos, as pálpebras pesadas, as bochechas rosadas típicas de uma adolescente. Para ela mesma e para quem quer que a ouça, Susana pergunta: “Onde está você, mi hija, mi vida? Vou vê-la de novo algum dia?”.
A Argentina tem uma herança amarga de 14 mil desaparecidos políticos durante a ditadura, segundo dados oficiais. Desde a redemocratização, em 1983, casos de desaparecimento eram encarados como problemas pessoais da família da vítima. O tráfico de pessoas ainda não era um crime na Argentina em abril de 2002, quando Marita sumiu a meio quarteirão da casa da mãe. A prostituição era – e ainda é – legalizada no país. Um raciocínio amplamente aceito era que uma pessoa envolvida no mercado do sexo o fazia por opção própria. E era disso que a maioria suspeitava em relação a Marita.
Ao longo dos anos, essa percepção começou a mudar, muito porque Susana batalhou sem recuar um centímetro. “Quando o assunto é tráfico de pessoas na Argentina e em toda a América Latina, há um antes e depois do caso Marita”, diz Marcelo Colombo, procurador federal e diretor da agência argentina de combate a esse crime. “As conquistas de Susana nessa área são incalculáveis.” Seus esforços lhe renderam grande reconhecimento em seu país e no exterior. Em 2007, em Washington, a ex-secretária de Estado Condoleezza Rice a presenteou com o prêmio Mulheres de Bravura. Em outubro deste ano, a presidente Cristina Kirchner recebeu Susana e Micaela em sua casa. Em abril, uma entidade argentina de advogados defendeu seu nome para o Prêmio Nobel da Paz.
Graças à persistência de Susana, a Argentina transformou o tráfico de pessoas em crime federal, em 2008. De lá para cá, mais de 3 mil vítimas foram resgatadas em operações policiais. A própria Susana já resgatou mais de 150 jovens, algumas de até 12 anos, quase sempre com um risco de morte. “Não me importo se me matarem”, afirma. “Meu imenso amor por Marita é maior e mais forte que qualquer coisa que possam fazer contra mim.” Ela criou a Fundação María de los Ángeles para ajudar a encontrar sequestrados por redes do tráfico. As Nações Unidas estimam que o tráfico humano movimente mais de US$ 31 bilhões por ano. É o segundo mais lucrativo mercado ilícito na economia global, depois do comércio de drogas. Cerca de 2,5 milhões de pessoas são sequestradas todo ano. Metade são crianças.
Susana planejara vir a São Paulo no último dia 4. Ela foi convidada para o seminário Women in the World (Mulheres no Mundo), organizado pelo grupo de comunicação americano Newsweek/The Daily Beast, realizado pela primeira vez fora dos Estados Unidos. Susana cancelou sua participação por um motivo compreensível: na semana passada, em um tribunal de San Miguel de Tucumán, cidade ao noroeste da Argentina onde ela vive, começou o julgamento dos sete homens e seis mulheres acusados de envolvimento no sequestro de Marita. 
Depois de mais de uma década de buscas incansáveis, Susana e sua equipe de cinco advogados reconstituíram o que acreditam ter acontecido com Marita no dia em que ela desapareceu e nos meses seguintes. Susana suspeita que tudo tenha começado com uma vizinha pouco amigável de Marita, uma enfermeira a quem ela acusa de ter trabalhado para uma rede de traficantes de pessoas em Tucumán. A enfermeira diz não ter nenhum envolvimento no crime. Em 2002, Marita já tinha Sol Micaela e gostaria de ficar com apenas um filho por algum tempo. Por isso, decidiu usar o Dispositivo Intrauterino (DIU) como método anticoncepcional. De acordo com Susana, a enfermeira disse a Marita que seu namorado era chefe de Recursos Humanos de uma maternidade local e que poderia apresentá-lo, para poupá-la do custo de uma clínica particular. Susana alertou a filha para ficar longe da enfermeira. “Tinha um mau pressentimento desde o início”, afirma.
Marita contou uma história terrível à mãe depois de ter ido à maternidade. Lá descobriu que o homem a quem fora apresentada não era chefe de RH, mas sim o zelador. Disse ter visto no hospital um comunicado da polícia com uma foto da enfermeira apontada como suspeita de sequestrar uma criança. “Não se preocupe. Não terei mais nenhum contato com essa mulher”, disse Marita à mãe. Ainda assim, ela decidiu conseguir o DIU na maternidade. Tinha uma consulta marcada para as 9h30 da manhã seguinte.
No dia 3 de abril de 2002, mãe e filha tomaram o café da manhã na mesa da cozinha. Beberam mate e comeram alguns biscoitos. Pouco depois das 9 da manhã, Marita saiu de casa. “Voltarei dentro de uma hora”, disse à mãe. De acordo com duas testemunhas – nenhuma delas se dispôs a testemunhar no julgamento –, Marita estava a meia quadra de casa quando um carro vermelho com os vidros escuros parou a seu lado. Se alguém sabe exatamente o que aconteceu logo depois, nunca apareceu para dizer. O certo é que Marita não chegou ao hospital.
TEMPOS FELIZES Abraçada à filha,Sol Micaela, Marita posa para a foto em sua casa. Pouco depois, em abril de 2002,ela desapareceu  (Foto: João Pina)
TEMPOS FELIZES
Abraçada à filha,Sol Micaela, Marita posa para a foto em sua casa. Pouco depois, em abril de 2002,ela desapareceu (Foto: João Pina)

Toda vez que dizem ter visto Marita, quero ter asas e voar para lá no mesmo instante. Sei que ela está viva"
Quatro semanas depois do crime, os habitantes de uma cidade vizinha a Tucumán disseram à polícia que uma mulher em farrapos, aparentemente embriagada ou sob efeito de drogas, caminhava pela Rodovia 304. Policiais a encontraram, e ela lhes disse que se chamava Mirta Bron, um nome comum na Argentina. Disseram que a colocaram num ônibus rumo ao sul do país, pagaram a passagem e foram embora. Os advogados de Susana dizem que poderia ser Marita. Se ela estivesse bêbada ou drogada, poderia ter dito “Marita Verón” com uma voz pastosa, levando à confusão dos policiais. Depois, uma outra pista sugeria que Marita fora levada a uma boate cujos donos eram suspeitos de ter vínculos com o crime organizado. Mas, sempre que Susana pedia ajuda policial, parecia que eles punham mais obstáculos em seu caminho. “Se eu dizia a eles para ir atrás de alguma pista, seguiam um caminho oposto”, afirma. Ela começou a desconfiar que as autoridades não eram apenas incompetentes, mas também cúmplices. “Eu gritava e chorava até não aguentar mais. Percebi que tinha de ser forte e pensar com a cabeça, não apenas com o coração. As autoridades eram poderosas, e eu era ninguém, sem recursos.”
Com a ajuda de um investigador chamado Jorge Tobar, Susana começou a rastrear uma vasta rede de tráfico de pessoas, com vínculos com a polícia e a Justiça. Quanto mais ela e Tobar se aprofundavam nas investigações, mais entendiam o poder de seus inimigos. Quando Tobar ia para uma operação, mais tarde descobria que seus alvos foram avisados. A partir de maio de 2003, as pistas sobre o paradeiro de Marita começaram a diminuir. Naquele ano, Tobar recebeu uma informação de que ela fora mandada para a Espanha. Ele e Susana foram à Espanha. Foram resgatadas 25 jovens, das quais 19 eram da Argentina e de países da América Central. Marita não estava lá.A partir daí, ela entrou em ação. Decidiu ir atrás de Marita por conta própria. Começou a se vestir como uma prostituta e a visitar prostíbulos na região. Conseguiu números de telefone de pessoas que suspeitava estar envolvidas no tráfico de mulheres. Ligava para elas dizendo que queria comprar jovens. Em junho de 2002, conseguiu acesso a um esconderijo onde 12 jovens mulheres estavam reféns. “Menores de idade ou adultas?”, a traficante lhe perguntou. Quando Susana disse “menores”, ela informou que cada uma custaria a partir de 3.500 mil pesos (cerca de R$ 1.500). Depois de prometer que voltaria com o dinheiro, Susana procurou a polícia e conseguiu resgatar as jovens. Marita não estava lá.
As ameaças contra Susana aumentaram. Homens telefonavam dizendo que cortariam sua cabeça e a jogariam num rio. Motoristas tentaram atropelá-la. Alguém pôs fogo em sua casa, destruindo parte do telhado. Seu marido, Daniel, que também lutava para encontrar a filha, sucumbiu à depressão e, depois, à morte. Susana vive sob constante escolta policial. Agentes acompanham a neta Micaela à escola todos os dias.
Susana tem um sonho recorrente com Marita. Nele, se vê caminhando por uma floresta de árvores imensas. “Dessas que existem na Europa”, diz ela. Em certo ponto da floresta, há um palácio. Susana consegue ver Marita por uma das janelas. Lá dentro, a filha está sentada confortavelmente numa poltrona, assistindo à televisão. A cena inspira paz. “Toda vez que dizem ter visto Marita, quero ter asas e voar para lá no mesmo instante. Sei que ela está viva. Posso senti-la.”

Época

Nenhum comentário:

Postar um comentário