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sexta-feira, 31 de maio de 2013


Brasileira entrevistou 200 crianças para entender como Cinderela e Mulan moldam e refletem a percepção do que é ser mulher. Estereótipos que duram a vida inteira começam a ser construídos quando ainda somos crianças

por João Mello
Editora Globo
Essa imagem sintetiza não só o que é uma princesa:
para muitas crianças, isso é ser mulher
//Crédito: Divulgação
“Olha, tia! Eu giro que nem a princesa!” Foi essa frase, dita por uma garotinha dentro de uma saia esvoaçante, que fez a cientista social Michele Escoura entender o valor do tema pelo qual ela começava a se embrenhar. A princesa em questão era a Cinderela, personagem lançado há mais de 60 anos e que continua a mexer com a cabeça de crianças do mundo inteiro. A cena da menina dançando foi tão forte que, além de definir o foco da pesquisa, também inspirou seu nome: Girando entre Princesas: performances e contornos de gênero em uma etnografia com crianças.
As revistas femininas de hoje são as fábulas da Disney de ontem. Entre várias outras conclusões, essa é uma das que melhor resume o estudo. “A pesquisa mostrou que, já aos 5 anos, as meninas relacionam feminilidade com consumo, padrão de beleza e casamento”, conta Michele em entrevista à GALILEU. Ou seja: a trama em volta Cinderela é apenas uma maneira lúdica de dizer: Emagreça já! Saiba como encontrar o par perfeito! E outras frases cheias de exclamação que costumam frequentar as capas de revistas para o público feminino. 

Michele também investigou como as crianças percebiam a personagem Mulan, classificada pela própria Disney como “rebelde”. Cerca de 200 crianças (metade menino, metade menina) foram entrevistadas em três escolas, duas públicas, uma particular; todas do interior de São Paulo, nas cidades de Marília e Jundiaí. 

A pesquisadora chama atenção para o fato de que mesmo em uma sociedade tão dinâmica, em que paradigmas milenares caem por terra sem cerimônia, o imaginário popular ainda vincula mulher a “ter um monte de coisas, se encaixar em um padrão de beleza específico e encontrar o amor da sua vida.” E pergunta: “É isso mesmo que queremos nos obrigar a acreditar e seguir? Será que não há alternativas? Será que as alternativas não devem ser tão valorizadas quanto esse ideal?” Veja abaixo como foi a conversa: 

De onde surgiu esse interesse por identidade e gêneros?
Michele Escoura: Uma das ideias centrais dos estudos de gênero é a de que nós não nascemos mulheres, mas nos transformamos em mulheres. Isso quer dizer que aprendemos modos de agir, de pensar e de se identificar de acordo com o que a cultura determina como feminino. Bom, mas aí pensei: quais são esses mecanismos que nos ensinam a sermos mulheres? Com essa pergunta na cabeça comecei a prestar mais atenção nas crianças e em como as meninas estavam aprendendo a feminilidade.
Mulan e Cinderela foram as personagens escolhidas para conduzir a pesquisa. Por quê?
Michele Escoura: Cinderela foi o ponto de partida da pesquisa. Mas aos poucos fui percebendo que a popularidade da personagem hoje deve-se em grande parte a uma marca de licenciamento de produtos criada pela Disney em 2000 chamada “Princesas”, na qual uma variedade de protagonistas femininas dos filmes Disney estampam roupas, decorações de festas, materiais escolares, mochilas,etc Foi quando me deparei com uma divisão que a Disney fazia em seu site brasileiro em 2009: ao descrever as personagens, Cinderela era classificada como “princesa clássica” e Mulan (assim como Ariel da Pequena Sereia) como uma “princesa rebelde”. Essa divisão me intrigou e resolvi entendê-la melhor. Ao contrário de Cinderela, lançado em 1950, Mulan, feito em 1998, é uma criação recente dos estúdios, uma personagem que surge depois de ao menos 30 anos de movimento feminista nos EUA, Quando a Disney chama Mulan de “rebelde” ela chama a atenção para esse novo tipo de feminilidade. Mas ao dizer que, apesar de “rebelde”, Mulan é uma “princesa”, ela volta à se remeter a uma ideia de algo que é comum a todas essas personagens, apesar de suas diferenças. Foi atrás desse “algo em comum” que dediquei a pesquisa: sendo clássicas ou rebeldes, para a Disney elas eram “Princesas”. Então, o que é ser uma princesa? 
Editora Globo
Michele acha que falta alguém pesquisar
o outro lado da coisa: “O que está sendo
ensinado e aprendido como referenciais
 ideais de masculino?”
//Crédito: Reprodução Google +
Você se surpreendeu com a lista de coisas que as crianças vinculam à imagem da princesa? Ou a surpresa é como as crianças definem o conceito de feminilidade?

Michele Escoura: Se o mais valorizado é ser uma princesa, logo o mais valorizado é ser magra, ser branca e de cabelos lisos, ser jovem, consumir vestidos, joias e, claro, se casar com o príncipe encantado. E essas características não são exclusividades das Princesas Disney. Basta pegarmos qualquer revista feminina na banca de jornais e ver sua capa, todos esses pré-requisitos para a feminilidade valorizada, a ideal, também estão lá: dietas milagrosas, métodos revolucionários de alisamento capilar, últimas tendências das passarelas e dicas de como arranjar um marido ou manter um homem apaixonado. Esse é o ideal de feminilidade socialmente valorizado, buscado e reivindicado por boa parte da mídia. O que as Princesas fazem é traduzi-lo para esta faixa etária, introduzindo essas representações e regras já na infância.
Houve diferença nas respostas entre meninos e meninas?
Michele Escoura: Não. Tanto meninos quanto meninas têm a mesma compreensão sobre o que é ser uma princesa. O que significa que o ideal socialmente construído desse modelo de feminilidade é compartilhado, inclusive independentemente do gênero: todos sabem o que é ser uma mulher, tanto é que se alguém sai desse modelo, sofre repreensão tanto de homens como de outras mulheres.
E houve alguma diferença nas respostas das crianças de escola pública e aquelas que estudam em colégio particular?
Michele Escoura: Não. As diferenças estavam nas brincadeiras das crianças. Por exemplo, na escola particular não havia nenhuma criança negra e as brincadeiras das meninas eram muitas vezes brincar de casinha ou modelo. Já na escola pública de Jundiaí, com muito mais crianças negras, logo reparei que uma brincadeira entre as meninas era o de salão de beleza. Elas se juntavam em uma mesinha e começavam a mexer umas nos cabelos das outras: “Tô fazendo luzes e chapinha nela”, uma menina dizia enquanto puxava o cabelo cacheado da amiga. Aí nos perguntamos: qual o impacto de um ideal de feminilidade que está assentado na beleza como branca e com traços europeus na vida de uma menina negra? Qual o impacto de se eleger como padrão estético mais valorizado de cabelos os lisos e loiros na vida de uma menina de cabelos enrolados e negros? Para essas perguntas, recomendo as pesquisas da Nilma Lino Gomes e o impacto do racismo entre crianças. 

O mundo está mudando e certos dogmas já não são mais tão sólidos. Acha que um dia a Disney terá uma princesa lésbica? Um herói transexual?

Michele Escoura: Espero que sim e, inclusive, espero que não demore. 

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