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quarta-feira, 29 de maio de 2013

A vida real é melhor

As nossas relações não precisam se parecer com o que se vê nas telas


IVAN MARTINS

IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
No último fim de semana, sem que eu tivesse planejado, assisti a dois filmes românticos. Estava na sala, liguei a televisão e apareceu um deles. Fiquei e vi. No dia seguinte, em outro horário, deparei com o segundo. Também fui fisgado. Ambos eram bonitos, sensíveis, envolventes. Ambos capazes de me deixar melancólico e intrigado. Pensei: que diabo nos acomete quando vemos esse tipo de filme? As pessoas se beijam, as pessoas se apaixonam, as pessoas se deixam e choram – e conosco, vendo aquilo tudo, acontece o quê? 
Não sei. Ao menos não exatamente.
Descobri o sentimento sem nome provocado pelos filmes aos 11 anos de idade, vendo Melody – quando brota o amor. A história dos adolescentes que fogem da escola para se casar me pôs em transe. Saí do cinema apaixonado pela personagem – a Melody do título – e, pela primeira vez na vida, tomado por uma sensação de melancolia do qual não desejava me livrar. Talvez tenha sido minha primeira emoção romântica inteiramente consciente – a mesma que, passadas várias décadas, e em circunstâncias diferentes, ainda me aflige no escuro do cinema ou na frente da televisão. Sem que eu saiba o que ela significa. 
Os dois filmes que eu vi no fim de semana nada têm de especial. Ao entardecer conta a história de um amor que se consuma numa noite e se estende na forma de lembrança pela vida inteira. Em busca do amor narra o encontro entre duas pessoas de mundos diferentes, que parecem destinadas uma a outra desde o primeiro momento. São dois mitos poderosos - o amor inesperado e o amor eterno – cujos efeitos transbordam da televisão, encharcam os nossos pés e, de forma insidiosa, entram na nossa vida. 
Eu me pergunto, essencialmente, se esses filmes adocicados ou arrebatadores descrevem as nossas verdadeiras emoções, (e por isso nos afetam tão profundamente), ou se eles nos contam, de maneira idealizada, como a nossa vida romântica deveria ser (e na vida real nunca é!) e por isso nos fazem sentir tão exaltados e tristes. Enquanto o garoto de 11 anos ainda reúne coragem para simplesmente falar com a menina de quem ele gosta, o filme diz a ele que é hora de amar, fugir e casar contra a vontade dos adultos. Não é à toa que a vida dele parece mesquinha e melancólica. Menor. 
O psiquiatra Jurandir Freire Costa escreveu, num livro maravilhoso e difícil chamado Sem fraude e sem favor – estudos sobre o amor romântico, que “o amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida”. Contra a ideia de um amor natural, eterno e universal, ele propõe um amor cultural. “O amor”, diz ele, “foi inventado como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o fabrico do pão, a arte erótica chinesa, o computador, o cuidado com o próximo, as heresias, a democracia, o nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo”. 
Seguindo a lógica do Jurandir, o que os filmes fazem é recontar, diante da sua audiência emocionada, as lendas correntes do amor romântico. Eles realimentam um mito que fomos ensinados a admirar e a desejar para as nossas próprias vidas, com consequências potencialmente destrutivas. Se o amor é aquele arrebatamento tempestuoso de um filme, ou o sentimento pétreo e permanente do outro, que nome dar (e, sobretudo, que valor dar) à sensação fugidia e cheia de dúvidas que me liga à Fulana ou ao Sicrano? O que eu sinto seria amor de verdade ou não passa de mera cópia pirata? Nos filmes, afinal, o amor é grandioso, pleno de certeza, permanente...
Este parece ser um dos casos em que a arte não nos prepara para lidar com a vida. Para entender o amor de verdade, na forma possível que ele toma na existência de cada um de nós, talvez seja preciso se livrar da grandiosidade. O romantismo pode ser uma prisão cheia de filmes e músicas, no interior da qual as pessoas adoecem –ou envelhecem - esperando por algo que não existe. Fujamos disso.
A vida real é melhor. Nela, apesar da precariedade da incerteza, tudo pode ser refeito, recomeçado. Os personagens dos filmes são prisioneiros de roteiros que não constrangem a nossa vida de verdade. Nós podemos nos mudar para o Rio, pintar os cabelos de vermelho, escrever um blog ou passear na chuva, com ou sem cachorro. Ao nosso redor, milhões de pessoas partilham as mesmas calçadas e os mesmos desejos por afeto, sexo, companheirismo. Tem aí material suficiente para bilhões de relações humanas. Eles podem não ser tão perfeitos quanto nos filmes. Podem não durar tanto e nem ter tantas estrelas no céu. Talvez nem sejam amor. Mas elas existem e isso faz toda a diferença.
Para encerrar, “Amor barato”, do Chico Buarque, que diz, melhor e mais claro, o que eu tentei dizer.  

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