Ponderamos que a ideologia do patriarcalismo e sua expressão machista – disseminada de forma explícita ou sub-reptícia na cultura, nos meios de comunicação e no Sistema de Justiça Criminal – reforça determinados padrões de conduta que muitas vezes levam à violência de gênero e, em particular, aos estupros. Tal fenômeno assume uma dimensão preocupante no Brasil, tendo em vista não apenas as suas consequências, de curto e longo prazo, sobre as vítimas, mas sobre a sociedade em geral. Além das perdas de produtividade, a violência que nasce, sobretudo, dentro dos lares, reforça um padrão de aprendizado, que é compartilhado nas ruas. Estimamos que, a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas no Brasil.
Desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Na falta de uma base de dados que nos permitisse aprofundar a análise sobre esse fenômeno no País e que fosse representativa de toda a população, examinamos detalhadamente os microdados do Sinan/MS, referentes ao ano de 2011. Obviamente, sabemos que tal análise é condicional ao fato da vítima de estupro ter procurado os estabelecimentos públicos de saúde. Portanto, os resultados devem ser encarados com certa cautela, uma vez que pode haver algum processo de autosseleção, que faz com que determinado tipo de vítima procure relativamente mais estes órgãos.
Nos registros do Sinan, verificamos que 89% das vítimas são do sexo feminino, possuem em geral baixa escolaridade, sendo que as crianças e adolescentes representam mais de 70% das vítimas. Em 50% dos incidentes totais envolvendo menores, há um histórico de estupros anteriores. Trata-se de dados alarmantes, pois sabe-se que o estupro, além das mazelas de curto prazo, gera consequências de longo prazo, como diversos transtornos, incluindo depressão, fobias, ansiedade, abuso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático. Tal fato, ocorrendo exatamente na fase da formação individual e da autoestima, pode ter efeitos devastadores sobre a sociabilidade e sobre a vida dessas pessoas.
Sobre os elementos situacionais relacionados a tais eventos, um terço dos casos está associado à ingestão de bebidas alcoólicas. A coação por ameaça, força física e espancamento é o padrão, só havendo maiores alterações quando a vítima é adulta e o agressor é desconhecido, caso em que a arma de fogo estava presente em 23,3% dos crimes. Sobre o padrão temporal das ocorrências, um detalhe chama a atenção: a prevalência dos estupros segue de maneira inversa à dos incidentes letais violentos, como homicídios, acidentes de trânsito e outro [conforme verificado por Cerqueira (2013)], que ocorrem mais nos fins de semana e meses de primavera e verão. No caso dos estupros, a frequência é maior nos meses de inverno e às segundas-feiras.
Os crimes em que há penetração vaginal, em adolescentes entre 14 e 17 anos, redunda em uma grande taxa de gravidez, que ocorre em 15% dos casos. Possivelmente este indicador, acima do encontrado na literatura, seja decorrente de eventos repetidos, tendo em vista o histórico de violência sexual intrafamiliar.
Dentre as mulheres adultas que engravidaram, 19,3% fizeram aborto legal. Esse indicador cai para 5% quando a vítima possui entre 14 e 17 anos. A prática de aborto legal só é possível em menores quando tanto a vítima como o responsável legal estão de acordo com o procedimento. Tendo em vista que uma significativa parcela dos estupros de adolescentes é perpetrada pelos próprios pais ou padrastos, possivelmente esses dois fatos ajudam a explicar a menor taxa de abortos legais nessa faixa etária.
No presente estudo, investigamos ainda os condicionantes associados à probabilidade de a vítima: 1) sofrer estupros repetidos; 2) contrair DST; 3) passar por tratamento profilático contra DST; 4) fazer aborto legal; e 5) ser encaminhada pela unidade de saúde a outros órgãos públicos. Utilizamos modelos de regressão logística para entender como cada variável ou característica, isoladamente, afeta tais probabilidades, em que alguns dos principais resultados foram reportados abaixo.
Verificamos que a probabilidade de a vítima sofrer estupros recorrentes é positivamente associada à relação de dominação do agressor perante a vítima. Ou seja, quanto menor for a chance de a vítima ser capaz de denunciar o agressor, maior será a probabilidade que estupro seja recorrente. Em particular, quando o agressor é familiar, a chance de recorrência é 3,47 vezes maior em relação à situação em que a vítima conhece o agressor, não sendo esse parente, cônjuge, ou namorado. Residir fora da área urbana faz com que a probabilidade de estupros recorrentes aumente 20%.
Nossos cálculos sobre a probabilidade de a vítima contrair DST em consequência do estupro estão totalmente em linha com o que foi evidenciado na literatura médica.
Alguns resultados que merecem destaque são: i) agressores desconhecidos fazem com que a chance de contrair DST aumente 45% em relação à situação em que a vítima conhece o agressor, não sendo este parente, cônjuge, ou namorado; ii) as vítimas que sofreram lesões nos órgãos genitais apresentam probabilidade de contrair DST 46% maior que as vítimas sem esse tipo de lesão; e iii) o estupro recorrente faz aumentar em 43% as chances de DST.
No que se refere à análise acerca da probabilidade de a vítima de estupro passar por profilaxia contra DST, de modo geral os resultados foram compatíveis com o procedimento preceituado pelo Ministério da Saúde. Inexplicável, contudo, é o fato de indivíduos com menor escolaridade sofrerem um tratamento diferenciado no SUS, o que revela uma desigualdade incompatível com o princípio da universalidade e isonomia do sistema. Outro ponto que merece ser salientado diz respeito à menor chance de tratamento por residentes em regiões rurais, o que deve estar refletindo as mais escassas condições de oferta qualificada de serviços públicos nessas regiões.
Por fim, acerca da probabilidade de a vítima ser encaminhada a outros órgãos públicos, como polícia, ministério público e outros, chama atenção o resultado em que se o agressor foi cônjuge ou namorado, tais chances diminuem 45% em relação aos casos nos quais o perpetrador é conhecido, embora sem relação de parentesco. Como nas situações que envolvem indivíduos adultos essa é uma decisão pessoal, não há qualquer necessidade de o sistema de saúde fazer tal denúncia. Tal indicador revela, de certa maneira, a dificuldade do Estado em romper um ciclo de violência que ocorre dentro dos lares.
O desenvolvimento social e a garantia de direitos básicos de dignidade e liberdade sexual passa por superar a retrógrada cultura do machismo e o quadro de violações sexuais, o que impõe enormes desafios ao Estado Brasileiro. É dramático perceber que do total de casos de estupro registrados pelo Ministério da Saúde, 15% foram cometidos por duas ou mais pessoas e que 11,3% dos estupros envolvendo crianças foram cometidos pelos próprios pais, que deveria protegê-las. É um quadro que revela uma grave doença coletiva, de uma sociedade em estágio pré-civilizatório.
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