Torcedores se unem para combater homofobia no futebol
João Fellet
Da BBC Brasil, em Brasília
Torcidas têm em comum forte presença feminina e buscam combater não só a homofobia, mas a discriminação contra mulheres no futebol |
No estádio de futebol lotado, o time da casa marca um gol. Na comemoração, um grupo hasteia uma bandeira com as cores do arco-íris, símbolo universal do movimento gay. A cena, impensável para alguns, vem sendo ensaiada por torcedores de vários clubes brasileiros, que pretendem levar para os campos de futebol a luta contra a homofobia.
A causa já tem o apoio de torcedores de vários grandes clubes brasileiros, como Atlético-MG, Cruzeiro, Inter-RS, Bahia, Palmeiras, Grêmio, São Paulo, Flamengo e Corinthians.
O movimento começou há pouco mais de um mês, quando uma torcedora do Atlético-MG criou no Facebook a página Galo Queer. O nome une o apelido do time a um termo em inglês usado para se referir a gays de forma pejorativa, que, no entanto, acabou sendo apropriado pelo movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).
A torcedora, uma cientista social de 23 anos que prefere não ser identificada por temer agressões, diz à BBC Brasil que resolveu criar a página ao retornar de uma temporada no exterior. Em sua primeira ida ao estádio depois da volta, ela diz ter ficado "muito incomodada com os gritos homofóbicos da torcida e o fato de parecerem mais importantes que o hino do clube".
Em poucas semanas, a página ganhou mais de 5 mil seguidores. Mesmo assim, nos primeiros dias, ela conta que muitos atleticanos enviaram mensagens agressivas à comunidade por discordarem da bandeira ou pensarem que se tratasse de grupo criado por cruzeirenses, maior torcida rival, "só para zoar".
Com o tempo, e à medida que ela publicava textos em defesa da causa e do clube, as reações negativas foram sobrepujadas pelas positivas. Animada com a crescente popularidade, ela se prepara para um importante teste no domingo. Pela primeira vez, membros do grupo se reunirão para assistir a um jogo do Atlético – ainda não no estádio, mas num bar em Belo Horizonte.
"Queremos ver a reação das pessoas, para não deixar o movimento ser só virtual." Se não sofrerem rejeição, pretendem distribuir panfletos e até se identificar nos estádios com bandeiras e outros símbolos.
Presença feminina e divisões de gênero
Inspirados pela Galo Queer, outros grupos de torcedores seguem o mesmo caminho. Em comum, quase todos têm importante presença feminina, relacionam-se bem entre si e buscam combater não só a homofobia, mas a discriminação contra mulheres no futebol.
Uma das administradoras da página Grêmio Queer, a socióloga Kátia Azambuja, de 25 anos, enumera as agressões sofridas por mulheres que vão ao estádio: "Para ir ao banheiro, sempre rola uma passada de mão, um puxão no cabelo, alguém que fala uma gracinha."
O criador do grupo Bahia EC Livre, um jornalista de 29 anos, engrossa o coro: "Por que o futebol só pode ser ambiente hétero e para homens?".
"Quero assistir aos jogos no estádio, quero participar, mas tenho que ficar como um agente duplo: ao mesmo tempo que estou ali, ninguém pode saber que sou gay."
Autor de dissertação de mestrado sobre o comportamento dos homens nos campos de futebol, o pedagogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Gustavo Bandeira diz que o estádio influencia e é influenciado por nossa cultura.
"Ali ensinam-se duas coisas muito importantes: quem tem sexualidade legítima e quem não tem. E também que, para que o homem viva sua heterossexualidade com êxito, deve pregar o ódio aos homossexuais."
Bandeira diz que o futebol reforça divisões de gênero ao valorizar características tidas como masculinas, como a virilidade e a disposição para o combate, em oposição a aspectos associados às mulheres, como a delicadeza e a emotividade. Ela cita no estudo uma declaração do técnico Abel Braga sobre Sidnei, ex-jogador do Inter-RS – o atleta, segundo o treinador, "era muito meigo para um zagueiro".
O pesquisador afirma ainda que, embora homofóbicas, as manifestações das torcidas sugerem que apenas os sujeitos em posição passiva no ato homossexual têm a masculinidade em risco. Um exemplo da postura são os gritos que instam os adversários a praticar sexo oral neles (o popular "chupa!").
Declarações de amor
Paradoxalmente, Bandeira também nota que, no mesmo ambiente em que se ressalta a virilidade, se permitem afetos nem sempre tolerados em outros locais, como as declarações de amor ao clube e os abraços coletivos após os gols.
Gremista, o pesquisador aborda em seu mestrado atitudes racistas de apoiadores de seu time voltadas a torcedores rivais, do Inter. Na década de 1940, gremistas passaram a chamar os adversários de "macacos", referindo-se à presença de negros na torcida. Cinquenta anos depois, diz, os torcedores rivais adotaram o termo e passaram a promovê-lo como sinal da tolerância do grupo.
"Hoje ninguém (no Brasil) quer ser identificado como racista, mas ninguém ainda se preocupa em ser identificado como homofóbico", compara. Porém, caso a homofobia nos estádios brasileiros acompanhe a trajetória do racismo, ele avalia que provocações homofóbicas atuais perderão efeito – como referir-se aos são-paulinos como bambis.
Para reverter o estigma associado ao termo, quatro torcedores do São Paulo criaram em abril a comunidade Bambi Tricolor. "Se até agora bambi foi um apelido usado para discriminar, por que não adotá-lo com orgulho e desarmar o preconceito?", questiona o grupo no Facebook.
"Hoje ninguém (no Brasil) quer ser identificado como racista, mas ninguém ainda se preocupa em ser identificado como homofóbico"
Pesquisador Gustavo Bandeira
Mas uma das criadoras conta à BBC Brasil que a comunidade, com quase 900 seguidores, gerou resistências inclusive entre sua família, formada por "são-paulinos roxos". "Meu avô adorou a ideia, mas meu pai ficou revoltado."
Entre dirigentes são-paulinos, o termo também causa desconforto. Conselheiro do clube, o vereador Marco Aurélio Cunha (PSD) pediu em 2011 ao apresentador Marcelo Tas que "pensasse melhor nas brincadeiras" que vinha fazendo com o São Paulo.
"Se um cara na rua brinca e me chama de bambi, faço de conta que não é comigo. Mas se um sujeito importante faz isso, abre a possibilidade de todos fazerem", ele diz. "Quando se diz que um cara é viado, isso pega. É uma deturpação de imagem importante, se ele não é ou não quer que se diga isso."
Torcidas organizadas
Para Cunha, a homofobia é uma das vertentes da violência no futebol, que tem como principal agente as torcidas organizadas. "Com medo de mexer em vespeiro, o clube fica oprimido, e o silêncio de todos é que cria a rede de novos conflitos que vão se dividindo em alvos específicos".
Ele diz crer, porém, que em algumas décadas as piadas homofóbicas perderão efeito. "É uma questão de maturidade."
Conselheiro e ex-dirigente do Corinthians, Antonio Roque Citadini discorda e cita, como sinal do grande conservadorismo no futebol, a ausência de jogadores que se assumem gays. "A igreja vai admitir (gays), o Exército, mas o futebol será o último."
Ele afirma, porém, que os times devem condenar posturas homofóbicas de torcedores. E diz ainda que, apesar de provocações homofóbicas de alguns dirigentes corintianos a torcedores são-paulinos (que ele considera "deploráveis"), seu clube tem tratado a questão de maneira avançada.
"O Corinthians é o único clube que concordou que dois jogadores seus posassem nus na G Magazine (revista voltada a homens gays). Isso não há em lugar nenhum, nem no Brasil, nem no resto do mundo."
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