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terça-feira, 28 de maio de 2013

A mulher que nasceu com 10 anos

... E uma outra que virou ponte


ELIANE BRUM

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua  -  (Foto: Lilo Clareto/Divulgação)
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda(Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
Twitter: @brumelianebrum  
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
– O que a parteira Zenaide mais queria na vida era reconhecimento.
É Mara Régia Di Perna quem dá a notícia, em tom de urgência.
– Quem é a Zenaide?, pergunto eu, agoniada de ignorância.
Mara Régia nem me conta, manda logo a voz de Zenaide contando de si. 
Maria Zenaide de Souza Carvalho é o nome completo dela. E ela já nasceu com 10 anos. É assim mesmo, não é engano. Parteira nasce no primeiro parto. Ela nem sabe, às vezes é menina que ainda nem botou sangue de mulher e, de repente, se descobre diante do mistério. Atendendo a um chamado que sempre se anuncia num alvoroço, o coração feito um passarinho que fere as asas de tanto bater no peito, querendo escapar porque é demasiada responsabilidade. E ela só tem as mãos.   

Só as mãos.

Com Zenaide foi assim: “Eu tinha 10 anos e foi por necessidade. Não tinha quem assistisse. Quando eu vi aquela cabeça preta saindo, Jesus. Mas quando eu vi o nenê nascendo meu Deus foi a coisa mais linda. Dei conta de tudo. Depois que nasceu eu chorei foi tempo. Porque a arte de partejar é um dom maravilhoso que sempre aconteceu e que sempre vai existir”.
É preciso compreender que o primeiro parto de uma parteira é sempre um duplo: marca o nascimento do bebê e também o nascimento da parteira. Quando ela corta o cordão umbilical com a tesoura ou com a flecha ou com a faca (ou com a unha ou com os dentes) é também da menina ou mulher que foi antes que se despede. É uma coisa meio misteriosa. E se olhar direito é bem um parto triplo, já que o bebê que nasce dá também à luz a uma mãe que antes não existia. Dali em diante parteira a menina será enquanto viver, porque esse ramo não é questão de gosto ou de escolha, pelo menos para as parteiras tradicionais que resistem no Brasil. De marido dá pra se separar, enviuvar, filho próprio vai-se embora quando chega a hora, mas o partejar é pra sempre. Já ouvi história de parteira amputada, aparando menino com uma mão sã e outra invisível. Já vi parteira de 96 anos pedindo a Deus seu aposentamento, mas Deus não dava. 

Zenaide é daquelas que se orgulham do partejar, gosta desse ato de receber a criança que é um mundo novo e apresentá-la ao mundo velho onde daqui pra frente ela vai fazer história. Já fez 244 partos, segundo sua contabilidade. O que a instala com honras na categoria das “parteiras finas”. É ela quem explica: “Parteiras finas são aquelas com mais de 30 partos,pra quem nunca aconteceu de uma mulher morrer ou de perder uma criança. E a grossa é aquela que só fez um parto, dois ou três, e às vezes acontece alguma coisa nas mãos dela. Eu tô colocada como parteira fina porque fiz 244 partos e nunca perdi uma criança”. Zenaide diz ainda que a parteira é amiga da dor, porque “quando a mulher tá com dor, a parteira bota a mão em cima e a dor passa”.   
Aqui o fio da vida é interrompido por violência de homem. 
Interrompido num dia específico: 15 de novembro de 2004. Era a festa de aniversário de Marechal Thaumaturgo, cidade rasgada numa quina do Acre, lá onde o Brasil vai virando Peru. E onde vive Zenaide na Rua do Cemitério, um endereço ao contrário para quem só faz é nascer. O aniversário de Marechal Thaumaturgo estava sendo comemorado atrasado e Zenaide nem tinha ganas de ir, desgostosa de ajuntamento de gente.Mas o filho ia se apresentar, insistiu, e ela foi. Lá pelas tantas sentiu sede e foi perguntar na casa de uma avó com 103 anos se tinha água fria na geladeira. Tinha. Quando ela se preparava para despejar a água o homem veio lá de dentro e era bem conhecido. “Já foi tirando minha roupa. Era uma monte de gente que tinha lá e ninguém disse nada. Eu puxava a calça pra cima, ele puxava pra baixo com calcinha e tudo. Ia deixando eu nuazinha no meio do povo. Aí me deu uma ira, e eu o empurrei com essa mão aqui lá na parede. E aí pronto, não achei que ele fosse me bater. Mas aí um homem disse: ‘Dona Zenaide, lá vem um murro’. Ia acertar na minha nuca, se eu não tivesse desviado aquele murro tinha me matado. Aí pegou meu olho, saiu muito sangue, empapou a blusa, foi a maior dor que eu senti na minha vida inteira. Na hora não, na hora não senti coisíssima nenhuma. Mas 24 horas depois, quando deu o derrame, eu arranquei a roupa todinha, fiquei nua, fiquei doida. Deu hemorragia no rosto inteiro, fiquei com o rosto todo preto. O sangue coalhou no rosto, minha irmã. E não tinha (a lei) Maria da Penha ainda, depois é que formou a Maria da Penha. Meu Deus do Céu, se tivesse Maria da Penha! Dois meses e meio preso, pagou 15 mil reais e saiu. Quem quiser se afastar de homem  agressivo, se afaste, porque depois que ele bate, neguinha, nem Maria da Penha não faz voltar a vista da gente ou qualquer outro órgão que a gente tenha. Porque os órgãos da gente têm um valor muito grande, principalmente a vista. A vista é uma vida, uma vida. Eu não ando mais só, não atravesso rua só. Não posso mais andar só pelos cantos. Tanta vontade que eu tenho, porque sou decidida, já andei esse Brasil todinho, e agora só posso viajar como especial.” 
Zenaide seguiu partejando porque há nas parteiras uns olhos que ficam nas mãos. Ela agora dá um nó cego no fio partido pela violência do homem, amarrando as pontas da vida, e canta assim: “Vamos dar valor a essas parteiras.../São elas que estão espalhadas a trabalhar/Dentro dos municípios do Vale do Juruá/Quando chega aquele dia e a hora da precisão/ Ela logo se apressa e segue na direção./Anda quatro, cinco horas com seus pezinhos no chão/Muitas vezes até doente e sem alimentação/ Que o dinheiro que ela ganha não dá pra comprar o pão”. 
Interrompe a cantoria pra comentar: “Como é que vai dá, né, se não ganha nada, né? Parteira trabalha voluntariamente, sem nada. Vai, passa a noite acordada... E ainda fica dois dias pra cuidar da mulher”.
É neste ponto que Zenaide pede reconhecimento. Ela não pede pão, não pede vestido, não pede nada de comprar ou vender, mas expressa esse desejo feito de uma matéria mais delicada. Zenaide deseja que o Brasil saiba dela, ela que hoje enxerga o Brasil com um olho só.Que o Brasil reconheça as mulheres que dão à luz a um naco grande do Brasil, atendendo ao chamado a pé, no lombo do jegue, remando a canoa, às vezes atravessando o rio a nado – muitas vezes com fome. Reconheça as mulheres anônimas, invisíveis, que ajudam a desembarcar no mundo entre 15 mil e 20 mil crianças a cada ano, com suas mãos sofridas e um conhecimento antigo, sem que isso se traduza em direitos. E reconheça a ela, Zenaide.
– Queria mesmo que eu fosse reconhecida. Porque sei que eu não custo mais a morrer. Porque nossa vida (aqui) é 60 anos, e eu tô com 55.
Reconhecer é o que faz Mara Régia, a mulher-ponte.Ela é do tipo que o nome chega antes, muitas curvas de rios, igarapés, cachoeiras e corredeiras da Amazônia antes. Foi assim que eu a conheci, a lenda antes da mulher. Eu trilhava a Transamazônica em busca de histórias nos anos 90. E só sabia daquele mundo novo onde botava meu pé pela primeira vez o que tinha lido nos livros. Porque vinha do Rio Grande do Sul e não sabia de nada tive a ousadia não apenas de desconhecer Mara Régia, como de confessar tal heresia. Nos fundos de um travessão, a mulher morena, arretada que só, me perguntou:
– Conhece Mara Régia?
E eu, a incauta:
– Que Mara?
A mulherzinha botou as duas mãos na cintura e me reduziu a pó:
– Mara Régia, existe outra?
Achei até que ia puxar a cadeira que tinha posto pra eu me sentar. Passei meus conhecimentos em revista, rodei todos os programas no meu cérebro e a única “Régia” que eu conhecia era a Vitória. Vi na cara dela que minha ignorância seria tomada como ofensa e poderia me custar a entrevista. Nessas horas, eu só tenho uma estratégia: assumir logo minha burrice e, com humildade, pedir esclarecimento. Foi o que fiz:
– Peço mil desculpas, mas não sei quem é Mara Régia.
Disse pensando que se tratava da mulher do prefeito, da benzedeira, de alguma ilustríssima da comunidade. Com esse nome... Arrisquei:
– Mara Régia mora aqui perto?
Aí a mulher ficou com pena. Abriu uma boca que até ouro tinha para rir não comigo, mas de mim.
– Mas que repórti bem boa você deve ser, hein, mulé. Mara Régia vive lá onde você vive, não sabe? Mas é como se fosse de minha família!
Embasbaquei. Teria sido mais prudente eu dizer que não conhecia o Pelé. O marido, mais bonzinho, veio em meu socorro:
 – Mara Régia é da rádia. Nunca ouviu, não? A gente aqui ouve ela tudinho.


Comecei então meu aprendizado sobre Mara Régia e a Amazônia. Era dela uma das vozes que o povo mais ouvia na Rádio Nacional da Amazônia – especialmente a mulherada. Era também a sua voz que fazia uma ponte entre os vários Brasis contidos numa floresta em que a persistência da delicadeza em meio à brutalidade é ato de resistência. Brutalidade esta tantas vezes praticada – ou permitida – pelo próprio Estado, ontem como hoje. Quando compreendi que Mara Régia era uma mulher-ponte me emocionei. Entendi que a mulherzinha arretada de mãos na cintura, num quilômetro abandonado de (mais) um megaprojeto abandonado depois de promover morte e destruição, fazia um esforço para encontrar em mim alguém que ela pudesse reconhecer.
Quando finalmente conheci Mara Régia me admirei que uma voz que cobria a Amazônia, milhões e milhões de hectares de terra, água e (cada vez menos) floresta, coubesse naquela mulher baixinha, com uma risada que dava vontade de rir com ela só para não deixá-la desacompanhada. E quando ouvi a sua voz entendi o que o povo ouvia: era como chegar em casa.Tão íntima em forma de rádio que dona Maria do Boiadeiro contou lá no Pará: “Mara Régia, já te salvei tantas vezes das águas...” Como assim? “Quando eu tô lá na ponte ensaboando a roupa te boto lá falando. De repente tu escorrega no sabão e tenho de correr pra te salvar da correnteza.”
Mara Régia vai alinhavando a floresta e apalpando o povo com as orelhas no programa “Natureza Viva”, que completa 20 anos nesta quarta-feira, 29 de maio. A cada domingo, das 8h às 10h, ela vai tecendo um conceito de “sustentabilidade” socioambiental a partir das experiências concretas de ribeirinhos, extrativistas, pequenos agricultores e indígenas. Porque sustentabilidade é um conceito que vai tomando uma forma meio esquisita na boca de alguns políticos e empresários que gostam mesmo é de floresta defunta, é palavra que vai sendo torturada aqui e ali para significar às vezes o seu oposto, até o ponto que se esvazia de significado e sentido, de tão gasta que foi pra não dizer nada. Ao trazer as vozes de quem vive a floresta e, mais do que vive, é a floresta, Mara Régia faz um tipo de milagre de gente e devolve carne à palavra, que fica viva de novo.
Ao contar a história de Zenaide no “Natureza Viva”, a parteira atravessa o Vale do Juruá e navega pelas Amazônias todas. Ainda assim, Mara Régia fica aflita, não esquece, se preocupa. E a mulher-ponte me alcança porque Zenaide merece reconhecimento e é preciso contá-la a outros Brasis antes que seja tarde. Me despacha então a voz da parteira, para que eu possa dar aqui um ponto, um pontinho só, para cerzir esse rasgo na costura do mundo, que é a ignorância de um pedaço do Brasil sobre o Brasil que é Zenaide.
As pontes existem – e existem até as mulheres-pontes. Uma pena que ainda são poucos os que querem atravessá-las. Não apenas para reconhecer o outro lado, mas para se reconhecer no olho cego de Zenaide. 

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